IV. Um deus é desmascarado
Na tarde seguinte, o palco estava montado para o espetáculo.
Toda a Arcádia estava reunida ao redor do templo de Apolo. Apesar de haver cantores e flautistas, barracas e carroças, sacerdotes e sacerdotisas por todo o canto, a atenção do público estava completamente voltada para o pátio diante do templo, onde uma estrutura fora montada para a execução dos prisioneiros. Ali eles seriam levados, de dez em dez, para ser decapitados por uma dezena de carrascos. Acima da estrutura, no topo da escadaria que levava ao templo, Apolônio fizera trazer o trono de Apolo, onde agora se assentava e assistia o festival.
Quando a tarde chegava ao fim, o governante se levantou e, a um sinal de sua mão, paralisou as músicas.
Ouviu-se a voz da pitonisa gritar, naquele instante, em meio a multidão:
- Como transborda a ira de Apolo!
Um arrepio coletivo percorreu os arcadianos, e Apolônio abriu um leve sorriso.
- Arcadianos, nossa luta contra injustiça nunca para. Trago, perante vocês, traidores; pessoas que, negando a paz e a harmonia que alcançamos aqui, procuraram rompê-las. Hoje, no dia do mais digno dos deuses, mostraremos que na Arcádia não há tolerância para indignidade.
Vários aplausos efusivos se ouviram.
A um sinal de Apolônio, os dez primeiros prisioneiros foram levados ao tablado. Sua face dura não exprimia prazer ou dor: apenas convicção.
Naquele instante, uma figura magra saiu da multidão e, pulando em cima da estrutura, encarou Apolônio, com olhos marejados. Era Milo.
- Pare isso, senhor, te suplico!
- Filho, desça, ou será executado junto com esse primeiro grupo - disse Apolônio, tranquilamente.
Sua resolução era irredutível. Sabendo que era inútil argumentar com ele, o pastorzinho dirigiu-se ao povo; em especial para o grupo popular armado que carregava no peito o brasão de Apolônio:
- Meus amigos, preciso lembrar a vocês que essas setecentas pessoas, prestes a ser executadas agora, são seus irmãos e irmãs, pais e mães, filhos e filhas? Por que se jubilam, então, com o destino delas? O que há dentro de vocês, que faz com que amem mais a um indivíduo, a quem tornam objeto de idolatria, do que aos seus semelhantes, que vos cercam?
Um silêncio pesado se abateu sobre a Arcádia. Os patrulheiros, visivelmente abalados, entreolharam-se; para parte deles, não era a primeira vez que Milo fazia a mesma pergunta, e agora ela tinha um peso maior do que nunca.
- Respondo pelo povo, Milo - disse Apolônio, impassível. - Ninguém idolatra um indivíduo, mas o que ele representa: justiça! E os semelhantes deixam de ser semelhantes no instante em que se tornam traidores!
- Traição é um indivíduo arrogar ser a personificação da justiça; é esse indivíduo agir de forma contrária ao atributo que prega; e, não satisfeito, condenar os que enxergam essa contradição como se fossem os injustos!
Isso deixou Apolônio exasperado. Mas Milo, com a voz trêmula, continuou falando com o povo:
- Vocês podem impedir isso! Até quando terão essa insanidade como normal? Até quando dançarão com a crueldade, ao vê-la usar o vestido da justiça?
- O que podemos fazer? -- perguntou uma voz em meio à multidão. - Não podemos lutar contra um... deus!
- Deuses e déspotas tem algo em comum: precisam de veneração. Espaço em seus corações. Parem de dar o que Apolônio quer! - falou com o grupo de apoiadores do governante: - Larguem essas espadas e deixem de oprimir seus próprios irmãos! - e então dirigiu-se a todo o público: - Se ninguém alimentar os espetáculos dos tiranos, eles minguarão e, desnutridos, desaparecerão! Se fecharem seus corações para o ódio, o ódio se cansará e correrá para longe!
Surpreendentemente, a maioria dos arcadianos ficou impactada com a súplica daquelas palavras, expressas pela voz embargada de Milo. Mais da metade dos patrulheiros largaram as espadas e arrancaram os brasões do peito. Então a grande massa começou a se mover, fazendo menção de deixar a festividade. Os arcadianos se recusavam a ver a execução.
- Parem-nos! - gritou Apolônio. A um assovio seu, todos os soldados que lhe permaneciam fiéis correram e fizeram um círculo em torno da população, impedindo-a de se dispersar. - Vão assistir a justiça, sim!
A outro sinal, dois soldados foram até Milo e, derrubando-o do tablado com chutes, saltaram e o imobilizaram; no tablado, os prisioneiros foram obrigados a ajoelhar, e os carrascos ergueram suas espadas.
- Espere - disse Apolônio, completamente desvairado em sua fúria. - Tragam a líder. Que ela seja a primeira.
Segundos depois, uma enfraquecida Têmis era arrastada para cima da estrutura.
Apolônio se levantou, desceu as escadarias e, subindo no tablado, tomou a espada de um dos carrascos.
- Eu mesmo a executarei. E você é o próximo, filho - disse para Milo.
O rapaz, outra vez de pé, era ainda segurado pelos dois soldados que tentavam contê-lo.
- Não faça isso! - gritou o pastor, que começara a tremer descontroladamente. Era como se a obstinação do herói lhe causasse, agora, tanto raiva quanto dor. - Desista! O povo te recusou! Apenas pare!
Apolônio riu:
- Se o povo abraçar o mal, o povo também pagará, até o último homem. Isso é o que acontece quando se levanta contra a virtude. Espero que, antes de morrer, entenda isso. Eu sou a justiça!
E ergueu a espada, sob brados de lamento da população e um grito alucinado de Milo.
Então Palas Atena, que estivera sobrevoando aqueles acontecimentos como uma coruja, viu a ira de Apolo prestes a explodir e conduzir a missão a um dramático fim. Decidindo intervir, ela rodopiou no ar e, antes do momento fatal, pousou no ombro esquerdo do deus, com um piado etéreo, como se lhe restaurando a calma.
Apolônio sentiu um arrepio e baixou a espada, com os braços trêmulos. Seu rosto foi tomado por uma expressão terrivelmente confusa.
- Justiça... - ouviu Milo lhe dizer. - O que você é, senão um megalomaníaco? Alguém que, tendo um dia sido bom, impressionou-se com a própria força e creu-se um deus?
A espada caiu da mão de Apolônio, cujo olhar continuava tremulante.
- Mas eu sou... eu sou...
- ...um herói corrupto - continuou Milo. - Por que escolheu esse nome, Teseu? Tão parecido com o meu?
Apolônio retrocedeu. Seu olhar ia da coruja, que um minuto atrás pousara nos ombros de Milo, para o pastorzinho, cujo corpo não mais tremia, olhos não mais saltavam, e face lacrimejante não mais exprimia dor - mas agora uma das expressões mais imponentes que o herói já contemplara.
- Como sabe o meu nome? - balbuciou Apolônio. - Quem é você?
Milo tornou a subir no palanque, desvencilhando-se dos soldados com facilidade. Em parte, porque estavam imóveis como pedra.
- Eu sou o dono deste trono em que esteve sentado - respondeu o pastor. - Eu sou Apolo.
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