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Capítulo 15 - Força Invisível

Os passos leves da nativa contrastavam com os do homem que a seguia de perto, sem largar a mão que o guiava. As solas das botas enterravam-se na terra, hesitantes.

Descendo um pequeno vale, Killian avistou uma gruta discreta, que descansava por entre um aglomerado rochoso. Alguns fetos agrupavam-se na entrada, fazendo guarda constante a possíveis intrusos. Não foi preciso ela dizer-lhe, ele soube, antes mesmo de se aproximarem, que o que a jovem lhe tinha para mostrar teria de estar no interior daquela boca que se abria na terra.

Os dois corpos passaram por cima da vegetação rasteira e foram tragados pela escuridão que nunca esperava visitas. A luminosidade do exterior era apenas o suficiente para reconhecerem as silhuetas um do outro.

Nileya estacou de frente para ele. Nas pontas dos pés, ela esticou a mão para cima, palpando pelo queixo do homem. A barba roçou-lhe na pele, e Killian manteve-se imóvel. Não sabia o motivo de ela se reservar ao silêncio, muito menos de estar procurando por aquele contato físico entre os dois. Se o contexto fosse outro, ele certamente se afastaria de qualquer mulher que o invadisse daquela forma. Mas o general sabia que a nativa não era regida pelos mesmos costumes. Aquilo tinha de ter outra explicação, por isso, ele esperou para ver.

Os dedos da jovem subiram gentilmente até a palma ocultar a boca do homem. Ela não queria assustá-lo, tinha de ser cuidadosa, como sempre que tentava a aproximação com um novo animal.

Com a mão contrária, ela tapou a própria boca, e os dois deixaram-se ficar naquele silêncio, imersos na escuridão dos seus próprios pensamentos. Ainda que procurassem pelos olhos um do outro, Nileya tinha apenas a respiração pesada de Killian, e ele apenas a pressão dos dedos finos da jovem sob seus lábios fechados. Não ousava respirar pela boca, usando ocasionalmente as narinas para expulsar o ar. O homem era sagaz e havia captado a mensagem.

Um ponto de luz começou a despertar à distância, mais para o interior da gruta. E logo outros se seguiram, dispersos pelo espaço. A negritude cavernosa era gradualmente substituída por uma dança de estrelas brancas, que revelavam a pouca profundidade que falhava em engolir os humanos.

Killian observava atónito o espetáculo de luzes, enquanto a garota espreitava as feições que se desenhavam à sua frente. Agradava-a ver o recém-conhecido entregue à beleza da Natureza. Parecia uma criança, ávido para absorver o mundo.

Entre os pés dos dois, ergueu-se uma claridade intensa. O general deixou o rosto descair, e finalmente viu do que tudo aquilo se tratava. A luminosidade preenchia uma diminuta criatura, com um corpo alongado e curvilíneo. Ela movia-se morosamente, arrastando-se no solo despido. Vários fios curtos balançavam em torno do animal, agarrados a ele como múltiplas pernas.

O pequeno corpo da garota encolheu-se, em aproximação ao chão. As duas mãos, agora livres, acolheram a criatura brilhante, em movimentos fluídos, mas silenciosos. O animal recebia o calor que emanava da humana, fazendo seus pequenos tentáculos retesarem-se. Para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Era como se ele estivesse a tentar calibrar sua temperatura interna. Nileya sabia que não teria muitos segundos até a gruta voltar a mergulhar na escuridão.

A nativa levantou-se, desdobrando os joelhos lentamente. Suas mãos avançaram de encontro ao peito forte do general, transbordando de estabilidade. A precisão dos movimentos impressionaria até mesmo um cirurgião.

Killian colocou as mãos em concha por debaixo das dela, ao perceber que era isso que Nileya lhe pedia sem palavras. A criatura pousou como uma pena, sob a proteção do general, assim que se abriu uma brecha nas cortinas que a amparavam. Os filamentos gelatinosos, que se mantinham numa dança sem ritmo aparente, formigavam-lhe a pele. Nas suas mãos, o animal parecia deslocado, demasiado pequeno para preencher o espaço vazio.

‒ Às vezes, é só preciso procurar nos locais certos para nos surpreendermos com a beleza da vida ‒ sussurrou a moça, vendo as luzes se esmorecerem com sua própria voz. A criatura nas mãos do homem foi a primeira a assumir sua forma transparente. ‒ Os mistérios só existem na nossa cabeça. Está tudo aqui, para quem quiser ver.

‒ Começo a acreditar que sim ‒ confessou Killian. Sua silhueta não se movia por entre a negritude envolvente. Ele ainda sentia as cócegas nas palmas das mãos. Segurava uma forma de vida, ainda que a vida já não se mostrasse para ele.

‒ Esse é o primeiro passo: acreditar.

‒ E qual é o segundo?

‒ Se eu desse todas as respostas, qual seria a graça?

O risinho abafado de Nileya passou como uma brisa fresca do lado do general. O homem apressou-se a devolver, com gentileza, a criatura ao seu habitat, e seguiu os vestígios de luz que indicavam a saída da gruta.

‒ Acho que é justo ‒ gritou Killian, avistando Nileya no alto do pequeno vale. A figura feminina era recortada pelo sol que descia no horizonte e protegida pelos ramos frondosos de uma árvore solitária. Ele saltou por cima dos fetos e correu até estar do lado da jovem. ‒ Nossos papeis parece que inverteram. ‒ Ele gargalhou e a garota espreitou-o pelo canto do olho. ‒ Eu que deveria estar ensinando coisas a você.

‒ Porque você é o civilizado? Porque não vive no meio do mato? ‒ Nileya atirou as perguntas em um tom acusatório. A raiva rompia-lhe pelos poros. ‒ Não tinha percebido que a inteligência só surge dentro de redomas.

Flexionando as pernas, a nativa impulsionou o corpo para cima, agarrando-se num ramo largo. Sem grande dificuldade, ela começou a trepar a árvore, saltando de ramo em ramo.

‒ Não... Não foi isso que quis dizer ‒ disse atrapalhado. Ele levou a mão à testa, fazendo uma pala sobre os olhos, enquanto procurava a jovem lá em cima. O sol lançava os raios sobre as folhas, e, juntos, se uniam para a camuflar. ‒ Eu só... Isto foi um elogio ou, pelo menos, a tentativa de um.

Killian suspirou desanimado. Ele começava a perceber a força do espírito indomável da nativa. Como um homem de poucas palavras que era, suas competências sociais nunca haviam sido das melhores, e, naquele momento, estavam a ser postas à prova no meio de vívidas labaredas. Seria difícil escapar incólume daquele confronto de almas.

‒ Eu não sei como é seu mundo, e você também desconhece o meu. ‒ Ele tentou novamente. Não desistiria sem ao menos tentar. Vislumbrando a sombra da moça, acocorada junto ao âmago da árvore, ele resolveu lançar-se sobre os ramos. Subiria até onde suas habilidades físicas o permitissem. ‒ Mas eu venho de um local movido por eletricidade, por tecnologia... ‒ O general deixou escapar um queixume do esforço de tentar subir o corpo apenas com a força dos braços. Os pés balançaram no vazio, criando um movimento que ele ponderou poder facilitar a tarefa. Na falta de experiência prévia, a racionalidade poderia ser sua única arma. ‒ A modernidade traz certos... ‒ O ramo estalou com o peso do corpo que se içava sobre ele. ‒ Certos conhecimentos. Você foi obrigada a... bom... a ficar parada no tempo. ‒ Debruçado sobre o ramo, ele preparou-se para se lançar para o próximo. ‒ Eu só pensei que...

A mão direita escorregou e Killian viu-se pendurado, precariamente, a alguns bons metros de distância do chão. Ele engoliu em seco, imaginando qual seria a sensação de ter os ossos esborrachados lá em baixo.

O ramo forte suportou bem o peso de um novo corpo, que se deixara cair sobre ele. Os pés vincaram posição segura perto do tronco da árvore. O general sentiu a vibração súbita e olhou para cima.

‒ Pensou que eu não tivesse opinião própria ‒ completou Nileya, esticando a mão para o homem pendurado. Killian segurou firme e içou o corpo para cima. ‒ Que eu me deixaria levar pelas suas verdades ‒ acrescentou, vendo-o já em segurança. Ele tinha-se sentado, as pernas entalavam o ramo que o havia atraiçoado.

‒ Eu já vi que mais facilmente é você quem me arrasta para as suas.

A nativa olhou-o, sem desmanchar a expressão que lhe dava vantagem no momento. Ela não poderia dar parte fraca, mas tinha de admitir que o homem se revelara corajoso, em tentar alcançá-la. O seu povo estava habituado a trepar as árvores, para colher frutos e como uma potencial estratégia de fuga, em caso de necessidade. Todos o aprendiam. Mas ela sabia, por experiência própria, que o treino fazia o engenho. Ela mesma sofrera de inúmeras quedas até atingir toda aquela fluidez nos movimentos.

‒ Vamos descer ‒ ela falou, cortando o assunto.

Nileya foi na frente, aterrando em segurança com os dois pés juntos no solo. Killian seguia-a mais desengonçado, utilizando mais as mãos para se apoiar do que era necessário. No último salto, o corpo impulsionou-se um pouco para a frente. A perna esquerda recuou para trás, buscando recuperar o equilíbrio no solo irregular.

‒ Vou acrescentar isto no treino dos meus homens. ‒ A respiração de Killian mostrava-se pesada do esforço. A jovem franziu o cenho sem entender o que ele queria dizer com "treino dos meus homens".

O general pousou as mãos sobre os joelhos, tentando recompor-se. De olhos baixos, ele avistou uma criatura verde atrás da nativa, enlaçando-se em uma de suas pernas.

‒ Cuidado! ‒ alertou o general, levando a mão ao cós das calças.

‒ Almon! ‒ Nileya exaltou de felicidade ao se deparar com o animal agarrado a si. Nem por um momento, ela se mostrou assustadiça, nem mesmo antes de o reconhecer. Sentira o contato da pele viscosa contra a sua, e assumira-o como uma manifestação da Natureza. Nenhum ser vivo, daquele lado do rio, seria uma ameaça para ela. ‒ Estava procurando por mim, não é mesmo? ‒ Ela ajoelhou-se e afagou o topo da cabeça do animal, contornando a antena que se agitava de excitação.

‒ Você é o animal que me roubou a bota ‒ acusou, identificando a forma familiar do animal. Poderia ser apenas um outro da mesma espécie, mas Killian viu no olho da criatura que ele também o reconheceu.

‒ Ele não roubou. ‒ Ela manteve-se abraçada a Almon, protegendo-o. ‒ Você que resolveu oferecer.

‒ Como é que você... ‒ O general não precisou de terminar a pergunta, quando a resposta se mostrava tão óbvia. Mas seus pensamentos o levaram para a hipótese remota de não ter sido um evento isolado. ‒ Tem estado a observar-me?

‒ Algumas vezes, sim ‒ admitiu como se não fosse nada. Ela não parecia nem um pouco constrangida.

‒ Então, estou em desvantagem, hein? Você sabe mais de mim do que eu de você.

‒ Posso ter conseguido ver, mas não significa que tenha entendido. Diria que estamos pisando o mesmo terreno.

‒ Ele é seu? ‒ Killian apontou para o animal que se esfregava na grama junto aos pés da moça.

‒ Meu? ‒ A moça mostrou-se desconfortável, abraçando os joelhos dobrados. Ela fazia de seu corpo um escudo. ‒ Ele é meu amigo, não é uma questão de posse. Nada é.

‒ O que você quer dizer com isso? Sinto que esse é um recado para mim.

A nativa deixou cair os membros fletidos e passou a mão direita pelo solo, embrenhando as unhas na terra.

‒ Esta terra ‒ Ela levantou o punho fechado ‒ não te pertence. A nenhum de vocês. Não podem usá-la. Ela não está aqui para ser usada. Está aqui para dar e para receber. ‒ Os dedos abriram-se, como uma flor para o sol, e uma fina camada castanha verteu-se em cascata. O vento, que passou pela palma aberta, reclamou parte da terra para si. A poeira levantou-se entre os dois humanos, desenhando-se uma divisória. ‒ Vocês cortam os ramos que no futuro vos protegeriam da chuva. As árvores, as rochas... ‒ O seu olhar desviou-se para a gruta, cercada dos elementos da Natureza que acabava de enumerar. ‒ Elas também têm vida. Elas traçam o próprio caminho, um caminho em que não nos devemos impor.

‒ Você nos viu cortando as árvores... ‒ sussurrou cabisbaixo, com vergonha de a encarar.

‒ Eu vi o que fazia com "seus homens" do outro lado do rio, sim. ‒ Nileya assumiu a postura ereta que a permitia estar de igual para igual com o homem, ainda que ele fosse uns bons trinta centímetros mais alto. ‒ O vosso erro é terem assumido que tudo ficaria parado à vossa espera, fora da redoma. Só para vocês poderem vir reclamar depois.

‒ Nós temos uma missão. Villeneuve precisa dos recursos desta floresta. Muitas pessoas dependem do nosso sucesso.

‒ E ainda assim, conseguiram sobreviver durante séculos sem nada disto.

‒ Nada é eterno, Nileya. ‒ Ela estremeceu ao ouvir o nome dela associado a uma sentença de morte.

‒ Não será. Se vocês continuarem a interferir, não será.

Movida por uma força invisível, a nativa voltou-lhe costas e começou a afastar-se. Almon estava ciente do estado afetado da amiga e apressou-se a juntar-se a ela.

Não houve uma despedida, muito menos a promessa de um reencontro. Os dois estavam entregues aos seus próprios valores, aparentemente, dissonantes. Enquanto um queria remar para a direita, o outro se lançava para a esquerda. A mesma força que os havia juntado, colocava-os agora em trilhos separados. Talvez tudo não tivesse passado de um grande equívoco do Destino. Mas Nileya, que era a única, entre os dois, que acreditava em tal determinismo, não conseguia equacionar um erro de cálculo dos Deuses, que sempre haviam protegido seu povo. Ela sabia que a história não terminaria ali, só lhe restava rezar para continuar a receber clemência divina. De outro modo, algo lhe dizia que não se encontrava preparada para o que estava por vir. 

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