Capítulo 12 - O peixe farol
As cores do entardecer já pintavam o céu, quando o general regressou ao acampamento. O azul pesado esmagava todos os outros tons em que o sol se multiplicava, em gritos silenciosos de clemência, ávido para permanecer mais um pouco junto daqueles Homens. Movido de curiosidade, talvez, ou apenas por receio do que eles fariam da terra na sua ausência.
Killian caminhava morosamente, sem largar de vista a estrutura de madeira que começava a ganhar forma. Os troncos, amarrados uns aos outros, firmavam já uma base sólida, como uma moldura no solo. A fotografia não era estática e os vários pontos, em pequenos aglomerados de dois a três homens, moviam-se de um lado para o outro, consoante o trabalho avançava. Não sairia dali uma fortaleza, mas a cerca era ambiciosa e os humanos queriam erguer paredes altas o suficiente para cobrir dois homens encavalitados um no outro. O grande espaço desprovido de madeira, na parede voltada para o rio, já deixava antever o local onde ficaria o portão.
A comitiva não era propriamente discreta, e os sons das vozes humanas misturavam-se numa bizarra cacofonia, onde as palavras se emaranhavam. Não havia boa intenção que resistisse à distância, e a comunicação entre aqueles seres mostrava-se menos eficaz do que àquela que usavam os animais irracionais. As palavras mostravam-se egoístas, agarrando-se ao seu significado. Elas persistiam no seu ritmo e volume mesmo na presença de outras. Umas já eram projetadas com a missão de abafar as outras que se atrevessem a invadir o seu caminho. E coitadas daquelas que eram sussurradas, morrendo tão pouco depois! Mas nenhuma delas conseguia atravessar o cerco montado intacta. Nem valia a pena o general esforçar-se. Contudo, ele poderia sentir o tom da agitação esperada para um dia atarefado de trabalho. Nenhum de seus homens parecia escalar a níveis que deixasse antever rivalidades ou irritações. Tudo seguia normalmente.
Não demorou muito para que Killian desse conta do único homem do lado de fora da cerca. Junto à margem do rio, Gaston permanecia sentado em uma caixa. Entre as mãos, uma longa cana curvava-se ligeiramente para as águas onde se perdia o fio amarrado na ponta.
O general parou do lado do ex-prisioneiro e mirou para o ponto vazio onde o outro se concentrava. A superfície do rio camuflava-se de uma calmaria despropositada ao ritual montado.
‒ Quantos já apanhou?
Gaston espreitou o intruso, ainda que o tivesse reconhecido logo pela voz.
‒ Não muitos ‒ confessou, dando de ombros. Ele sacudia a responsabilidade sem problemas. Era-lhe fácil condenar o utensílio, o clima, o rio, até as pobres das vítimas. Agora, nunca lhe passaria pela cabeça colocar em causa a sua competência. ‒ Espero que o passeio não lhe tenha aberto o apetite.
‒ Não foi um "passeio". ‒ Killian reforçou a última palavra, deixando claro o desagrado pela infeliz escolha da palavra. ‒ Não tarda nada e a cerca ficará finalizada. Teremos de saber quais os pontos de interesse a explorar, por onde seguir.
‒ E já sabe?
‒ Não. ‒ A resposta saiu depois de uma longa pausa. O homem mergulhava nos pensamentos como a cana de pesca fazia perante o rio revestido de vida. Nenhum trazia grande coisa à superfície. ‒ Ainda não, mas algo me diz que estou perto de encontrar um bom rumo.
O encontro com a indígena espicaçava a sua consciência. Era tentado a colocar cá para fora o entusiasmo de sua descoberta. Não para se gabar, já que não era dado a artifícios para convencer os outros de seu mérito. Para ele, o valor de um Homem não se media por palavras, mas por ações observáveis. Os olhos advogariam a tese, não os ouvidos, que se deixam desviar por muito pouco. Ele apenas queria partilhar a informação com seus homens. Estava habituado a trabalhar em equipe e o silêncio face a progressos individuais tinha tudo para minar o objetivo em comum. Killian via isso claramente, mas optara por manter a moça nas sombras do lado de lá da margem. Não apenas por estar falando com um ex-republicano em quem não conseguia ainda confiar, mas também por saber que a história rapidamente se dispersaria por toda a comitiva e Jofrey não poderia ficar a par da existência de outros humanos. Pelo menos, não por enquanto. O general sabia da dúbia moralidade de seu superior, seria incauto dar um passo sem ver o terreno em que calcaria em antemão. Teria de agir a solo até estar certo do que fazer.
‒ Deve ter sido intenso ‒ comentou Gaston ao se fixar nos pés descalços do outro. ‒ As botas perderam-se pelo caminho.
‒ Eu tenho um par suplente ‒ disse Killian, sem tentar se justificar. Nem tremeu com a tentativa astuta do ex-prisioneiro de sacar mais qualquer coisa. A posição hirta do general, em contraste com o homem sentado, refletia no rio como uma constatação óbvia da hierarquia entre os dois. Gaston teria apenas de aceitar.
‒ Se não acha nem as botas, quem dirá... ‒ falou entre dentes, trocando um olhar conspirador com as águas que o fitavam de volta.
‒ O que você está dizendo para aí?
‒ Estou chamando os peixes. Pode ser que resolvam aparecer, se falar com eles.
‒ Killian. ‒ A voz doce de Soline surgiu atrás dos dois homens. Havia uma nota de alívio na forma como pronunciara o nome, mesclada no sentimento de insegurança sempre que a jovem se via a tratá-lo de forma tão informal. O general voltou o corpo na direção da recém-chegada. ‒ Meu primo contou-me de sua decisão de ir explorar a área sozinho. Não me parece que tenha sido algo prudente. Demorou um pouco, eu pensei...
‒ Não me aconteceu nada de mal. ‒ Ele gesticulou para o próprio corpo, mostrando que estava inteiro, que não lhe faltava nenhum pedaço. ‒ O medo não nos faz avançar e, como general, não posso dar-me ao luxo de priorizar a minha vida.
‒ Se morrer, também não fará nada por estes homens. Ficarão sem quem os guie.
‒ Tenho a certeza de que seu primo assumiria o cargo de bom grado. Ele já quase o fez. ‒ Killian apontou com a cabeça para a cerca em construção atrás da moça. ‒ Só estou tentando encontrar o meu papel no meio desta história toda.
‒ Não é o único ‒ desabafou Gaston, mantendo o tom de confidência para com o rio. Assumira a atividade da pesca apenas para poder fugir de uma realidade onde não se revia. A missão não lhe era algo pessoal e, por isso, não se sentia minimamente motivado para mover sequer uma palha.
‒ Ao menos, hoje, vai me deixar ver o estado dos seus ferimentos? ‒ Soline firmou a mão na cintura, tentando impor sua posição. Não lhe parecia certo ele estar a lutar por um papel ativo naquela comitiva, enquanto rejeitava, dia após dia, seus serviços como enfermeira. Ela queria cuidar dele, mostrar-lhe que poderia ser-lhe útil. Talvez sua frustração não fosse tão grande, se não houvesse já sentimentos envolvidos.
‒ Não vale a pena. ‒ Gaston interveio perante o silêncio do outro. O homem em pé limitava-se a desviar o rosto constrangido, por mais uma vez querer negar a ajuda que a moça tão amavelmente lhe oferecia. A tentação de concordar só para a agradar já começava a remexer-se dentro de si. Não estaria, contudo, a ser honesto com ele mesmo, se o fizesse. ‒ Ele quer guardar as cicatrizes de recordação. Cada um com suas loucuras.
Soline olhou para o general, analisando-o. Ela tentava perceber se a insinuação do ex-republicano poderia ser verdade. Parecia-lhe um comportamento irracional, para não dizer pior. Nos livros que lera, durante a sua instrução, ela ficara a saber de Homens que viam algum tipo de prazer na dor. Ele poderia não procurá-la, mas agarrava-se a ela como um verdadeiro masoquista. Poderia dizer-se que chegava mesmo a desejar que ela não sumisse por completo, para ser transportado, vez ou outra, para os erros do passado. Era um prazer estranho, aquela sensação de que deixaria de estar completo sem as cicatrizes no peito.
‒ Os erros nunca somem por completo. ‒ Killian sentiu os olhos ardentes da moça sobre si, recriminando-o. Soline tentava aplicar a razão num lugar demasiado estreito para isso. O general baixou a cabeça para o próprio peito, sabendo já à partida que apenas a lógica a demoveria. ‒ Porque haveriam elas de desaparecer? ‒ Com a mão aberta, ele cobriu a ferida mais recente, amparada pelo tecido da t-shirt e pela compressa, logo abaixo.
A pequena ardência, desencadeada pela ausência de analgésicos no organismo, fez com que tudo se tornasse mais real. Sem dor, como poderia ele ter a certeza de que o confronto com a besta realmente existira?
‒ Elas têm uma história para contar ‒ continuou. Erguendo o rosto, o general constatou que a jovem o ouvia atentamente. ‒ É como a Terra, cheia de ferimentos abertos por erros de um passado distante. Nem por isso ela deixou de lutar, mas também não os encobriu.
A imagem dos lagos vermelhos fumegantes assumiu ao pensamento dos três presentes. A brutalidade de um cenário devastado como se fosse carne rasgada de um corpo. A analogia não poderia ter funcionado melhor.
Gaston sentiu um puxão forte através da cana e quase deixou o objeto escapar-se por entre as mãos. Enquanto todos se deixavam afundar no passado, o presente resolvera agitar um pouco as águas.
‒ Aqui vem mais um ‒ gritou entusiasmado, botando-se de pé. O caixote, que lhe oferecera descanso durante uma longa hora de espera, tremeu um pouco com o movimento súbito. ‒ Um apreciador da refeição requintada que preparou, Soline. ‒ Ele grunhiu e seu corpo foi puxado um pouco mais para a frente. Parecia que o próprio rio o queria engolir. ‒ Este é dos grandes!
Ao ver o ex-republicano em tamanha dificuldade, Killian correu a ajudá-lo.
‒ Será da mesma espécie dos anteriores? ‒ Soline perfilou-se com os outros dois, espreitando as águas irrequietas. O olhar fugiu-lhe, por uns segundos, para o caixote aberto do seu lado, onde dois peixes jaziam. Um espaço imenso para duas pequenas criaturas fusiformes de escamas enegrecidas, quase esbatidas no fundo sombrio.
Os homens ignoraram a intervenção desnecessária da moça, e, bem agarrados ao estreito e longo engenho amador, faziam força de dentes cerrados. Os passos que davam para trás, eram curiosamente um avanço na batalha.
Com o calcanhar, Gaston chutou para longe o assento, um mero obstáculo, naquele momento. Como era ingrato! Pobre da caixa que passara a não ter qualquer valor para ele. Trocada por algo que ainda nem visível era.
Uma luz, rarefeita pelas partículas de água, chegava à superfície em pontos dispersos. Um efeito com uma magnitude demasiado reduzida para chamar a atenção dos observadores.
O alimento lá surgiu aos poucos. Primeiro, uma cabeça triangular, quase tão fina como uma leve folha jogada ao vento. Os pescadores foram apanhados desprevenidos, mas vendo que o animal continuava a debater-se, de corpo e alma, lá continuaram a puxar. Depois, as escamas de ouro, ofuscantes mesmo sob a escassa luz do final de tarde, alastraram-se tal qual dois funis, com as bocas voltadas um para o outro. A criatura era realmente extensa e a cauda, de duas extremidades afiadas, demorou a romper da segurança do rio. O peixe farol agitava-se no ar, alertando seus companheiros lá em baixo sobre a cilada em que acabara de cair.
‒ Uau!
Esse foi o único som que Soline foi capaz de emitir perante tamanha espetacularidade da natureza. Ela nem pestanejava com receio de perder algo. Os seus dois companheiros mantiveram os braços firmes na mesma posição, enquanto esperavam pela desistência da presa. Ambos estavam demasiado compenetrados na tarefa para conseguirem ver a beleza que enchia os olhos da garota.
Pouco depois, a dança deu lugar aos espasmos ocasionais. Os movimentos travados pela falta das trocas gasosas, que só eram possíveis em meio aquático. A luz foi sugada para o interior do animal. Uma lanterna sem bateria, sem vida. As escamas ofereciam-se a um bronze arrefecido, reservando os tons dourados aos momentos felizes que experienciaram outrora. Uma felicidade inconsciente, mas nem por isso menos real.
‒ Ninguém passará fome esta noite ‒ concluiu Gaston, ao ver a enormidade da criatura mais de perto. Ele já puxava pelo fio, enquanto Killian se mantinha seguro na sua posição recuada, com os dois pulsos firmes em volta da cana.
‒ Meus homens bem que merecem uma refeição mais caprichada.
‒ O jantar promete!
Gaston segurou o peixe contra o próprio corpo, sentindo a água a ensopar-lhe as roupas. O anzol desprendeu-se facilmente da boca meio aberta do animal. Parecia até mentira que tinha sido aquele pequeno gancho de metal a mantê-lo cativo.
‒ Sim, como vê, o isco funciona. ‒ O tom seguro de Soline parecia denotado de alguma presunção. As desconsiderações do ex-prisioneiro sobre seu trabalho de cientista haviam-na magoado mais do que deixara antever. Quando a autoconfiança já não era muita, o pouco poderia abalar a estrutura instável.
‒ Pois é, amigo, foste enganado. ‒ O ex-republicano suspirou, fitando os olhos pequenos do animal. Desiludia-o a falta de inteligência de seu oponente, já morto. ‒ O bicho para além de repugnante, era demasiado pequeno para te saciar.
‒ As minhocas são ricas em proteínas ‒ corrigiu-o Soline. Ela era uma pessoa calma, mas começava a exasperar-se por não estar a ser ouvida por aquele homem. De alguma forma, isso apenas lembrava-a da falta de respeito constante de seu primo. ‒ E seus movimentos debaixo de água chamam a atenção de alguns peixes.
Não tinha sido fácil encontrá-las. A jovem passara a manhã empenhada em caçar o isco perfeito. Mergulhara as mãos na terra, enquanto arrastava os joelhos na grama. As unhas ficaram imundas, com grãos alojados na pequena e arredondada proeminência. As costas doíam-lhe das sucessivas posições desconfortáveis. E as roupas haviam ficado marcadas da poeira. Sorte a dela que, não tendo trazido seu roupeiro, tinha, ainda assim, opções de vestuário suficientes para se dar ao luxo de se sujar na terra três ou quatro dias consecutivos.
Mas Soline tinha trabalhado bem e Gaston fora obrigado a ter como companhia seres sem olhos e que se contorciam de formas estranhas. Cada vez que pegara em uma minhoca para a fixar ao anzol, o homem havia franzido o rosto em desagrado, sentindo o muco do animal a impregnar-se na pele dos dedos. Ainda tinha de ter o cuidado de não matar o raio do bicho, a pedido da cientista que dizia saber mais do que ele. E, como se não bastasse, ainda as carregava dentro do bolso, no interior de uma caixa com pequenos furos, para que, coitadas, não morressem com o calor.
‒ Não deixa de ser tolo por ter caído na tua artimanha ‒ disse o ex-prisioneiro, depositando o animal na cripta dos peixes. ‒ Quem diria que uma criatura com aspeto tão inocente ‒ os olhos dele se ergueram para a moça ‒, pudesse provocar semelhante estrago.
A jovem agarrou na caixa e pigarreou.
‒ Com licença.
Gaston manteve as mãos sobre as bordas, sem se deixar intimidar pela expressão fechada da cientista. Ele começava a achar que deveria ter um alvo colado nas costas. Não podia ser possível que todos implicassem com ele, até mesmo a garota que parecia temer a própria sombra. Mas, contra todas as probabilidades, ele deu por si a ponderar se Soline seria tão inocente como parecia.
Na sua outra vida, como agente secreto, o homem se habituara a catalogar quem conhecia em uma de duas categorias: aliado ou ameaça. Até então, Gaston descrevê-la-ia facilmente como neutra, um rótulo excecional para casos extremos, mas, naquele momento, ele examinava-lhe o rosto, sem estar totalmente convicto de suas conclusões sobre o caráter dela.
‒ Preciso de analisar os peixes ‒ reforçou Soline, desconfortável com a insistência de Gaston. ‒ Não podemos correr o risco de envenenar toda a comitiva.
‒ Boa sorte com isso. ‒ Gaston sorriu presunçoso e largou a caixa. Ele sabia que o corpo esguio da jovem não estava preparado para carregar com tamanho peso durante todo o trajeto até à carrinha, mesmo que a distância não fosse assim tão grande. ‒ Só espero não ter tido todo este trabalho em vão.
Soline ficou a olhar enquanto o ex-prisioneiro se afastava. Não a importunavam as horas que ele havia gasto sentado numa caixa a pensar na vida, enquanto os outros trabalhavam no duro. Mas ela rezava para que os peixes não tivessem morrido para nada. Se Deus quisesse, eles teriam no rio uma fonte segura de alimentação.
‒ Vamos, eu ajudo você. ‒ Killian ofereceu-se, pegando no outro lado da caixa, antes mesmo da confirmação da jovem.
Os dois fizeram o caminho até à carrinha com um discreto sorriso implantado no rosto. A caixa separava-os, mas os pensamentos dissonantes também.
O motivo da boa-disposição do general não estava ali naquele plano, junto com ele, mas antes num mundo totalmente diferente fixado no outro lado do rio. O peixe farol poderia muito bem ter emanado toda aquela luz, antes de morrer, para avisar seus companheiros, mas, se outra razão ele detivesse, talvez o alvo fosse Killian. Ele, mais do que ninguém na comitiva, começava a querer desafiar a ordem natural das coisas. O rio não estava ali para lhes prover alimento, muito menos passagem. O peixe farol bem que tentou avisá-lo. Agora, estaria por sua conta e risco.
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