Capítulo 11 - Um encontro de almas
Os sentidos de Killian foram dominados pelo cheiro intenso, arrebatador, que se sentia no ar. Todo o seu corpo guiado por esse único estímulo deslocado. Depois de tanto andar, aquela diferença tão saliente no meio que o ignorava era certamente algo que merecia a sua atenção.
O seu olfato nunca tinha sido especialmente aguçado. Ele preferia confiar nos olhos, nos ouvidos, até em um instinto que não tinha nome, nem lugar, do que naquilo que as narinas lhe tinham para oferecer. Um bom soldado é treinado a seguir pistas, a detetar elementos estranhos, mas nunca com o nariz. Aquela seria uma estreia.
A validação de que estava a fazer um bom trabalho não tardou a chegar. O odor adquirira uma identidade mais marcada. O general detetou uma essência floral refrescante, quase como se estivessem esmagando um milhão de pétalas e o ar sugado cada pequena partícula, memorizando-a eternamente. À sua frente, as plantas passaram a ser mais frondosas, mais coloridas. As flores rompiam do solo, dos arbustos rasteiros, das árvores. Naquela zona da floresta, já com o rio esquecido para trás, a vida manifestava-se em abundância. A terra mostrava-se fértil como ele nunca tinha visto.
Ainda assim, ele queria ver até onde tudo aquilo ia. Havia uma nota, uma fina camada, no perfume que destoava de um simples arranjo floral. Ele lembrava-se do cheiro da estufa da mansão e aquele não era exatamente o mesmo.
Quando as árvores sumiram do caminho do general, ele conseguiu vê-la. Uma mancha disforme, com uma área impressionante, circundada pelo verde das variadas folhas no solo. O seu tom rosado parecia uma fantasia. Killian via as pequenas rugas na superfície da água. A lagoa falava com ele, manifestava-se da única forma que sabia.
Ele ajoelhou-se na borda, com algumas das folhas aguçadas a trespassar o tecido das calças, picando-lhe levemente. As plantas tentavam mostrar-lhe que ele estava acordado. A sensação de incómodo, de uma dor ligeira que o provocava, trazia ao de cima a sua consciência. Aquilo não era um sonho.
Ao baixar a mão sobre a superfície cristalina, sem chegar realmente a tocar-lhe, Killian sentiu o vapor de água que ascendia quente. A nebulosidade cercava toda a extensão da enorme cratera, onde era mais densa. Ao estender-se para a vegetação, dispersava-se, perdendo a força. A visibilidade não era das melhores, mas a cor rosada da água era difícil de camuflar, refletindo com os raios de sol que trespassavam a neblina. Um fenômeno daqueles nunca poderia estar destinado a ficar oculto nas sombras.
O barulho de algo a embater na água acordou o homem do transe. A beleza tem a força de anestesiar, por vezes, e ele mostrara-se incapaz de lhe resistir. Ao erguer o rosto para o seu lado direito, ele avistou os círculos a propagarem-se na superfície, ecos do movimento repentino. O epicentro havia-se dado a cerca de quinze metros dele e ainda que não lhe tivesse ouvido os passos, o general estava certo de que uma nova criatura acabara de entrar na água.
Killian assumiu a posição ereta que lhe daria mais vantagem no caso de ter de fugir ou lutar. Não que a primeira realmente lhe passasse na cabeça, no momento. Na verdade, o guarda tinha alguma dificuldade em equacionar a fuga para salvar a sua própria vida. Levar aqueles sob a sua proteção para um refúgio era uma coisa, mas ele? O dever impunha que ele soubesse, com precisão, que tipos de perigos espreitavam por entre as folhas da floresta. Ele não daria as costas ao vazio do desconhecido.
Com a arma apontada para a água, o general seguia as bolhas que, vez ou outra, se libertavam. O caminho era traçado claramente na sua direção. A criatura aproximava-se a um ritmo constante. A meros quatro metros, a água borbulhou mais intensamente e, antes mesmo da última pequena bolha se extinguir, um corpo rompeu à superfície.
Nileya encarou o estranho. O nevoeiro entre eles era apenas um de muitos obstáculos. Ambos se analisavam à distância. Na segurança dos meios que dominavam. Enquanto ela se escondia nas protetoras águas da lagoa, ele construía um forte atrás da arma que empunhava.
Killian não conseguia acreditar no que via. Ele estreitou os olhos para a figura desenhada no vapor de água. As curvas subtis do corpo praticamente desnudo, mostravam-lhe uma jovem mulher. Os estreitos cabelos brancos caíam-lhe para trás, húmidos e grudados nas costas. O tom rosado da lagoa não se impregnara nos fios indomáveis, nem na pele fragilizada pelo sol. Algumas gotas escorriam-lhe quentes pelo corpo, voltando ao seu local de origem, caindo onde a água roçava a cintura pronunciada. O peito era encoberto por um escuro tecido rendado, desfazendo-se em alguns fiapos que balançavam levemente sob o ventre liso. Mais uma vez, o general deixava-se inebriar pela beleza daquele mundo, agora na forma de uma mulher. Custava-lhe a crer que fosse uma miragem, que o inconsciente dele o conhecesse tão bem ao ponto de o provocar com algo que estava longe de ser uma prioridade para ele.
A jovem nativa não sabia o que era aquele estranho objeto que o homem insistia em apontar para tudo. Mas era como se ele se sentisse mais protegido com ele. Nileya não conseguiu evitar sentir pena do ser que não tinha os Deuses para o amparar, mas antes um mero objeto descartável.
O general baixou o braço, deixando a arma esquecida mirando as ervas aos seus pés. A nativa sorriu, parecia que, de alguma forma, ele tinha sido capaz de ler os seus pensamentos. Será que era?, ponderou intrigada.
O sorriso aberto fez com que o homem descontraísse. Os dois haviam cedido, os dois haviam levantado a guarda. Algo começava a erguer-se entre aquelas duas almas tão distintas.
‒ Você... me... entende? ‒ Killian pronunciou as palavras pausadamente. A articulação era meticulosa e num tom alto o suficiente para chegar ao destino. ‒ Você consegue entender-me? ‒ falou um pouco mais alto. Seu semblante descaiu, ele pareceu frustrado ao notar o silêncio da jovem. Eram tantas as perguntas que ele tinha para lhe fazer. ‒ Como é possível você estar aqui? ‒ sussurrou. ‒ Você é humana, como eu. Mas... todos morreram. ‒ Ele olhou para a garota como se enfrentasse um fantasma. Mas ela parece tão real, ponderou já sem saber no que pensar. ‒ A vida fora da redoma não seria possível...
‒ Você é de lá? ‒ Nileya questionou num francês exímio, não obstante o sotaque um pouco mais carregado. A curiosidade fizera-a agir na impulsividade. O general ficou boquiaberto e apenas aí ela se deu conta de que havia acabado de se entregar.
‒ Você fala a mesma língua que eu ‒ constatou Killian.
‒ Não. Eu sei algumas línguas, mas não as devo usar. Epsnim.
‒ O que você disse?
‒ Epsnim ‒ repetiu com a mesma expressão séria. ‒ Os espíritos nos ouvem ‒ traduziu na língua do homem, num tom quase inaudível. O general teve de se inclinar um pouco para a frente para tentar ouvi-la melhor. ‒ Se eu fosse a você, tinha cuidado. ‒ Nileya apontou para os pés de Killian, sustentados apenas nos calcanhares.
‒ A água é tóxica? ‒ Mesmo antes de ouvir a resposta, ele afastou-se da ponta. ‒ Mas você está... ‒ acrescentou sem conseguir terminar. O homem mirou a cintura da jovem, o ponto onde o resto de seu corpo desaparecia. Por um momento, passou-lhe pela cabeça a hipótese de a garota desejar dar um fim na própria vida e ele ser a única testemunha ocular da tragédia. ‒ Vem! ‒ Killian estendeu-lhe o braço, voltando a aproximar-se da lagoa rosada. Algumas pequenas pedras caíram na água com o movimento arrastado de seus pés descalços. ‒ Você tem de sair daí!
‒ O perigo não está na água ‒ explicou, rindo da preocupação despropositada do outro. Ela mergulhou as mãos e ergue-as em concha, deixando o líquido rosado escapar-se pelas frestas entre os dedos. ‒ O perigo está em quem a usa. Esta é a Hajmaná, a Lagoa dos Puros, ela regenera o corpo e limpa a alma, mas apenas daqueles que são merecedores. Os impuros que entram nas suas águas perdem o direito à alma.
‒ E como é que eu sei se sou merecedor?
‒ A resposta não se vê. ‒ Nileya pousou a mão sobre o peito, com o coração a bater fraco contra a palma. ‒ Sente-se.
Ela fechou as pálpebras e tudo à sua volta foi ampliado. A sensação das algas entre os pés, da subida do calor a partir da terra, do movimento da água a contornar as suas pernas, do vento nos seus cabelos molhados, da humidade do ar a acariciar a sua pele... Foi então que ouviu. Um baque na água, seguido de um outro. Ao abrir os olhos, avistou o homem dentro de água, aproximando-se dela.
‒ Que seja! Não devo nada a ninguém. ‒ Não obstante os erros do passado, ele estava de consciência tranquila. Sempre soubera jogar o "jogo" da vida de forma limpa e honrada.
Nileya não previra a ousadia de Killian, isso transparecia no seu rosto. Seu pai informara-a de que as almas do outro lado do rio eram dos seres que tinham dívidas a pagar de outros tempos. Espíritos malignos presos a uma existência dolorosa pela condenação dos Deuses. O homem que avançava para ela, naquele momento, era um deles. Sua alma era impura, segundo uma das lendas mais sagradas da sua comunidade.
A nativa ficou esperando o intruso se derreter diante dos seus olhos, cair para trás inconsciente, ou ganhar raízes, prendendo-se o corpo oco à terra que albergava as águas cristalinas da lagoa, porém, nada disso aconteceu.
‒ Você achou que eu ia morrer. ‒ Killian estacou na frente da jovem. Se ele estendesse o braço, tocar-lhe-ia sem dificuldade. Apesar de estranho, o calor da água não chegava a ser incómodo. ‒ Mas você não me conhece. A lagoa já me aprovou. Será que posso esperar o mesmo de você?
‒ Não sei. Como você mesmo disse, eu não te conheço.
Àquela distância, os dois puderam se ver pela primeira vez. Notar cada pequeno traço do rosto um do outro. O general não conseguiu ficar indiferente aos olhos bicolores da indígena. Um azul, o outro da cor do ébano. Brilhantes e cheios de vida, por debaixo de grossas e negras sobrancelhas, como se fossem um bem precioso a ser resguardado. Alguns dos fios brancos escapavam para a frente e grudavam nas faces pálidas reluzentes. As linhas das suas feições eram subtis, as proporções perfeitamente simétricas e adequadas à sua pequena estatura. Os ombros desnudos, com os ossos salientes desde o pescoço, ficavam bem abaixo dos de Killian. O topo da cabeça nem roçaria no pescoço do homem, na eventualidade de um abraço, não que tal pudesse acontecer. Pelo menos, não por enquanto.
Nileya também encarou primeiro o que lhe era estranho. Os pelos escuros despontavam na parte inferior da cara do homem, realçando as formas angulosas da cabeça levemente quadrada. Os cabelos castanhos deixavam antever breves reflexos mais claros. Como as cascas das árvores, constatou ao lembrar-se dos vários tons que ondulavam pelos troncos acima. O nariz era um pouco achatado e os olhos pequenos demais para a proporção de tudo o resto. Não era um homem propriamente belo, seus traços eram mais rudes, crus, talvez másculos, se é que tal propriedade se pode atribuir a alguém. Como se houvesse homens mais másculos do que outros! Ele não era mais, nem menos do que ninguém, mas a beleza exótica despertara a atenção da jovem que o mirava.
Killian sorriu ao perceber que ela o analisava, tal como ele o fazia. Uma pequena curva que deixara uma cova no lado esquerdo da face.
‒ Mas você poderia conhecer, se quisesse ‒ sugeriu o general, sem desmanchar o sorriso. ‒ Algo me diz que eu poderia aprender muito com você. Quero dizer, com vocês. Tem mais, não tem? Você não é a única.
‒ Eu tenho de ir ‒ apressou-se a dizer, esquivando-se da pergunta. Ela não estava disposta a colocar os seus em perigo. Era a sua família, tinha de os proteger.
‒ Espera... ‒ Killian lançou-se para a frente, abraçando o vazio. A nativa havia jogado o corpo na água, nadando para longe. ‒ Vamos voltar a ver-nos?
O general avançava, sentindo o corpo a submergir cada vez mais. Ele sabia que ficaria sem pé a dada altura, e a moça era demasiado ágil debaixo de água. Ele conseguia ver o movimento agitado da água a prolongar-se para uma distância inalcançável.
A nativa saiu da lagoa num impulso só, era impressionante como tudo aquilo lhe era tão natural. Ela olhou para trás, sentindo as gotas a escorrer-lhe pelo corpo, e encarou o homem parado dentro de água.
‒ Eu vou voltar ‒ comunicou o estranho, que arriscara sua alma por tão pouco.
Nileya ainda não o compreendia, talvez tivesse feito pouco para isso, mas havia coisas de que ela não estava disposta a abdicar. Ela voltou-lhe as costas e correu para o interior da mata.
O jovem soldado viu-se obrigado a tentar descobrir o caminho de volta sozinho, colocando seu sentido de orientação em prática. Ao encontrar de novo uma de suas botas, ele percebeu que estava no rumo certo, que não se havia desviado.
Durante todo o percurso até ao rio, Killian sentiu-se observado. Porém, a sensação, agora, não era tão má assim. Ele agarrava-se à esperança de que fosse a nativa a seguir-lhe os passos. Isso significava que ela não tinha desistido dele e que eles se voltariam a encontrar.
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