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Capítulo 7

      Meu pai e eu voltamos a São Paulo uma semana depois, a fim de encontrar uma escola pública que aceitasse minha transferência. Felizmente encontramos uma, em Perdizes, a poucas quadras da Letícia Ballet. Vou estudar na parte da manhã, já que as aulas de dança serão à tarde.

      Meus últimos dias como bailarina na Fernanda Rossini estão carregados de melancolia e emoção. À todo momento olho para cada barra, cada canto da pequena escola, como se eu nunca tivesse pertencido de verdade a este lugar. Vai ver é porque nunca pertenci mesmo.

      Eva está radiante por eu logo estar indo embora, uma vez que, por mudar de escola, vou perder meu título de solista conquistado há poucos dias sem mesmo ter tomado posse do mesmo. Na prática, significa que a ruiva será empossada como solista, já que entre as perdedoras, foi a que obteve nota mais alta.

      Meus avós vieram de São Bento do Sapucaí para se despedirem de mim, assim como meus tios e primos. Dona Cidinha e Seu Germano me deram um grande abraço, me desejando boa sorte. Não sou de chorar por nada, mas nessa noite fiquei emotiva e meu rosto ficou molhado de lágrimas.

      — Vamos sentir demais sua falta — o velhinho da padaria disse.

      — Também vou sentir falta de vocês — confessei.

      O pior ficou para o dia seguinte. Todas as minhas colegas de balé me deram abraços apertados, me balançando de um lado pro outro e chorando. Dona Fernanda abriu seu coração e confessou que está orgulhosa de mim.

      — É só o começo, minha linda bailarina negra — beijou minha testa. — O mundo vai ouvir muito falar de você.

      Tais palavras produziram em mim um efeito motivador tão grande que meu coração se aqueceu, e eu disse a mim mesma que sim, que era possível.

      Fiz uma das minhas melhores aulas, quem sabe por eu ter uma sensação de liberdade. Tirei fotos de recordação. Sorri como poucas vezes fiz ali dentro.

      Estava quase acabado, mas ainda faltava alguma coisa.

      Gigi me convidou pra dar um passeio de bicicleta e subir até a Vila Inglesa. Estávamos saindo do vestiário, já vestidas com agasalhos, até que Eva entrou, com olhar de superioridade. A típica bailarina de classe alta, bonita e vistosa em seu collant de manga comprida. Todo o seu belo conjunto exalava elegância, mas seus olhos verdes emitiam um brilho de maldade.

       Se colocando na porta pra que nem Gigi e eu passássemos, a ruiva cruzou os braços e me atingiu com um sorriso desdenhoso.

      — Que pena que você não vai poder tomar posse do seu título de solista regional, Bombom — ela entonou sua voz igual a de uma vilã debochada de seriados jovens.

      Gigi me olhou como se me pedisse pra deixar pra lá. Mas eu não iria perder aquela oportunidade.

      — Logo eu conquisto outro, desta vez de primeira bailarina — devolvi, cirúrgica. — Já um cocô de sapatilhas como você teve que esperar eu ir embora pra ter sua vez.

       Eva arregalou os olhos e seu queixo quase caiu ante minha resposta, e antes que ela se recuperasse do soco verbal, puxei Gigi pela mão e passamos pela ruiva, quase empurrando-a contra o batente da porta.

      Agora sim, estava tudo consumado.

                                 …

      Nunca olhei o sol se pondo como estou fazendo agora: como se ele fosse um espetáculo de balé único, que nunca mais vou ver igual. Daqui a pouco ele vai se esconder atrás da montanha, tal como um premieur danseur faz ao ir para uma das laterais do palco, para que as solistas - as estrelas - surjam, junto com a lua, que é a primeira bailarina.

      Quando eu era garotinha, imaginava o céu como um grande palco. Eu era bem mais dócil do que hoje, tinha uma visão romântica da vida e sorria fácil para as pessoas. Mas quando cheguei à adolescência, compreendi que o mundo não é legal. Tem pessoas que torcem por você, tem aqueles que querem te ver na merda.

      Nunca acreditei em Deus, embora não seja uma militante ateia. Mas hoje, aos quinze anos de idade, me convenço que tudo o que aconteceu comigo deve ter um propósito. 

      É essa crença que está me dando força pra não desabar em lágrimas enquanto vejo o sol se pondo e o céu adquirindo uma coloração dolomita, enquanto pergunto a mim mesma: como será minha vida em São Paulo? Como será ficar longe dos meus pais, do meu irmão chato (que eu amo, mas nunca vou dizer isso pra ele não se achar), da escola onde aprendi a dançar?

      Seguro os joelhos, puxando-os para mim, sentada num rochedo de onde dá pra ver lá embaixo a Vila Capivari, com as luzes douradas de seus prédios de estilo suíço acesas. 

      O vento corta e faz muito frio. Só estou usando uma blusa de moletom preta e grossa, com uma calça legging branca e polainas pretas. Meus pés começam a doer dentro dos tênis All Star. Eu devia ter seguido o conselho de mamãe e ter saído de casa com um agasalho mais pesado, além de luvas e gorro. 

      Gigi, ao meu lado, está com os olhos fixos no horizonte. Ela também não está com roupas grossas. Usa uma legging preta, moletom canguru com capuz e tênis Olympikus. Porém, suas mãos estão enluvadas, e um gorro aquece suas orelhas.

      Atrás de nós, nossas bicicletas estão caídas no chão. Tomamos o cuidado de deixá-las longe da pista, já que por aqui passam muitas vans com turistas atrás de cliques dos lindos hotéis e pousadas da Vila Inglesa. Alguns destes prédios são verdadeiros palácios.

      O sol finalmente se recolheu. Algumas estrelas surgem uma à uma, tímidamente, para o próximo ato.

      Um suspiro foge por entre meus lábios. Fecho os olhos, sinto o vento frio fustigar minha pele negra.

      — Bombom — Gigi murmura.

      Direciono meu olhar para minha amiga, que continua a mirar o local onde o sol acaba de pôr.

      — Sim? — pergunto.

      — Como você está se sentindo?

      Inclino a cabeça de leve, voltando a olhar para frente.

      — Um pouco assustada — respondo.

      Gigi solta uma risada, balançando a cabeça.

      — Bombom, a bailarina mais atrevida e arrojada que conheci, dizendo que está assustada? Vivi pra ouvir isso.

      Rio do comentário sarcástico dela.

      — Tudo é muito novo pra mim. Aconteceu tão de repente — explico.

      Gigi suspira. Posso perceber que está emocionada, já que é nossa última conversa. Amanhã, de madrugada, vou à rodoviária e pego o primeiro ônibus para São Paulo, onde vou ficar por um longo tempo. Quem sabe até me formar como bailarina ou até que uma companhia de fora se interesse por mim e me leve.

      E mesmo que eu ainda não tenha partido, Campos do Jordão se tornou passado pra mim.

      — Você se acostuma rápido — minha amiga passa a mão no cabelo por baixo do gorro.

      Dou um sorriso melancólico, assentindo com um leve movimento de cabeça.

      — As bailarinas da sua nova escola são tão boas, como dizem as revistas de dança? — a loura me questiona.

      Olho com gravidade para minha amiga. Respondo que sim com um movimento de cabeça.

      — Elas dançam muito, são focadas, prestam atenção em tudo o que a Letícia passa — pontuo. — No começo da aula, me senti uma criança fazendo aula com uma turma de bailarinas profissionais. Demorei pra me soltar e me convencer que eu podia ir na cola delas.

      Gigi morde a parte de baixo da boca, pensativa.

      — Mas elas são bem metidas, também; parecem ter o rei na barriga — dou um tom irritado à minha voz ao me lembrar de quando entrei na sala. — Ninguém queria me dar um lugar na barra. 

      — Gente igual a Eva tem em todo lugar, amiga. Tem que se acostumar logo com isso.

      — É. Tem razão. Eu não vou à São Paulo para fazer amigas. Vou para aprender, para disputar e vencer competições, e quem sabe um dia estudar e trabalhar com as melhores bailarinas do mundo.

      Giovanna me presenteia com um sorriso afetuoso, e meu coração palpita, emocionado. Nos abraçamos, lágrimas começando a escorrer por nossos rostos.

      É o último parágrafo desse capítulo da nossa história. Mas não é o fim. O final é sempre feliz, com reencontros, abraços, sorrisos, e mesmo não sendo uma garota sentimental, acredito em finais felizes. 

                               …

      Mostro meu bilhete para o motorista, que destaca uma parte, me deixando com outra. Ainda está escuro. O ônibus sai da rodoviária, cruza o Portal, começa a descer a íngreme Serra da Mantiqueira.

      Uma densa neblina mergulha sobre o veículo enquanto ele se projeta em direção à rodovia Presidente Dutra, obrigando o motorista a ser cauteloso nos contornos de curvas. Mas não vejo muita coisa. Cubro minhas pernas com o cobertor, me enrolo, e durmo rapidamente. 

      Só acordo na altura da cidade de Guarulhos e fico desperta até pararmos no Terminal Rodoviário Tietê.

      Já que estou com fome, a primeira coisa que faço após tirar minha enorme mochila cargueira do bagageiro e fazer xixi no banheiro feminino, é procurar um quiosque que serve pão de queijo. Peço dois, além de um copo de café com leite.

      Se eu não tivesse vindo aqui com papai na semana passada, ficaria assustada em ver esse fluxo de passageiros com mochilas e malas. Felizmente, eu me adapto rápido às coisas. Vou direto à bilheteria do metrô, compro um bilhete e atravesso a catraca, esperando junto com uma multidão de pessoas o trem com destino ao Jabaquara.

      A composição vem como um monstro enfurecido e fora de controle, iguais aos passageiros que se jogam em suas entranhas, desesperados que estão para acharem um lugar.

      Fico espremida entre uma senhora idosa com tatuagens nos braços e duas garotas, uma loura e outra ruiva. Ambas tem piercings nos lábios, e a loura está vestida de um jeito muito vulgar: usa um tipo de body regata que lembra um biquíni (toda sua bunda está exposta), e meia calça arrastão, com coturnos nos pés. Há uma grande tatuagem de dragão em suas costas. A ruiva usa minissaia curtíssima com meião até às coxas.

      As duas são bonitas, mas têm mau hálito e falam bastante, e não importa de qual parte de seus corpos meu nariz capte cheiro. Elas fedem.

      Tomo cuidado pra que nenhum velho tarado encoste seu pinto murcho na minha bunda. Sou capaz de dar um soco em quem me tocar. Não suporto a ideia de que alguém me assedie.

      Desço na estação Sé, subindo a escada atrás das duas amigas barulhentas e tão à vontade em suas roupas vulgares, e pego outro trem, da linha 3 (Vermelha), sentido Palmeiras-Barra Funda, e lá chegando, chamo um uber, que não demora a chegar.

      — Rua Caiowaá, número… É isso mesmo? — o simpático motorista pergunta mesmo o aplicativo mostrando o endereço.

      — É — respondo.

      Ele põe minha mochila cargueira no porta malas, o fecha e ponho o cinto de segurança em volta do meu corpo ao me sentar no banco traseiro. Dá a partida.

      Presto atenção em cada prédio da Avenida Antártica, nos ônibus cinza e verde, ou cinza e cor de abóbora. Há muitos edifícios em construção, e tenho a mesma impressão de quando estive com meu pai aqui semana passada: essa cidade não para.

      O motorista puxa assunto, me limito a dar respostas curtas. Não gosto muito de conversar. 

      — Este é o Shopping West Plaza — ele conta, arrumando os óculos de sol enquanto a irritante mulher do aplicativo indica a rua Palestra Itália como rota a ser tomada. — Você pode vir pra cá quando sair da aula de balé.

      Olho para o teto bufando. Queria que o cara ficasse calado.

      — E este é o templo do maior clube do Brasil na atualidade, o Palmeiras. O ALLIANZ PARK. Torce pra que time, moça?

      — Sou corintiana doente — respondo sem humor, mas com orgulho.

      — Ah!

      O rosto do motorista insinua uma careta, o que faz um sorriso provocativo se desenhar em meu rosto.

      Pessoas com camisas alviverdes penduram bandeiras e camisetas desse clube pelo qual eu não torceria nem na próxima encarnação – supondo que isso exista, já que não acredito em outra vida – em varais improvisados da rua Palestra Itália. Todas as casas, bares e restaurantes têm as cores verdes.

      — Mas há muitos shows aqui também — Djalma faz um adendo. — O estádio é tão grande que artistas de fora se apresentam.

      Faço um aham bem esnobe. O motorista se cala.

      Ele para o carro em frente ao estúdio Letícia Ballet. Desço séria, olho para as paredes de tijolos à vista do prédio, a porta dupla de vidro escuro encimada pela placa com bailarina fazendo arabesque. É um prédio lindo, com certeza, digo em pensamento.

      — Aqui está — Djalma me entrega a mochila cargueira.

      — Obrigada — estendo-lhe as notas com algumas moedas.

      Ele entra no carro, e antes que dê a partida, brinco:

      — Moço, o Palmeiras não tem mundial.

      Djalma endurece o queixo, grunhe algo inteligível e sai. Eu não podia perder uma oportunidade de provocar.

      Mal entro no estúdio e o inconfundível aroma de lavanda entra em minhas narinas junto com uma sensação de estar vivendo um sonho. É um novo capítulo da minha vida que começa.

      Dou passos lentos pelo hall de entrada, olhando para as paredes com quadros, fotos das bailarinas que dançaram aqui e deixaram uma história a ser admirada. Os lustres no teto. As prateleiras com medalhas e troféus.

      Incrível, deixo fugir por entre os lábios, dando uma volta em torno de mim enquanto caminho sem pressa, para guardar tudo através das minhas retinas.

      — Bombom! Estávamos à sua espera — Clara se adianta pra me cumprimentar com um abraço e um beijo.

      — Oi — respondo, estranhando um pouco o gesto amigável da secretária da escola. 

      — Quero falar com a Letícia Espinoza — digo, incisiva.

      — Ela está dando aula para o Balé Avançado agora — Clara informa. — Faz alguns minutos que a aula começou.

      — Ah…! Será que eu posso assistir? 

      — Só pode olhar através do vidro. Letícia não abre a porta depois de fechá-la. 

      — Tudo bem — dou de ombros.

      Clara me conduz pelo mesmo corredor por onde meu pai e eu passamos semana passada, mas desta vez subimos por uma escada em espiral e adentramos outro corredor.

      Uma gostosa música clássica tocada num piano adentra meus ouvidos, me fazendo sentir transportada para um conto de fadas. A voz de Letícia se faz ouvir. Relevé, passé, pirouette.

      Paro em frente à uma parede de vidro.

      Diante de mim, nas barras móveis dispostas pela grande sala, a turma do Balé Avançado executa sequências de pirouttes na barra sob as orientações de Letícia. Ela usa camiseta larga com o nome do estúdio e calças igualmente largas, e tem uma postura firme, sólida.

      As bailarinas estão vestidas de várias formas. Todas usam collants, mas diferem entre elas quanto modelos e cores: alguns modelos são regata, outros com manga, nas cores azul, cor de rosa, lilás, e claro, preto (que é a maioria). Elas usam saias tule curtas amarradas em laço nas cinturas.

      — O uniforme das bailarinas da turma avançada é livre, por isso esse mosaico de cores — Clara explica, sanando qualquer curiosidade que eu pudesse ter. A explicação não é necessária. Ela dissera a mesma coisa na semana passada..

      Jordana, a moça com quem vou dividir o quarto no estúdio, está agora executando um rond de jambe par terre. Meus olhos correm pela sala, e se detém por algum tempo numa garota de cabeça raspada com máquina zero. Ela é a única que não usa saia. Tem bumbum grande, bem feito, tatuagens nos braços, e quando se vira, ficando de frente pra mim, vejo que é linda.

      Mas aquela careca brilhante como porcelana é uma visão chocante.

      — Quem é aquela garota de cabeça pelada? — pergunto desconcertada.

      — É a Alice Chamowicz. Ela é nossa bailarina bad girl. Todo mundo repara nela quando nossa escola recebe visitas.

      — Ela tem câncer?

      Mal a pergunta sai da minha boca, percebo que não é possível. A bailarina careca tem uma pele saudável, é forte e flexível.

      — Não — Clara ri. — Ela raspou com máquina zero e fez depilação a laser, pra nunca mais ter cabelo. É o estilo dela.

      — Que louca! Raspar a cabeça…!

      — A Alice é um dos muitos casos de pessoas que têm dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Ela acha que ter esse visual chocante a faz diferente.

      Mordo o lábio inferior, pensativa. A bailarina de cabeça pelada se aproxima de mim novamente, então noto a tatuagem de borboleta em sua nuca.

      — Que idade têm essas moças? — tenho curiosidade.

      — São todas maiores de idade, entre dezoito e trinta anos. A maioria dá aula aqui. Outros são professoras em outras escolas, de São Paulo ou do ABC Paulista. Alice é tatuadora.

      Reparo melhor na sala. Há cinco rapazes. Como sempre, homens são minoria nas salas de aula.

      — Eles são bons — reconheço com sinceridade.

      Letícia se aproxima de uma moça de cabelo escuro, com coque médio, que usa collant violeta com sainha branca, e a ajuda a inclinar o corpo em promenade. É nesse instante que a professora nota que estou assistindo sua aula e acena pra mim, sem sorrir.

      Assisto o restante da aula sem nada perguntar a Clara. Os bailarinos fazem a reverance e aplaudem Letícia em gratidão, saindo da sala um a um com suas bolsas, mochilas, faixas elásticas e garrafas d'água.

      Ela abre a porta e sai acompanhada da Jordana. As duas vêm em minha direção.

      — Oi, Bombom, fico contente que tenha vindo ainda esta semana — ela me abraça. Jordana, sorridente, me cumprimenta com um beijinho. — Seu pai te matriculou numa escola?

      — Sim.

      — Ótimo. O pessoal saiu para almoçar, mas volta daqui a uma hora para ensaiarmos — Letícia direciona seu rosto para a ruiva, que está desamarrando sua cor de rosa. — Jordana, você vai sair para comer?

      — Não. Estou sem fome — a bailarina retruca.

      — Nesse caso, você pode levar a Bombom para o quarto?

      — Claro. Vem, Bombom.

      A ruiva abre uma porta de madeira cor de mogno, e eu entro cautelosa. Há duas camas, um armário e uma pequena estante com livros. Em um dos leitos, há um livro de hinos religiosos.

      — Fique à vontade. Sua cama é aquela — Jordana aponta com a mão para uma cama com lençol azul bebê.

      — Obrigada.

      — Está com fome? Se quiser, pode preparar um lanche na cozinha.

      — Não, eu comi pão de queijo hoje de manhã, na rodoviária. Como pouco.

      — Como quiser. 

      A ruiva tenta de todas as formas me fazer sentir à vontade, sempre com um sorriso afável no rosto, em muitos aspectos me lembrando Gigi. As duas são simpáticas, as duas têm uma risada fácil. Acho que vou gostar de dormir aqui, quando me acostumar.

      — Esta cama foi posta especialmente pra mim, ou outra pessoa dormia aqui? — pergunto.

      — Eu dividia com uma moça. Ana Júlia. Ela era de Salvador e foi contratada para dar aula de Jazz para as crianças, mas discutiu com a Letícia e foi mandada embora. Mas não vale a pena falar sobre ela, nem sobre ninguém que não acrescentou nada aqui.

      Percebo que há um teor de azedume nessa última parte da frase da minha colega de quarto.

      — A Letícia é bem prática em termos de trazer pessoas ou cortá-las, né? — faço uma observação, já tirando minha calça legging e ficando de calcinha.

      — Para a Lê, prego que se destaca em madeira merece levar martelada. Mas isso só vale com quem desagrega. Com pessoas que se destacam de um jeito positivo, que dançam muito, que querem aprender, ela é um amor de pessoa — Jordana olha para um lado e para o outro, se aproxima de mim e sussurra no meu ouvido:

      — Mas só fora da sala de aula.

      Rimos juntas. Professoras de balé são iguais em todos os lugares.

      Olho então para o livro de hinos.

      — De que igreja você é? — pergunto, curiosa.

      — Sou crente, da Congregação Cristã no Brasil. Este livro é da irmã do meu noivo. Ela toca órgão. É o único instrumento que mulheres crentes tocam.

      — Legal — dou de ombros. Puxo pra cima a calça de moletom.

      — E você, tem alguma religião?

      — Não tenho religião. Sou ateia.

      — Ah!

      O rosto de Jordana adquire um aspecto diferente quando informo que sou adepta do ateísmo, como se não acreditar em Deus fosse um possível motivo para não sermos boas amigas.

      Ela sorri porém, me mostrando que talvez eu esteja enganada.

      — Quantos anos você tem, Jordana? — abro campo para outra etapa de perguntas e respostas.

      — Tenho dezenove. E você?

      — Quinze.

      — Então vai ser da turma do grade 7?

      Dou de ombros.

      — Não perguntei pra Letícia. Mas acho que sim.

      Nos viramos ao mesmo tempo quando ouvimos batidas na porta. Alice está parada, em posição relaxada, com um cotovelo apoiado na madeira e outro braço na cintura. A careca de porcelana dela brilha por causa da luz da lâmpada do corredor projetada nela. Usa calça de moletom e uma camiseta sem mangas do Metallica, as tatuagens à mostra, e dois brincos de argola nas orelhas.

      — Tô indo comer alguma coisa. Quer vir comigo? — empina o queixo.

      — Não Alice, obrigada — Jordana sorri, sempre simpática. — Estou sem fome. Conhece a nova aluna do estúdio? — segura minha mão. — A Bombom veio de Campos do Jordão.

      — Oi — aceno com os dedos.

      — Legal — Alice diz seca. — Seja bem vinda.

      — Jô, daqui a uma hora volto pra gente ensaiar. Bye, meninas — a bad girl sai.

      Minha boca se abre, estou espantada com o que acabei de ouvir. Aquela garota sem nenhum fio de cabelo na cabeça me esnobou?

      — O que foi isso? — pergunto, perplexa.

      — É o jeitão dela — Jordana minimiza. — Rabugenta, mal humorada, sarcástica, mas com o tempo você se acostuma.

      Dou de ombros. Faço uma pequena nota mental: nunca espere ser recebida com abraços e flores. Esteja sempre pronta pra te tratarem como um nada, assim vai poder escolher as pessoas que querem mais próximas de você.

      — Ah! — Jordana fica em pé. — Ali é o banheiro. Caso você não se sinta à vontade de tomar banho no vestiário, por causa dos chuveiros não terem divisórias separando, pode tomar aqui. Ok?

      — Obrigada — fico contente por ter essa opção. — Não gosto de ficar pelada na frente de outras meninas.

      Jordana ri e balança a cabeça.

      — Se me dá licença, vou pra sala de aula escolher as músicas que vou usar na aula que vou dar.

      A ruiva acena alegremente com os dedos, pisca um olho pra mim e sai. Sozinha no quarto, olho ao redor estudando cada detalhe, constatando de novo que é um aposento confortável.

      Cansada da viagem, me deito de costas na cama com os braços atrás da cabeça. Um filme passa diante de mim. Toda minha vida se desdobra em flashes. Meu primeiro dia no balé, os primeiros passos difíceis que aprendi. Minha primeira pirouette.

      Minha vida não teria graça nenhuma não fosse a dança. Não consigo imaginar o que eu poderia gostar de fazer além de viver nesse meio, meu caráter foi moldado pela vivência nos palcos, pela competitividade, pelo gosto de disputar e vencer.

      Não é apenas por mim, mas por todas as garotas pobres e negras como eu que tenho que dar meu máximo, aproveitar cada oportunidade que surja à minha frente e passar por cima de todos os obstáculos, preconceitos, quebrar paradigmas, pra que, quando eu envelhecer e olhar pra trás, me orgulhe da minha trajetória.

      Tendo um vislumbre de futuras disputas em palcos, um sorriso surge em meu rosto ao mesmo tempo em que minhas pálpebras ficam pesadas. 

       Acabo adormecendo.

      Acordo faltando quinze minutos para as duas.

      — Merda! — exclamo.

      Me levanto como que jogada pra cima por uma mola e ponho a mochila nas costas. Saio às pressas pelo corredor, desviando ágilmente de garotas que aparentam ter minha idade e de moças que aparentam ter a idade da Jordana. Estas últimas estão indo para a sala onde estavam fazendo aula há pouco. Com certeza, agora vão ensaiar.

      Graças à minha boa memória, encontro o vestiário, mas uma cena impactante aparece diante de mim quando entro: em meio à garotas de calcinha e sutiã, duas ou três estão nuas. Todas conversam em voz alta, igual as garotas que vi no trem hoje de manhã. Uma delas fala a palavra rola, interrompendo-se quando me vê.

      Todos os olhos se voltam pra mim – a estranha no ninho – e me avaliam dos pés à cabeça.

      — Oi — digo sem graça.

      Uma moça de cabelo castanho vira o rosto acintosamente para o lado. É a mesma garota que arrasou naquela aula que eu fiz e que me olhou com indiferença. Ela está pelada e sentada num banco de madeira, cortando a unha encravada do dedão do pé com um cortador, e ao terminar essa tarefa, puxa a meia calça cor de rosa e o collant regata preto ao ficar em pé.

      As outras retribuem ao meu cumprimento, pelo menos, com um oi apagado, quase inaudível.

      — Bombom!

      A garota que me ofereceu um lugar ao lado dela na barra naquele dia se adianta e me cumprimenta com um beijinho.

      — Vamos ser colegas, então? — ela diz alegremente.

      — É… — falo vagamente com um sorriso, ainda impactada com o cenário de nudez explícita à minha volta. — Desculpa, você guardou meu nome, mas não sei o teu.

      — Pamela.

      — Satisfação, Pamela.

      A garota perfeita se olha no espelho como se mirasse a oitava maravilha do mundo, começa a fazer um coque médio.

     Ela é inumanamente linda. A pele branca quase translúcida, seu cabelo louro-escuro, liso, e olhos azuis claros, fazem-na parecer uma daquelas princesas da Disney.

      — Você não vai se trocar? A aula começa daqui à pouco e a gente tem que fazer aquecimento — ela me pergunta com indiferença.

      — Claro. É que…

      — Tem vergonha de ficar pelada na frente de meninas? — me olha pelo reflexo do espelho.

      A pergunta tem um quê de sarcasmo, que conheço muito bem.

      — Não precisa ter esse recato. As duas bailarinas lésbicas daqui foram embora faz tempo. Tudo bem, tem a Alice, mas as mulheres do Balé Avançado usam outro vestiário. Fique à vontade.

      — Garota, eu te conheço? — pergunto com petulância.

      — Rebeca. E a dona desse apelido exótico… Bombom…! Tem um nome?

      — Sofia — respondo secamente.

      — Só Sofia? Não tem um sobrenome?

      — Que importância tem meu sobrenome?

      — Ah, mas tem muita importância. Eu sou Rebeca Horowitz. Sou judia. Meus pais são donos da rede de hotéis Horowitz, espalhada pelo Brasil. Um sobrenome conhecido te abre portas, te dá visibilidade, um passo à frente.

      — Mas não no balé — discordo, cruzando os braços e olhando bem dentro dos olhos castanhos da garota esnobe. — O que conta na dança é o talento e o trabalho. E talento eu tenho, já que fui convidada pela dona da melhor escola de balé de São Paulo pra estudar em sua escola. À propósito, você também recebeu uma bolsa cem por cento integral pra estudar aqui? Ou o dinheiro dos seus pais é que paga sua mensalidade?

      O sorrisinho esnobe de Rebeca se desfaz pouco a pouco, ao passo que o meu aumenta, junto com um sutil movimento de elevação de queixo que faço. Ela é imponente, alta, e eu sou baixa, mas tenho certeza que a deixei de quatro.

      As outras bailarinas me olham como se eu fôsse uma ET, nada dizendo. Uma coloração vermelha tinge o rosto branco da bailarina esnobe, que derrotada, guarda suas coisas na mochila da SoDança e sai me olhando por sobre seu ombro, sem calçar suas sapatilhas.

      Pamela, boquiaberta, intercala olhares entre a porta pela qual Rebeca sai e eu, segura minhas mãos e dá um gritinho.

      — Amiga, o que foi isso? — bate palmas. — Você pôs moral naquela perua deslumbrada.

      — Na minha antiga escola tinha um cocô de sapatilha igualzinha a ela. Sei como lidar com gente assim.

      — Adorei!

      — Você falou pra ela o que a gente queria falar faz tempo. Mandou bem — uma garota diz sorrindo ao passar por mim.

      — Bem vinda à Letícia Ballet — uma terceira fala.

      Os rostos sérios das meninas agora dão lugar a sorrisos, o que me deixa mais à vontade. Compreendo que ter personalidade é muito importante aqui, porque as pessoas passam a te respeitar, e respeito é uma coisa de que não abro mão.

      — Então? — Pamela pergunta. — Não vai se trocar?

      — Claro — dou de ombros. 

      Tiro collant e sapatilhas da mochila, a camiseta, a calça, ficando só de calcinha e com os seios expostos, com esparadrapos nos mamilos. Mas expôr meu sexo, nem pensar.

               
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