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Capítulo 5

      Termino minha série de aquecimento fechando espacate frontal, descendo meu tronco até encostá-lo na minha perna esticada à frente. Sinto demais os músculos das coxas mas sou capaz de puxar meu pé flexionado.

      Parece que o músculo da minha panturrilha vai se partir. Nem toda bailarina tem uma relação harmônica com a dor, e entre as pequenas é ainda pior. Mas é a dor muscular o melhor feedback de que estamos evoluindo, obtendo o tão sonhado alongamento de bailarina pra abrir espacate em grand jeté no ar. 

      Tanto tempo fazendo balé me ensinou vários truques pra enganar meu cérebro quando começo a sentir dor. Um deles (e quem sabe o truque infalível): respire. Sempre. Inspirar ar limpo e soltar ar sujo manda oxigênio para o cérebro, relaxa a musculatura e limpa o sangue, além de te dar leveza. É como uma morfina que age no corpo e mantém sua mente focada em suportar o tempo de alongamento.

      Eva e Gigi estão à minha frente e de cara uma pra outra em posição de sapo, com suas vaginas, pernas e tornozelos tocando no chão ao mesmo tempo. Pelo menos não sou a única a sentir os efeitos de duas semanas sem fazer aula. Nós estamos duras como gesso e fora de forma.

      Me levanto e ando até meu lugar na barra, por questão de conforto, tirando o collant da minha bunda. Algumas bailarinas, como a Eva e a Andressa, não ligam. Já eu odeio quando meu maiô vira um fio dental.

      — Boa tarde — dona Fernanda nos cumprimenta com um sorriso ao entrar.

      — Boa tarde — o pessoal responde. Fico de frente para a barra treinando elevações de pés para terminar de aquecer os músculos das panturrilhas.

      — Espero que tenham aproveitado bastante suas férias — nossa professora se coloca diante do espelho —, porque até o final do ano vamos dançar em várias cidades, inclusive em São Paulo.

      Que massa, escuto uma bailarina vibrar atrás de mim.

      Eu desmistifiquei faz tempo o conceito de que São Paulo é que tem os melhores festivais, já que há ótimas competições de dança no interior do Estado e também no litoral. Graças à iniciativa pioneira de produtoras como a extinta Alliance e a toda poderosa Promoarte, o balé cresceu e se espalhou por cidades sem tradição artística. 

      — Bombom — estou erguendo minhas polainas pretas até meus joelhos quando dona Fernanda me chama.

      — A cerimônia de posse do seu título de solista será daqui a três semanas em Taubaté — ela informa. 

      — Certo — respondo.

      — Traga seu figurino, preciso fazer modificações nele.

      — Ok.

      Dona Fernanda dá um meio sorriso, e como não tem mais nenhum lembrete ou comunicado, anda até o suporte onde fica o aparelho de som.

      Olho para meu corpo no espelho, constatando que apesar de estar um pouco enferrujada, continuo magra. Meu coque de bailarina está bem fixado com grampos e preso com redinha. Só preciso de uma meia calça nova — a cor de rosa que estou usando tem um desfiadinho na lateral da minha coxa.

      Pensei em pôr um casaquinho quando sai de casa. Não achei que fôsse esfriar. Se bem que, como jordanense eu devia saber que o tempo muda no alto da serra, e mesmo usando collant preto de manga comprida, não importa a época do ano, meu corpo sente uma necessidade urgente de se mexer.

      — Frente à barra, pés em sexta posição — dona Fernanda orienta e Gigi estala o pescoço quando fica do meu lado.

      Louca, penso.

      O aquecimento ajuda seu corpo a acordar e a previnir lesões. Não dá pra entrar numa sala de aula e já ir se esticando como borracha ao demonstrar developés e detirés. Nosso corpo é muito importante pra assumir um risco desnecessário de se machucar.

      Eu nasci com alongamento natural. É uma benção dos céus – por mais estranho que essa expressão soe, já que não acredito em Deus e em nada do que as religiões dizem.

      Nas formações de duplas para os exercícios de diagonal, alinho desafiadoramente ao lado da Eva. A ruiva de pernas compridas voltou motivada das férias, acho que não ficou nenhum dia sem treinar. Meu saltos não saem tão altos como eu costumo executar, mas são melhores que os da garota esnobe que nunca fez esforço pra esconder que eu a incomodo. Dona Fernanda espera a última dupla se apresentar pra dar um puxão de orelha nela, lembrando-a que bailarinas de pernas longas como as dela não podem dar saltinhos.

      Perco equilíbrio nos tour piqués e quase caio, mas no último momento me recupero a tempo de evitar ser abalroada por Gigi, que vem girando atrás de mim como um pião.

      A aula propriamente dita dura quase duas horas. 

      Todo mundo se senta encostado à parede pra me ver ensaiar. Ter ganhado o título de solista só me deu mais responsabilidade. Embora os jurados dos festivais da Pulse nem olhem pra mim de agora em diante, Manuela de Almeida não aceita que suas bailarinas não arrasem no palco, e eu não posso me acomodar. Não tenho o direito de me acomodar.

      A mestra de dança gesticula, bate nas pernas, pede em alguns momentos que eu levante a cabeça e noutros que eu preste atenção nos meus braços. Várias vezes ela para a música pra me corrigir, o que me dá uma sensação enganosa de não ser boa.

      Peço calma a mim mesma. Me lembro que toda boa bailarina de companhia passa por isso todo dia e não surta. 

      Termino o ensaio mentalmente esgotada, encurvada sobre meu corpo e com as mãos nos joelhos. Dona Fernanda se aproxima de mim, fico ereta para olhá-la, e seu semblante é sério. 

      — Você está contando demais o tempo — ela observa. — Tem que fazer parecer mais natural, espontâneo. Tem que deixar a personagem entrar em você.

      Um suspiro escapa da minha boca. Acato quieta a observação da idosa, me limitando a acenar afirmativamente.

      Ela sustenta seus olhos nos meus por longos segundos que parecem uma eternidade, sem nada dizer. Parece me perscrutar por dentro, tentar buscar uma verdade oculta, e ao me sentir invadida, direciono minha atenção para as bailarinas sentadas no chão junto à barra embutida na parede. Entre elas está Eva, braços cruzados e cenho franzido, com a boca apertada numa linha fininha, como que me desafiando.

      — Pensei que você fôsse voltar motivada do recesso de férias, mas pelo visto me enganei — existe uma certa decepção nas palavras dela.

      Não acho que seja pra tanto. Caramba, fiquei duas longas semanas longe disso tudo, então é normal eu estar meio perdida.

      — Descanse um pouco — ela pede. — E pense no que falei. Espontaneidade.

      Balanço a cabeça em afirmação, volto para perto da Gigi.

      Me sento expelindo o ar, irritada comigo mesma. Agora é Eva quem vai pra frente ensaiar sua variação clássica.

      — Eu achei que você foi bem — minha amiga segura minha mão.

      Fecho os olhos.

      — Mas a professora não achou.

      Não adianta a gente achar que está mandando bem num ensaio, quando um olhar de fora mais apurado vê seus erros e aponta suas fraquezas. A dança só é um mundo de sonho pra quem não entende de fundamentos do corpo em movimento e fica ali na plateia te assistindo, e que te aplaude depois que você se apresenta. Qualquer movimento que você fizer vai parecer incrível, todo bailarino ama se sentir reconhecido e adora essa interação legal com seu público.

      Mas são os profissionais que ficam na coxia e te ensinam tudo o que aprenderam na juventude com outros mestres é que te ajudam a crescer como pessoa e como artista. São as críticas, e não os elogios, que nos fazem melhorar. 

      Saio da sala junto com a Gigi e com outras duas garotas depois que todo mundo que tem balé pra dançar ensaia. Tiro um copo de café da cafeteira, me sento um pouco no sofá, zapeando por páginas aleatórias no meu celular enquanto as meninas conversam.

      Ao procurar por vídeos de apresentações de balé, o aplicativo me direciona para uma apresentação recente de uma bailarina chamada Jordana Passos, em Amsterdã. O vídeo faz parte de uma série de registros da Letícia Ballet. Curiosa, clico no contemporâneo.

      Os movimentos, as linhas dos braços e pernas da garota, são limpos, e a expressão do rosto dela é perfeitamente artística. É como se ela não estivesse dissimulando, mas fôsse a própria personagem do balé que ela está executando. Não por acaso o vídeo seguinte, em que ela concede entrevista à uma emissora de tv, informa que ela é Primeira Bailarina da Letícia Ballet.

      A conversa entre as garotas não me interessa, então continuo assistindo aos outros vídeos de outros bailarinos da Letícia. Chego à conclusão de que aquela escola de São Paulo não é uma ótima escola. É uma super escola. E seus alunos estão à anos luz de distância de nós.

      — É incrível — falo impressionada.

      — O que é incrível? — Natália pergunta.

      — O que os bailarinos desta escola fazem. Olha — ponho meu celular diante da minha colega, que termina de tomar seu copinho plástico de café enquanto presta atenção no vídeo.

      Agora é um garoto louro chamado Angel quem está dançando. Uma variação de Carnaval em Veneza, na cidade de Turim. Na legenda estão escritas várias coisas em inglês (que eu não sei), mas reconheço o número 1, que significa que ele obteve a primeira colocação.

      — O cara é bom — Renata fica ao lado de Natália.

      — Todos eles são bons — corrijo.

      Encontro os olhos de Gigi, fixos em mim. Pela primeira vez não consigo imaginar o que está pensando, como se estivessemos fora de sintonia.

      A Letícia não foi arrogante ao afirmar que dava aula numa escola que é referência no ensino da dança clássica. Um pouco jactante, mas não convencida. As palavras dela estavam bem embasadas.

      Então percebo uma irritação inconfessa surgir nas feições da minha amiga, que se levanta soltando um suspiro à caminho do vestiário.

      — O que você tem? — pergunto assim que entro atrás dela.

      — Você não para de falar dessa escola, Bombom. Meu Deus, parece obsessão — a mochila da minha amiga cai no chão assim que ela abre o armário de metal. Calcinhas, uma calça de moletom, camiseta e blusa se misturam num bolo disforme junto com o collant que ela tira.

      — Nada a ver! Só fiz uma observação elogiosa do pessoal da Letícia Ballet.

      — Bombom, eu vi seus olhos brilharem quando você assistiu os vídeos deles. Seu olhar era o de uma criança que vê o mar pela primeira vez.

      Fico com a boca semiaberta com as palavras que escuto Gigi dizer.

      Ela suspira, anda até o lavatório, se volta pra mim.

      — Eu acho que você devia ir a São Paulo e conhecer aquele estúdio.

      Agora minha boca se escancara. Eu esperava ouvir qualquer coisa, desde um larga a mão de ser idiota, é só uma escola de dança igual a nossa, só que em São Paulo, ou então não acredito que você quer abandonar a gente.

      Se eu não conhecesse minha amiga, diria que ela está de zoação comigo. Mas não. Vejo que seus olhos agora têm um brilho sincero.

      — O quê? — pergunto.

      — O que você ouviu, Bombom. Ao invés de ficar imaginando como é estudar na Letícia Ballet, vai lá, já que a professora te convidou pra conhecer o estúdio dela, e faz uma aula experimental, sem compromisso. E se você gostar, se achar que vale a pena, agarre essa chance.

      — Gigi…

      — Só escuta. Está na cara que você não se concentrou hoje na aula porque sua cabeça tá em outro lugar. E vai ser assim todo dia, até você decidir seguir outro caminho. Você tá sonhando grande, e o que você quer não está mais aqui. Então, vá até São Paulo e conheça o estúdio da Letícia Espinoza. Não é isso o que você quer?

      — Eu não sei! — jogo as mãos para o alto e apoio a cabeça numa das portas. — Eu não sei, Gigi. 

      A loura vem calmamente até mim, passa o dorso do seu indicador no meu rosto. E assim como quando minha mãe conversa comigo, me sinto de repente invadida por uma estranha tranquilidade.

      — Preciso pensar — respondo.

      Gigi me oferece um sorriso solidário acenando a cabeça positivamente de um jeito tão sutil que é quase imperceptível.

      As palavras da minha amiga se mostram verdadeiras. Por mais que eu me esforçasse, me arrebentasse na aula e pedisse a mim mesma foco, não conseguia me concentrar na aula.

      Então, depois de quase uma semana sendo advertida quanto ao meu esmorecimento e perda de pegada, decidi que precisava tomar uma atitude: comunicar dona Fernanda de que tinha interesse de ir à São Paulo.

      Espero pelo fim do meu ensaio. Sou a única bailarina da sala. Todo mundo foi embora e estou terminando de ensaiar pela última vez minha variação de Coppélia.

      Sinto as pontas dos meus pés em carne viva e uma dor opressiva numa unha encravada do meu pé esquerdo me incomoda bastante, a ponto de me fazer quase derramar lágrimas, mas minha mente está distante da terra. Lembro a mim mesma que eu sou mais forte que a dor.

      Faço uma reverence sorrindo para minha imagem no espelho, fazendo de conta que meu reflexo é uma plateia imaginária. Dona Fernanda se aproxima de mim e me encara séria, e mesmo acostumada há mais de dez anos com esse semblante fechado, agora é diferente.

      — Você está dentro do tempo, Bombom, mas precisa melhorar algumas coisas. Controlar essa sua força muscular absurda é uma delas. Às vezes você emprega uma força que não é necessária.

      Ouço minha professora em silêncio. É assim que aprendi e não vou mudar.

      — Vou fechar a escola agora — dona Fernanda anda até o suporte para pegar seu molho de chaves com a carteira. — Corra se trocar, a gente pode comer um lanche no seu Germano.

      Respiro fundo. Busco coragem pra falar o que preciso, e antes que minha consciência me acuse de estar sendo ingrata com a mulher que sempre acreditou em mim e sempre me ajudou com bolsa integral e todo tipo de apoio, me aproximo dela, pigarreando pra que preste atenção em mim.

      — Dona Fernanda, eu preciso conversar com a senhora. Podemos?

      Minha professora franze o cenho, ajeita os óculos de armação redonda sobre o nariz.

      — O que foi, Bombom? — ela levanta um pouco o queixo.

      Respiro fundo.

      — Lembra daquele dia em que a senhora pagou minha aula com a Letícia Espinoza? Ela conversou comigo depois. Disse que ficou encantada com a minha técnica de dança e me convidou pra dançar no estúdio dela em São Paulo.

      Dona Fernanda arregala os olhos. Seu rosto ganha uma tonalidade que não sei dizer se é surpresa ou ressentimento por imaginar aonde quero chegar.

      — O que você respondeu? — pergunta.

      — Na hora eu recusei o convite, porque até então eu estava feliz aqui — estou sendo sincera. — Mas ela disse que os bailarinos da Letícia Ballet dançam em festivais importantes, até em outros países, e aí eu fiquei balançada, porque eu sempre quis dançar em palcos de outros países. Mas mesmo assim, eu disse não. Só que…

      — Só que…?

      A professora mantém seus olhos fixos nos meus sem piscá-los. 

      — Ela me prometeu uma bolsa integral de estudo, além da possibilidade de brilhar nos melhores festivais do Brasil. Eu assisti aos vídeos dos bailarinos e bailarinas dela. E achei simplesmente incrível como eles dançam. Eles têm graça, técnica, força e leveza, e eu quero isso pra mim. Eu sinto que o que falta pra mim está lá. Dona Fernanda, eu sou grata por tudo o que a senhora fez por mim, ensinando uma garota negra e pobre a dançar como uma princesa, mas eu quero mais. Eu preciso de muito mais. A senhora entende?

      — Bombom — dona Fernanda ergue a palma da mão em advertência. Paro de falar no mesmo instante.

      A velha bailarina fecha os olhos suspirando pesadamente, anda em direção à porta. Penso que a qualquer momento dirá que está decepcionada por eu me mostrar tão ingrata depois de tanto trabalho que fizemos juntas.

      Sinto uma súbita dor no peito ao me lembrar de tudo o que passamos juntas. Das vezes que eu saia da escola e vinha correndo pra cá e chegava antes de todo mundo para ajudá-la a varrer o estúdio e fazer aula particular. De quando todo mundo ia embora e nós duas assistíamos filmes sobre balé. De quando eu passava a noite no estúdio, dormindo num colchonete, após a aula acabar tarde e eu ligar pra casa avisando a fim de meus pais não se preocuparem. Das broncas, das correções, das vezes em que eu voltava com medalhas e troféus e nós duas nos abraçávamos felizes pela nossa conquista.

      Essa mulher não foi só minha mestra. Também foi como uma mãe, uma amiga e confidente. Me dói muito ter que falar o que estou sentindo, mas não posso ignorar que eu tenho que correr atrás dos meus sonhos.

      — Não precisa dizer mais nada — a idosa diz. — Eu sei. Você quer estudar em São Paulo, não é?

      Aceno afirmando.

      Dona Fernanda vem até mim. Uma lágrima cai de seu olho enquanto suas mãos me seguram pelos ombros. Ela sorri, um sorriso triste e ao mesmo tempo compreensivo.

      — Eu não tenho o direito de impedir nenhum dos meus alunos de fazerem o que lhes parece o melhor. Eu formo bailarinos para o mundo, não para mim.

      — Professora…

      — A sua atitude é a de uma garota forte, que sabe o que quer da vida, e eu sinto muito orgulho de você e da bailarina que se tornou.

      Fecho os olhos. Tenho a impressão de que vou chorar a qualquer momento, mas eu não sou disso. Sou avessa à lamentações, à choro. 

      — Não se diz não à Letícia Espinoza — dona Fernanda ressalta dando um beijo na minha testa. — Faz a tua aula teste no estúdio dela e vai sem medo. 

      Correspondo ao gesto de apoio dela com um sorriso. Contrariando minha natureza de bailarina inabalável, sentindo meu coração bater forte, me deixo ser vencida pela emoção e uma lágrima pequenina corre pelo canto do meu rosto.

                             …

      O ônibus da viação Pássaro Marrom desce como serpente pela rodovia de curvas sinuosas. Minha cabeça está colada ao vidro frio, concentrada na play list de funk e techno que toca no meu lugar.

      Tantas vezes olhei pra essa paisagem e só agora concedo um olhar mais atento à linda paisagem lá fora, com árvores, desfiladeiros e o sol já aparecendo em sua totalidade sobre o horizonte. Alguns raios do astro luminoso entram no carro. Ainda faz frio, o que é normal, porque estamos no segundo mês do inverno.

      Meus pés parecem sorvete dentro do meu tênis. Um par de polainas mantém minhas pernas quentes e estou usando uma blusa grossa de moletom com capuz. Estou usando a calça legging branca que sempre uso pra caminhar. Por alguma razão, acredito que ela me dá sorte porque uma coisa legal acontece sempre que a uso.

      Mesmo não sendo uma garota de fé, eu penso positivo sempre. E algumas peças de roupa me ajudam a ficar focada sempre em vencer. Até hoje guardo as fitas das primeiras sapatilhas de ponta que usei, mantendo-as sempre na minha mochila.

      Canto baixinho o refrão do funk da MC Lara, que diz a garota vai deixar o cara sem fôlego, e olho fugazmente do meu lado pra ver se meu pai está com um semblante de desaprovação. Ele não curte funk. Diz que as letras das músicas são obscenas, mas não ligo. Eu curto e não tô nem aí.

      Seu Marcelo está teclando o celular, absorto com as notícias de uma página esportiva. Me dou conta que uma das vantagens de morar em São Paulo é poder assistir jogos do Corinthians (meu time do coração) na Arena Neoquímica, coisa que nunca pude fazer até hoje. Imagine uma corinthiana apaixonada como eu ter ficado quinze anos sem nunca ter ido à um estádio torcer pelo seu time.

      É em São Paulo que tudo acontece, como seu Germano salientou naquele noite, depois do meu ensaio, quando contei à dona Fernanda que queria estudar na Letícia Ballet.

      Flashback on:

      Nós duas fomos a padaria. Comemos uma omelete (que ela pagou), conversamos com seu Germano e comuniquei que iria embora de Campos do Jordão. Ele me deu um abraço, me desejou sorte.

      — Vou sentir sua falta, Bombom — ele disse.

      — Eu venho visitá-lo sempre que puder — prometi.

      Eu não tinha contado ainda aos meus pais sobre meu projeto de estudar em São Paulo. Esperei mais três dias depois da minha conversa com dona Fernanda, e escolhi uma hora que parecia propícia: o café da manhã.

      Naquele começo de manhã nos sentamos pra comer pão com margarina e tomar café. Meu pai havia voltado tarde na noite anterior mas acordara cedo, e Cadu dava sinais de que não implicaria comigo. E meus pais estavam especialmente falantes e alegres.

      Aquele era o momento. 

      Conversamos sobre coisas aleatórias, sem importância, até que subitamente fiquei quieta, escolhendo as palavras certas pra fazer o comunicado.

      — O que foi, Bombom? — meu pai perguntou, pondo com a faca um pouco de margarina em seu segundo pedaço de pão.

      Eu podia ter enrolado, dizer aos meus pais que eles eram os melhores pais do mundo e que era grata por tudo o que fizeram por mim, além de um monte de bobagem, mas sou uma garota direta e franca. Fui direto ao ponto.

       — Uma professora de São Paulo me convidou pra estudar em sua escola. Prometeu me dar bolsa integral de estudo, me levar pra competir em festivais grandes, quem sabe até em outros países. E eu quero ir.

      A mudança de semblante dos meus pais e do meu irmão foi instantânea. Mamãe ficou boquiaberta, como se sua mente estivesse fora de funcionamento. Já meu pai franziu o cenho e lançou sobre mim um olhar inquisidor.

      — Uma desconhecida te convida pra estudar na escola dela e você simplesmente quer ir embora? — ele ficou em estado de estupor, como que irritado.

      — Não é uma desconhecida — respondi com energia. — Essa professora é a Letícia Espinoza, simplesmente dona da escola onde a Duda estudou.

      — E daí? — Marcelo se levantou bruscamente. — Não deixa de ser uma desconhecida — ele andou até a pia, ficou de costas pra nós por um segundo e se virou me inquirindo com seus olhos negros como trevas.

      Carlos Eduardo, normalmente um garoto falante, intercalou olhares entre meu pai e eu sem nada dizer. O que se seguiu a seguir foi uma das conversas mais difíceis que tivemos à mesa, com frases em tom alto de voz. 

      — O que sua professora acha disso? — mamãe perguntou.

      — Ela tá me dando apoio, ao contrário de vocês! — explodi, incapaz de conter minha raiva por ninguém entender o quanto aquilo era importante pra mim.

      — Meça suas palavras, garota — meu pai levantou a voz pra mim pela primeira vez em anos.

      Achando que havia se excedido, ele explicou num tom mais ameno (mas nem por isso menos paternal) que entendia que eu quisesse estudar numa escola melhor. Como entendia. Quando jovem, ele foi convidado a trabalhar numa fábrica de automóveis no ABC Paulista, o que significava um ótimo salário. Mas não foi pra lá, já que era o único filho que havia ficado na casa dos pais, e sua mãe não queria ficar longe dele. Minha mãe também deixou de fazer muita coisa que queria ter feito, tudo por causa de pais amorosos, controladores e protetores, e hoje ela sentia falta de não ter corrido atrás de seus sonhos.

      Nem a lição aprendida à custa de experiências pregressas frustrantes, os sensibilizou, mesmo eu dizendo que não queria ver a vida passando diante de mim como eles fizeram e que aquela podia ser minha única chance.

      Revoltada, me levantei da mesa e corri para o quarto, fechando a porta atrás de mim e me jogando de bruços na minha cama. 

      — Bombom, abra a porta — mamãe bateu. 

      — Deixa eu ficar sozinha, mãe — abracei meu travesseiro de bailarina enquanto chorava.

      Não fui à escola nesse dia. Fiquei a tarde toda de semblante fechado, mesmo no estúdio, e pouco conversei com a Gigi. Na manhã seguinte, meus pais se sentaram à mesa e conversaram como se nada acontecido. A questão estava encerrada pra eles. Ficar quieta foi o jeito que achei de mostrar como eu me sentia frustrada por não ter o apoio da minha família.

      A vida seguia seu rumo normal. Eu não podia simplesmente me desconectar das coisas que eu fazia só porque um projeto meu não tinha dado certo. Fazer balé era a minha vida, eu nasci pra dançar, e era na dança que eu encontraria um refúgio contra tudo o que quisesse tirar minha alegria de viver.

      Eu estava quase me conformando por não poder ir à capital, quando assisti pela tv uma apresentação da Simone Brooks em Londres. Ver aquela garota arrasando a concorrência, dançando naquele teatro lotado e fazendo a dança parecer uma brincadeira ao executar pirouettes e saltos que pareciam vôos, fez aflorar em mim o sentimento de que eu podia competir de igual pra igual com ela, se eu tivesse chance. Eu podia vencê-la. Ela não era invencível como diziam, e eu podia provar.

      Flashback off:

      Sinto de repente a mão do meu pai me balançar, me trazendo para o presente. Sorrio ao olhar pra ele, sua expressão brincalhona. Tiro os fones do ouvido.

      — Estava dormindo? — ele pergunta.

      — Não, só pensando um pouco — respondo.

      Meu pai anui sorrindo, passa seu braço direito em volta do meu corpo. Puxo só um pouco as cortinas do vidro pra me proteger dos raios do sol, e sentindo minha cabeça pesar por ter me deitado tarde noite passada, acabo dormindo um pouco.

      Acabo acordando quando o ônibus está chegando ao Terminal Tietê.

      Papai e eu descemos depois de todos os passageiros e subimos para a estação. Como não conhecemos nada aqui, pedimos informações à um segurança sobre como chegar à Perdizes. Ele nos recomenda pegar o metrô da linha 1 azul sentido Jabaquara e descer na estação Sé, onde temos que fazer baldeação na linha 3 vermelha no sentido Palmeiras - Barra Funda.

      — Perdizes fica muito longe dali? — meu pai insiste.

      — É um pouco longe — o segurança responde. — Sugiro que vocês paguem um carro de aplicativo, já que é fácil se perder por ali.

      — Obrigado — agradeço sorrindo.

      Subimos pela escada rolante até a plataforma de embarque.

      Uma sensação de insegurança me invade quando vejo aquela multidão de pessoas se acotovelando pra garantir um lugar no vagão. Tem gente de todo tipo, de todas as cores, usando roupas comportadas e extravagantes. Tem casais de gays e lésbicas se beijando, garotos com cabelos pintados de vermelho e com camisetas de bandas de rock, e até pessoas com bicicletas.

      Meu pai e eu nos jogamos no meio de um grupo de jovens com mochilas nas costas. Por sorte achamos um lugar livre. Seguindo as orientações do segurança, desembarcamos na estação Sé e pegamos outro metrô. Desta vez temos que ir em pé.

      Chegamos à rua Caiowáa em carro de aplicativo. Quando ponho meu pé pra fora do automóvel, vejo um estúdio bonito, de tijolos à vista, com uma porta de vidro fumê e uma placa acima desta com o nome da escola e a figura de uma bailarina fazendo arabesque. Atrás ficam prédios altos, envidraçados, e logo ali no comecinho da rua está o estádio do Palmeiras.

      O inconfundível som do piano invade meus ouvidos assim que adentramos a escola. Uma mulher de coque frouxo e óculos vem ao nosso encontro.

      — Boa tarde. Posso ajudá-los?

      — Boa tarde — meu pai aceita o aperto de mão da moça. — Minha filha agendou uma aula teste para as quatorze horas.

      — Sofia Christina da Silva, certo? — ela sorri. Balanço a cabeça afirmando. — Fui eu quem anotou na agenda. Eu me chamo Clara, sou secretária e também professora. A aula da sua turma vai começar às 14 horas. Quer que eu lhe mostre a escola?

      — Quero sim — dou um sorriso ao responder.

      Tenho uma boa impressão do estúdio depois de fazer um tour de reconhecimento. É muito melhor do que eu imaginava. Tem uma sala para prática de Pilates, uma sala de aula no térreo e outra no primeiro andar, além de uma cantina com quadros de bailarinas que estudaram aqui quando a escola ainda se chamava Pas de Quatre Stude de Dance.

      Uma turma de bailarinos sai conversando animadamente de uma das salas, logo de cara reconheço a bailarina ruiva como a Jordana Passos, que sorri ao passar por nós.

      — Oi — ela diz.

      Ela usa collant regata rosa com uma saia transpassada curta e branca amarrada na cintura, meia calça e sapatilhas, com polainas em volta das pernas. O coque da garota é perfeito, não tem nenhum fio de cabelo fora do lugar, mas o que me deixa impressionada é o ar de importância que ela irradia.

      Dou um meio sorriso sem nada dizer.

      A bailarina toma um gole da garrafinha de alumínio que segura (imagino que seja água), some pelo corredor com as outras três bailarinas, que usam collants de diferentes modelos e cores, também com saias.

      — A moça de cabelo ruivo se chama Jordana — Clara não sabe que assisti ao vídeo da garota. — Ela é primeira bailarina da escola e também professora.  Dá aula para o grade 1 e para uma turma de bailarinas adultas que estuda às terças e quintas.

      — Ela é bem posturada — comento.

      — É sim — Clara concorda. — E é uma excelente profissional, a Letícia confia muito nela. Acabou de sair da aula de Balé Avançado.

      Outros bailarinos saem da sala, em trio, duplas ou sozinhos. A última a passar pelo batente é Letícia, que está séria enquanto manda uma mensagem de áudio para alguém. Ela está tão concentrada que nem nos nota e Clara a chama.

      — Letícia, a Sofia veio para fazer a aula experimental.

      A professora direciona pra mim seus olhos intimidadores, e de súbito um meio sorriso aparece em seu rosto.

      — Oi, Sofia. Que bom que você veio, eu estava à sua espera — ela se inclina para eu cumprimentá-la com um beijo na bochecha. — O senhor é o pai dela, certo? — se dirige à papai. — Como se chama?

      — Marcelo — este responde enquanto cumprimenta a professora.

      — Sou Letícia Espinoza, diretora do estúdio.

      A professora se volta pra mim:

      — O vestiário fica logo ali. Vá se trocar, a aula de grade 6 começa daqui a meia hora.

      — Tá — respondo.

      Antes de me dirigir ao vestiário, meu pai e eu ficamos de frente um pro outro e posso ver em seu rosto que está orgulhoso de mim. A expressão dele guarda um pouco de semelhança com o daquele dia, quando ele consentiu que eu viesse, me proporcionando um dos momentos mais felizes da minha vida.

      Flashback on:

      — Você não vem jantar, Bombom? — papai perguntou ao pôr a cabeça dentro do meu quarto.

      Eu estava sentada na cama, chateada, segurando meu primeiro par de sapatilhas de pontas e olhando-as como se fossem a coisa mais importante pra mim. 

      — Tô sem fome, pai — respondi.

      Ele suspirou, sentou-se ao meu lado e passou a mão no meu cabelo. Me trouxe pra si me puxando pelo ombro num abraço apertado, me fez prestar atenção nele.

      — Sua mãe e eu conversamos — ele foi dizendo. — Vimos que não é justo te impedir de correr atrás do seu objetivo. Você merece muito mais do que dançar em festivais locais, você merece brilhar, filha. Você merece ser a melhor bailarina do mundo. E nós vamos te apoiar, como sempre fizemos.

      — Pai! — dei um sorriso sem acreditar no que estava ouvindo. — Então eu posso ir pra São Paulo?

      — Primeiro você vai fazer uma aula teste. Vamos agendar essa aula pra segunda feira, que é minha folga no restaurante, e nós vamos para a capital. Aí eu converso com essa tal Letícia, pra gente tratar de detalhes como por exemplo, onde você vai morar. E dependendo do rumo da nossa conversa, você pode estudar lá.

      Invadida por uma felicidade pungente, com o coração batendo forte, abracei meu pai como poucas vezes fiz. Ficamos assim por quase um minuto. Em seguida ele me segurou pelos ombros e sorrimos um para o outro.

      Flashback off:

      Algumas garotas estão se despindo no vestiário. Nenhuma delas é negra. Uma das bailarinas está erguendo o collant regata preto, cobrindo sua nudez total e me oferece um meio sorriso. Ela tem olhos verdes, cabelo castanho escuro preso num coque médio, e é muito bonita, como todas as outras garotas.

      — Oi — digo ao me aproximar.

      — Oi — ela diz. — Vai fazer aula teste?

      — Sim.

      — Legal. Boa aula.

      — Obrigada.

      Busco um lugar livre entre as meninas, ponho minha mochila no chão e começo a me despir até ficar pelada. Visto uma meia calça branca e o collant preto de manga comprida que uso como uniforme no estúdio de dona Fernanda.

      Me sento ao lado de uma garota morena que está de costas pra mim e fazendo seu coque enquanto conversa com uma amiga. Começo a fazer o meu, prendendo-o com grampos escuros. Calço minhas sapatilhas de ponta, faço um lacinho minimamente aceitável.

      Sou a última a sair do vestiário, atrás do grupo de garotas.

      Me aproximo do meu pai, que conversava com Letícia e deu um beijo na minha testa me desejando boa aula.

      — Vamos? — Letícia estende o braço para que eu entre na sala.

      Dou tchau para o meu pai, inspiro e expiro. Dou um passo. Dois.

      Entro na sala.

Capítulo de 5,5k de palavras

















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