Capítulo 3
Com a chegada das férias, fiquei praticamente morando no estúdio de dona Fernanda Rossini junto com a Gigi, a Eva e outros alunos que vão disputar títulos. O legal foi poder fazer aula com a Luana. Ela é uma ótima bailarina, não chegou ao posto de primeira bailarina do estúdio só porque tem um rosto bonitinho. Ela é foda.
Não pude curtir o Festival de Inverno na Vila Capivari, nem continuar a ver gente bonita vindo de todos os lugares de São Paulo, porque o balé exige renúncia de muita coisa, e vida social é uma das coisas que temos que abrir mão.
Às vezes eu voltava pra casa trôpega de tanto forçar meus músculos. Minhas panturrilhas doíam muito. Só que não dá pra evoluir sem dor. Mas vale a pena. Depois de uma semana de treino e aula intensivos, me sinto pronta pra conquistar o título de solista regional.
…
A primeira coisa em que reparo quando desço da van de seu Fabrício é a bonita fachada do teatro. A segunda, são os bailarinos das outras escolas. Todos eles usam conjuntos de moletom de seus respectivos estúdios, dá pra ver pelo porte das meninas que elas são mais do que cotadas pra ganhar qualquer coisa.
Mas eu sei que o Estúdio de Dança Fernanda Rossini pode fazer bonito aqui. Não é porque nossa pequena escola não tem uniforme de aquecimento, salas de musculação e Pilates como muitos estúdios de balé e outros recursos, que não podemos impressionar. Sei que sou tão boa quanto qualquer uma daqui.
— Meninas, vamos entrar? — dona Fernanda faz sinal para que a acompanhemos.
Gigi e eu sorrimos uma para a outra e andamos atrás do grupo de bailarinas que vão disputar a categoria sênior.
— A que horas vamos almoçar, tia Feh? — Camila, uma garotinha loura de dez anos que vai dançar Paysant e brigar pelo título de solista mirim, pergunta enquanto anda ao lado da nossa mestra.
— Daqui a uma hora, Cah — acho contraditório dona Fernanda ser tão carinhosa com suas alunas mais jovens e tão enérgica conosco (as adolescentes).
Eva anda quase ao lado da professora, em atitude de fidelidade, desfilando com proposital andar sensual, com uma calça legging ultra justa preta e uma camiseta de manga comprida com estampa de bailarina.
— Você tem dinheiro para a comida? — minha amiga pergunta com olhos preocupados.
Aceno positivamente com a cabeça e com um meio sorriso.
— Meu pai me deu — respondo. — Dá pra quatro marmitex.
Como vamos ficar dois dias em São José dos Campos numa escola estadual, vamos ter que comer no mínimo quatro refeições.
— Marmitex? — Gigi franze a boca. — Bombom, você não precisa se privar de uma boa comida. Eu te empresto.
— Não. Nada a ver — recuso. — Gosto de comida simples. Você sabe que eu como pouco.
— Mas Bombom…
— Na boa, Gigi. Não precisa.
Minha amiga ergue as palmas das mãos em gesto de quem se rende e subimos o primeiro lance de escadas do teatro. Que atmosfera diferente da nossa cidade. Enquanto Campos do Jordão está gelada, aqui faz um calor gostoso, e de repente, tirar minha calça largona e listrada de lã e ficar só de maiô de dança parece uma boa ideia. Como sou prática, é o que faço.
Gigi me olha e ri.
— Olha, o que é isso? — pergunto apontando para uma coisa estranha assim que entramos.
— É um cinematógrafo — Rafaela responde batendo uma foto com seu iPhone. — Nossos tataravós assistiam filme no cinema graças a essa coisa.
Solto um uau, impressionada com as linhas do estranho aparelho. Gigi e eu ficamos juntas e ela bate uma selfie nossa ao lado do tal cinematógrafo, para guardarmos de lembrança.
O saguão do teatro tem no teto lustres vistosos, que pelo design, são antigos e importados (acho que da Bélgica). As paredes têm quadros bonitos de bailarinos, músicos instrumentistas e cantores de ópera, além de móveis que mereciam uma olhada mais calma, mas como não temos muito tempo, andamos para perto de dona Fernanda e da puxa-saco da Eva, que não sai de perto dela por nada.
Uma senhora gordinha de cabelos brancos e encaracolados, enfiada num vestido azul, se adianta para cumprimentá-la.
— Fernanda, há quanto tempo? — ela diz com forçada simpatia enquanto as duas trocam beijinhos na face. Não sei por que, mas tem algo de esnobe em sua entonação de voz. E gente esnobe no mundo das artes é igual urtiga em terreno baldio: tem aos montes.
— Como vai, dona Manuela? — Gigi e eu trocamos um olhar rápido e sorrimos com ironia.
— Vou bem, querida. Que bom que você inscreveu mais alunos este ano. Essa moça linda é a Bombom? — a mulher empina o queixo pra mim. Confesso que gosto do elogio.
Dona Fernanda tem um sorriso ao me olhar e me puxa pela mão, me apresentando como seu melhor gado à dona da produtora que organiza as competições de dança na nossa região.
— É, sim. Ela vai disputar o título de solista regional júnior com a Eva — com a outra mão, ela traz a bailarina ruiva pra perto de si, e nossa professora fica entre nós duas.
Manuela Almeida, ex-maître de balé e foda na arte de ensinar bailarinas a dançarem nas pontas, mantém o sorriso enquanto olha para nós duas, mas tenho a impressão que ela está mais focada em mim do que na minha colega ruiva.
— Lindas! — ela nos elogia. — As duas têm uma postura impecável, pescoço comprido, costas retas. Você, Bombom, é baixa, mas tem uma elegância, uma beleza peculiar.
Ainda bem que o padrão de bailarina russa (alta, magra e de pernas compridas e finas) não é mais levado tão à sério hoje em dia, do contrário eu estaria fodida.
Tenho certeza que Eva não está gostando nem um pouco de ouvir sua rival no estúdio sendo elogiada pela mulher que foi considerada uma diva em seus tempos de bailarina.
— Obrigada — agradeço.
Manuela me segura pelos braços, fixando em mim suas orbes pretas como jabuticabas. Parece que ela quer extrair algo de dentro de mim, e isso me incomoda um pouco.
— Bem, boa sorte para vocês duas. — então, ela se lembra da existência de Gigi, que ficou um pouco atrás de mim. — E você… Gigi, não é? Está concorrendo a demisolista?
— Sim, senhora — minha amiga afirma com acanhamento.
— Muito bem — Manuela une as palmas das mãos diante da boca. — Se me dão licença, vou conversar com a Letícia — a pronúncia deste nome faz com que minha cabeça se vire para a direção em que a mulher anda. — Letícia, querida!
A moça de quem tirei foto semana passada em frente ao Portal de Campos do Jordão tem um sorriso altivo e franco. Ela está a uns dez metros de nós ao lado de seu marido e segurando a mão de um garotinho que, pelas feições, imagino ser filho do casal.
Agora não tenho mais dúvida de que ela tem ligação com dança clássica. Não creio que está aqui pra se apresentar, deve ter alunos, sei lá. Ou vai ver, é uma das juradas.
Enquanto a moça de São Paulo balança a cabeça exercitando uma paciência incrível com o tom de voz agridoce de Manuela, presto atenção naquela postura perfeita e elegante, naqueles olhos cheios de autoridade e que irradiam uma aura de importância.
— Eu conheço aquela mulher — falo.
— Bom, é provável — dona Fernanda retruca. — Ela é a Letícia Espinoza, dona de um estúdio em São Paulo que tem seu nome. Foi aluna da mestra Oksana Maznova.
— Eu tirei uma foto dela com o marido na semana passada, na entrada da cidade. Conversamos um pouco.
Dona Fernanda arqueia uma de suas sobrancelhas.
— Eu estava fazendo um detiré — explico —, daí ela veio pra mim. E depois perguntou se sou bailarina. Respondi que sim.
— Ela se aproximou de você depois que a viu se alongando, certo?
— Sim.
— E… ela não te falou que é bailarina, que tem um estúdio em São Paulo, nada disso?
Meneio a cabeça em negação.
Minha professora morde o lábio superior pensativa. Gigi e eu trocamos um rápido olhar, a seguir olho de novo pra dona Fernanda.
— Bom, vamos? — de repente ela sorri. — Quero que vocês vejam como o palco é lindo, depois vamos almoçar, e quando voltarmos, fazer as marcações.
Minha amiga e eu assentimos e andamos atrás de dona Fernanda. O restante do nosso grupo está sentado na primeira fileira de poltronas vendo a equipe técnica trabalhando. As cortinas pesadas são puxadas para os lados e presas com cordas grossas iguais às que vi uma vez na casa dos meus avós em São Bento do Sapucaí, e a seguir, um fundo vermelho desce lá atrás com a logomarca da Pulse e escrito em cima Títulos Pulse.
Os caras são rápidos. O que mais dá trabalho é a estrutura metálica dos lados e a parte de cima, onde ficam as luzes. Testes são feitos, e sei que vou estranhar quando aquelas luzes atingirem meus olhos enquanto eu estiver dançando. Tomara que não me atrapalhe.
Teste som! Um! Dois! Três!
Gigi me olha, revira os olhos, imita o cara testando o microfone. Rio de sua infantilidade. Minha amiga não é debochada, muito menos esnobe, e posso afirmar que ela faz dessas criancices só pra descontrair um pouco e disfarçar sua tensão. Eu sei que ela está nervosa.
— Porra, que vontade de fazer xixi — me queixo. — Vem comigo, Gigi?
— Aham — ela sorri.
Nos esgueiramos por uma fileira de cadeiras, seguimos por um corredor e nos guiamos por uma placa de indicação com símbolos desbotados. Três garotas com collant e botinhas de aquecimento saem e nos oferecem um sorriso gentil. Damos caminho para que passem, em seguida entramos.
Por causa do collant e da meia calça, tenho mais trabalho para me despir e me sentar na privada. Sorrio igual uma boba, um desses sorrisos que todo mundo dá quando se alivia.
— Bombom — a voz de Gigi soa estranha por causa da parede de granito que separa nossas cabines.
— Oi? — digo.
— Você tá nervosa?
Fecho os olhos enquanto ponho a mão na têmpora esquerda.
— Pra ser sincera, só um pouco — respondo. — Tô ansiosa pra me apresentar logo.
Escuto minha amiga suspirando do outro lado. À essa altura já estou vestida com o collant e amarrando o cadarço de um meus pés de tênis.
Nós duas saímos juntas. Lavamos as mãos e vejo nos olhos de Gigi sinais claros de apreensão. Ofereço à ela meu melhor sorriso, seguro suas mãos, toco seu rosto.
— Ei. Você vai fazer bonito hoje e amanhã — tento dar moral.
— Queria ter essa sua tranquilidade — ela responde com uma carinha que faria qualquer um querer guardá-la num potinho.
— Amiga, você ensaiou muito. Não esquenta antes da hora. É normal ficar nervosa. Dona Fernanda não diz que bailarina que não sente frio na barriga não serve pra ser bailarina?
Um meio sorriso se forma timidamente no rosto de boneca da minha amiga.
— Você viu a classe das outras bailarinas? — Gigi olha para a direção da porta aberta. — Elas são bailarinas até quando não estão fazendo balé.
— Miga, deixa eu te falar uma coisa: eu tô cagando e andando para as outras competidoras. Não tô nem aí se elas estudam em escolas famosas ou não, se usam conjuntos de moletom bonitos e tal. Isso não me impressiona. No palco, o que conta é o nosso talento, e isso a gente tem de sobra.
Gigi concorda com um meneio de cabeça. Ela parece se convencer de que estou certa. Eu sei o que tô dizendo.
— Vamos? — sorrio apontando com o queixo para a porta. — O pessoal deve estar nos esperando para irmos almoçar.
— Vamos.
Nossos colegas estão na saída do teatro com celulares na mão e Eva balança a cabeça em negação. Ela dá um sorrisinho cheio de veneno por dona Fernanda nos repreender por Gigi e eu termos nos desgarrado do grupo, e ainda por cima, somos obrigadas a ouvir lições sobre importância de pontualidade e compromisso com os colegas.
Reviro os olhos e direciono a cabeça para cima.
Vamos para um restaurante que fica uma rua atrás do teatro. Depois do almoço, voltamos para o teatro, que já tem mais gente. Algumas escolas vieram de mais longe. Dizem que tem um pessoal muito bom de Mogi das Cruzes, Lorena.
Eva é a primeira a ensaiar sua variação clássica. Uma variação de Raymonda. Por mais que ela seja um cocô de sapatilhas, sua performance é muito legal. Eu sei que ela pode ganhar.
Gigi é a segunda, com Kitri, e Maicon, o único garoto do nosso grupo, é o terceiro. Assistindo seus ensaios e vendo o quanto eles evoluíram ao longo do ano, não consigo imaginar que algum de nós não vença. Seria injusto que Maicon, o garoto que treina pra caramba, que esfregou na cara do pai que é gay e que leva o balé à sério, não saia daqui como primeiro bailarino. E o que dizer da minha melhor amiga? Ela é simplesmente adorável.
Eu tenho esperança que nós todos saíamos daqui vitoriosos.
Quando a pequena Camila termina de ensaiar, vou para a lateral do palco, e por causa da luz fraca, consigo distinguir entre os bailarinos e professores sentados na primeira fileira de poltronas aquela mulher de São Paulo. Os braços dela estão cruzados, e seu olhar, direcionado pra mim, me deixa um pouco assustada.
— Bombom, dê mais dois passos adiante! — minha professora me pede lá da cabine de som, sua voz com mais potência por causa do microfone.
Faço o que ela manda. Me coloco na pose inicial, faço carão, e quando a música da variação de Diana começa a tocar, avanço para o meio do palco. Então, sem que eu consiga explicar, acabo me esquecendo de tudo e só me deixo levar pela música. Não é mais a razão que norteia minhas ações, e sim, meus sentimentos. É só um ensaio, mas eu ponho tudo de mim nele.
Sou a única da nossa escola que não precisa repetir o ensaio. Sorrio em agradecimento fazendo uma reverance e deixo o palco em seguida, tirando minha saia branca e curta.
Enquanto saio pela lateral, olho de novo para as cadeiras. Letícia sussurra algo no ouvido de um cara que sei que é professor e que já vi em um festival que não me lembro, faz um aceno, se levanta e sai.
Posso estar enganada, mas acho que eles falaram algo de mim, que não imagino o quê.
…
— Bombom.
Não olho para dona Fernanda enquanto estou sentada no chão costurando com linha e agulha as fitas das minhas sapatilhas. Daqui a pouco mais de duas horas, o festival de títulos vai começar e tenho que deixar tudo pronto.
— Bombom, você não vai fazer a aula? — a mão da minha professora toca meu ombro.
Olho com expressão tristonha para dona Fernanda.
— Eu não tenho dinheiro pra pagar — informo envergonhada.
Um suspiro entediado sai dos lábios da minha professora, que abre a carteira e tira uma nota de cinquenta reais.
— Tome e vá logo — ela ordena, e eu fico em pé como se uma mola empurrasse minha bunda. — MAS NÃO CONTE PRA NINGUÉM QUE EU TE DEI DINHEIRO — ela ergue o dedo indicador de uma das mãos enquanto a outra me passa a nota.
Abro o mais adorável dos sorrisos, e agradecendo, amasso o dinheiro escondendo-o na minha mão direita e corro para o palco enquanto tiro de novo minha calça de lã listrada.
— Vou fazer a aula — me dirijo à uma moça de óculos que segura uma prancheta e que está recebendo o pagamento dos alunos.
— Nome, por favor? — ela sorri.
— Bombom — no mesmo instante esfrego minhas têmporas. Fiquei tão acostumada a ser chamada pelo meu apelido que às vezes me esqueço que tenho nome — Sofia Christina da Silva.
— Ok. Pode ir para o palco.
Tiro meu collant da bunda e vejo duas barras móveis sendo descidas do teto por cordas, que são arrumadas por quatro rapazes. Eva e Gigi se encontram entre os bailarinos, e diferentemente de mim, que só estou com o maiô de dança, meia calça e sapatilhas, as duas usam saias curtas e perneiras.
Minha amiga abre um sorriso ao me ver se aproximando dela e segura minha mão, me olhando com animação quando fico na barra ao seu lado.
— Não acredito! Que bom que você vai fazer aula com a gente, amiga — ela dá um ganido que é bem típico.
— Eu não podia perder, né? — respondo, ficando de frente para a barra e flexionando o colo dos meus pés em movimentos chamados de elevés alternados.
Eva suspira aborrecida e penso que ela deve estar se questionando como uma garota pobre que comeu marmitex no almoço achou dinheiro pra pagar uma aula.
Ponho minha perna direita na barra e mergulho meu peito sobre ela, e o efeito imediato é uma gostosa puxada no músculo posterior da coxa.
Quando alongo também minha perna direita, me viro para o canto esquerdo do palco e a vejo se aproximando.
Letícia Espinoza.
Com seu porte de bailarina, posturada e cheia de imponência, a mulher dá uma olhada panorâmica breve e fica de frente para nós.
— Bom dia — ela dá algo parecido com um sorriso.
— Bom dia — seis ou sete vozes respondem.
— Acredito que a maioria de vocês não me conhece. Me chamo Letícia Espinoza, sou bailarina, coreógrafa, professora e diretora do estúdio Letícia Ballet, que fica em São Paulo.
Fixo meus olhos nela para esta me note e veja que não estou nervosa.
— Bom — a paulistana bate uma mão na outra. — Vamos lá? Frente à barra, pés em sexta posição, vamos começar com um breve aquecimento.
Jogo meus ombros para trás, rebolo a cintura de um lado para o outro. A música começa a ser tocada no som que fica na cabine, e em pouco tempo toda a turma de alunos pagantes está esticando braços e pernas.
Os músculos das minhas coxas doem horrores quando junto minhas pernas e toco o chão com as palmas das mãos. Letícia pede para que respiremos a fim de que mandemos oxigênio para as fibras musculares e dá certo, o incômodo diminui. Consigo abaixar meu tronco um pouco mais.
Se alongar antes de uma aula é fundamental não só pra se ter mais flexibilidade, mas também pra evitar lesões. Eu faço isso sempre. E adoro. Não quero que meu corpo fique duro como cimento, e além disso, tenho como uma de minhas metas chegar aos cinquenta dançando balé como a Fonteyne.
Letícia para a aula a cada exercício para fazer correções, e numa destas, faz meu sorriso ir de uma orelha à outra ao dizer que eu tenho uma força absurda de coxas e um en dehors desconcertante.
— Só precisa dosar essa força — ela assevera.
Nenhum aluno fica sem atenção, a professora da capital paulista anda olhando atentamente para cada pé se articulando na execução de tendus ou frapès ou para nossas escápulas. E se alguém está desalinhado, ela para a música na hora e manda o aluno (ou aluna) repetir.
No port de bras de centro, Letícia segura com uma das mãos minha bunda e dá apoio às minhas costas com a outra quando desço em soupplesse e subo com meus braços em quinta.
— O braço traz seu tronco de volta, mas você precisa ter força de costas e bumbum pra não desmontar — ela me orienta.
Os garotos saltam o mais alto que podem nos grand jetés. Pena que Maicon não está fazendo essa aula, pois estaria vendo um cara alto e de cabelo louro dar a impressão de estar voando quando salta. Mas não sinto inveja, são coisas diferentes. Dos homens se espera outras coisas na dança – eles têm que ser nossos carregadores, saber saltar e girar, enquanto nós, mulheres, temos que ser leves e flexíveis.
Fico suada ao final da aula e me sinto fedida, mas valeu super à pena. É sempre bom reaprender passos que a gente sempre executa nos estúdios com professores que tem uma forma diferente de ensinar. Simplesmente adorei.
O pessoal faz fila pra conversar um pouco com Letícia. Aquela coisa de agradecer aos professores pela aula e tirar uma selfie. Olho com indiferença para aquela pequena aglomeração, e como não tenho mais nada pra fazer aqui, ando até onde Gigi está.
— Vamos? — pergunto.
— Não vai tirar uma foto com a Letícia? — ela pergunta com severidade.
— Eu não — respondo.
— Miga, não vou com você. Vou tirar uma foto com ela.
Dou de ombros.
— Tudo bem.
Gigi sorri e corre para perto dos alunos que estão tietando com a professora.
— Bombom!
Me viro com um sobressalto quando escuto meu nome. Letícia vem andando em minha direção com um meio sorriso em seu rosto, desfilando elegantemente como se estivesse numa passarela.
Tem como não se sentir pequena perto dela? Meus míseros 1 metro e 65 me forçam erguer um pouco o queixo para que nossos olhares fiquem na mesma direção.
— Queria te elogiar pela sua aula — observo a mão dela pousar sobre meu ombro direito. — Você tem uma desenvoltura, um carão, força física e leveza que me deixaram boba.
— Obrigada — agradeço sorrindo.
— Qual é mesmo sua escola? Não me lembro se você a mencionou quando nos conhecemos há uma semana.
— Escola de Dança Fernanda Rossini.
— Ah! Não conheço o trabalho dela, talvez porque minha escola dispute festivais por outras produtoras. Mas ela fez um bom trabalho com você.
Fico sem saber o que dizer em seguida, não gosto de ter aquele par de olhos fixos nos meus como se me sondasse por dentro em busca dos meus segredos mais íntimos.
— Eu preciso ir. Obrigada pela aula — me viro.
— Bombom, você já dançou num festival grande?
Me volto para a paulistana.
— Só dancei em festivais da nossa produtora mesmo, na nossa região e pelo interior de São Paulo.
— Nunca dançou num Passo de Arte, YAGP, num Circuito de Outono do Rio, ou em Buenos Aires, Posadas e Montevidéu? — Letícia arregala os olhos quando respondo com vários acenos negativos.
— Que desperdício! — há lamentação em seu tom de voz. — Uma bailarina com a sua técnica faria muito sucesso nos festivais que disputamos. Você tem um potencial absurdo para ganhar o que quiser.
— Todo mundo diz isso — modéstia não é uma qualidade minha. — Mas eu sei que tenho muito o que evoluir ainda, um longo caminho pra percorrer. Agora, com licença — forço um sorriso, dando um passo pra trás e me virando, como quem quer pôr fim logo à esse papo.
— Se você estudasse na minha escola, eu te daria todas as condições pra percorrer esse caminho num tempo mais curto.
Estaco quando estou à meio passo de entrar na coxia. Como um canto de sereia que seduz marinheiros ingênuos com sua voz doce, as palavras de Letícia Espinoza mexem comigo. Me viro. Ela se aproxima de mim, agora quase colando seu corpo ao meu.
— Faz quase dez anos que eu formo alguns dos melhores bailarinos de São Paulo e do Brasil, e alguns dançam em companhias da Europa e dos Estados Unidos. Não gostaria de fazer parte deste grupo?
O convite me pareceria indecoroso se não soasse tão sedutor. Sempre me imaginei dançando numa cidade grande como São Paulo, mas não tão seriamente, não à ponto de jogar tudo pro alto e ir pra lá. E dona Fernanda sempre me deu todo o apoio de que precisei, sempre me deu aula sem cobrar nada e continua até hoje fazendo tudo por mim.
Arqueio minhas sobrancelhas com desconfiança, apesar de agora querer ouvir mais.
— Ah, é? — ponho as mãos na cintura.
— Já deve ter ouvido falar da Duda, não é? Bailarina do Bolshoi, Primeira Bailarina da Companhia Jovem? — Letícia sente orgulho ao dizer isso. — Bom, ela foi minha aluna.
— Caramba! Você foi professora da Pérola Negra? Sou fãzaça da Duda, pra mim ela é a melhor do mundo.
— E você também pode seguir os passos dela. Potencial pra isso tem.
— Mas…
— Só escute. Óbvio que eu estaria disposta a te dar uma bolsa integral de estudo, além de te dar um teto sob o qual dormir. Eu bancaria TUDO, TUDO MESMO, desde que você estivesse disposta a deixar seu estúdio para trás e fôsse comigo para São Paulo.
Um tipo de caroço se forma na minha garganta. Não sei o que responder e isso me deixa sem chão, porque sempre tive a língua afiada, sempre tive respostas prontas. A única coisa que meu cérebro confuso consegue dizer é eu… é… eu.
Mas uma coisa me tira logo do impasse: uma coisa chamada gratidão. Dona Fernanda fez de mim o que sou hoje, uma bailarina batalhadora, que sabe o que quer. Claro que eu também fiz por merecer tudo o que conquistei, nunca abaixei a cabeça por causa do preconceito idiota que existe por eu ser negra e pobre, nunca fiz média com ninguém, mas ela foi e ainda é meu maior apoio na dança. Não vale a pena largar todo o suporte que tenho pra correr atrás de uma ilusão.
E ainda têm meus pais, meu irmão. Meus amigos de colégio.
Não. Eu não tô preparada pra deixar tudo isso pra trás. Sem falar que essa mulher é uma completa desconhecida pra mim.
— Obrigada pela proposta, Letícia, mas tenho que recusar.
— Vai abrir mão dessa oportunidade única de dançar num estúdio reconhecido como referência no ensino da dança clássica? — percebo que ela se sente ofendida por meu não.
— Tô contente com o que tenho na minha escola. Quem sabe daqui à um ano?
Letícia suspira, um suspiro aborrecido com uma boa pitada de desapontamento.
Ela coça sua têmpora esquerda, fecha os olhos, e fazendo um esforço para ser simpática, sorri.
— Me desculpe. É claro que você não aceitaria de imediato uma proposta inesperada. Você é uma garota inteligente, e além disso, tem uma coisa que eu valorizo muito em bailarinos, que é o reconhecimento por suas escolas e pelo trabalho de seus professores. Quem dera todos os meus alunos fôssem assim — percebo uma certa amargura nessa última frase de Letícia.
— Sim. Sou muito grata à minha escola.
— Em todo caso — ela tira um cartão do bolso lateral de sua calça de moletom, me oferecendo —, fique com isto — o cartão tem o nome, site, e-mail e telefones de contato da Letícia Ballet, além do endereço em Perdizes.
Rua Caiowáa, digo mentalmente.
— Se mudar de ideia, por favor, me procure — a mulher insiste.
Intercalo um rápido olhar entre o cartão e a professora da capital, que pousa sua mão em meu ombro e volta para conversar com os alunos para quem deu aula.
Saio do palco, tomando cuidado para não tropeçar numa caixa de som, e a primeira pessoa que encontro quando já estou no corredor é dona Fernanda.
— E então? — ela empina o queixo.
— A aula foi ótima — respondo com sinceridade —, mas muito puxada.
— Método Vaganova é assim mesmo. Mas tenho certeza que você se sentiu desafiada, não foi?
Dona Fernanda tem o dom de olhar bem dentro nos olhos de seus alunos e saber o que estes sentem.
— Me senti, sim — dou um meio sorriso.
…
A garota com o número 45 colado na frente e atrás do collant termina de dançar e é muito aplaudida. Dou lugar pra que ela saia, e como sou a próxima a dançar, vou para a entrada do palco.
Todas as garotas estão usando collant regata preto, meias calça e sapatilhas cor de rosa. É o uniforme exigido pelo festival. Não podemos usar calcinha, por isso me sinto meio pelada. O número da minha placa é 46.
Recebo um tapinha no bumbum, ao me virar, vejo Gigi com um sorriso carinhoso nos lábios rosados. Ela se apresentou mais cedo e foi bem, mas só amanhã à noite vamos saber nossas notas.
Segurando minhas mãos e me olhando, ela me dá um abraço apertado e toca meu rosto com o dorso de seu indicador.
— Vai e arrasa — pede.
O incentivo me dá mais confiança. Sorrio pra ela, então vou pra mais perto do palco.
Pra ganhar o título de solista regional, tenho que dançar uma variação clássica, um contemporâneo e um neoclásico. Não só dançar, mas obter três notas altas que serão somadas e divididas por três. E se minha média superar a nota exigida, vou ser uma das novas solistas. Hoje vou dançar Diana, que é o clássico.
Diferentemente de hoje de manhã e das últimas semanas, quando passei pra todo mundo uma imagem de segurança, agora a ficha começa a cair, e compreendo o que é sentir frio na barriga. Não é nervosismo, nem medo, mas algo bom, um tipo de adrenalina.
De qualquer forma, eu ensaiei muito pra estar aqui, e quero que todo mundo me aplauda em pé.
Maria Luíza Pomini, a bailarina fodidaça do Ballet São Paulo, arranca gritos de bravo ao terminar de dançar uma variação de Carmem, e ao vê-la reverenciar seu público, toda linda em seu tutu vermelho, a rosa vermelha no penteado com coque impecável, juro à mim mesma que um dia vou ser tão boa quanto ela.
Eu nasci pra isso.
As luzes se apagam.
É a minha vez. Se eu acreditasse em Deus, faria um sinal da cruz pra ter sorte. Como sou ateia e só acredito em mim mesma, me desconecto de tudo e fico à espera do anúncio do meu nome.
— ALUNA DA ESCOLA DE DANÇA FERNANDA ROSSINI, COM VARIAÇÃO DE DIANA, SOFIA CHRISTINA DA SILVA!
Fecho os olhos por um instante, inspiro profundamente. Vou ao palco assim que os primeiros acordes saem das caixas de som.
Como se eu fosse arrancada de mim mesma, do mundo dos mortais, um novo ser toma posse do meu corpo: um personagem de um conto, de uma história, alguém que não sabe o significado da palavra limite.
Meu corpo executa no palco movimentos que pessoas normais que vivem presas num mundo marcado por regras, disputas, com preocupações triviais (como acordar, trabalhar, comer e dormir), não podem compreender. Pareço flutuar em alguns momentos. Noutros, mostro força. Sinto dores nos pés, nos músculos, mas não importa o que aconteça, vou sorrir até o fim.
E quando a música acabar, eu sei que mesmo que não consiga atingir totalmente meu objetivo, vou dormir com a sensação de que dei meu melhor. E isso me fará feliz.
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