Capítulo 14
Estamos ensaiando à exaustão para o Festival em Barra Bonita. Por causa do cronograma apertado, com os bailarinos passando até cinco vezes suas variações e coreografias na sala de aula, quase não temos tempo nem pra fazer xixi, e uma das bailarinas acabou sendo cortada da competição devido a uma torção de tornozelo.
Os bailarinos do Balé Avançado estão ensaiando em tempo integral, e fico impressionada que eles não tenham se transformado em pele e osso, já que não os vejo pararem para comer. Jordana está magra, tem reclamado de dores constantes nos músculos, e às vezes me pergunto se vou suportar essa dura rotina quando eu não estiver mais na escola pública e tiver de fazer balé por oito, nove horas.
Ao mesmo tempo em que meu corpo sente dores, minha mente está mais relaxada, e me sinto mais leve e forte. Deve ser a chamada força interior que todo bailarino tem e que o ajuda a crescer.
Estamos executando sautès, com changements e echapés. Às vezes sinto que estou flutuando no ar quando chego no ponto alto do meus saltos, e que nada pode me trazer de volta ao chão. Em momentos assim, quando estou envolta por uma aura luminosa, também sinto que posso sempre ir além. Sempre é possível voar mais alto.
Aplaudimos Letícia depois de a reverenciarmos e enfim posso me sentar um pouco. Fico ao lado de Pamela e Juliana. Nós três acompanhamos com atenção a variação de Esmeralda dançada por Rebeca, ouvimos as correções que a professora faz. Em seguida a bailarina dança sua coreografia contemporânea.
Outros bailarinos se alternam ensaiando e enfim chega minha vez. Dou tudo de mim, como se eu estivesse no palco de um teatro. Aceito as correções de bom grado, sorrindo. Sempre há um ou outro detalhe pra gente se esmerar.
Saímos tarde da sala de aula. Estamos cansados, querendo um bom banho fresco e uma cama pra se atirar e dormir. A Pam se aproxima de mim bebendo um gole de água em sua garrafa estilosa e entrelaça no alto seus dedos aos meus.
— Até amanhã, amiga — um par de covinhas surge em seu rosto enquanto me dá um sorriso.
— Até — respondo.
Rebeca passa por mim conversando com suas duas melhores amigas e esbarra de leve em meu ombro, e embora essa atitude de afronta me faça fumegar, me limito a franzir o cenho, sem nada dizer.
Solto um suspiro irritado, caminho pela direção oposta a que o trio de peruas segue e ando apressadamente até o meu quarto.
Jordana vai demorar a voltar. A companhia principal está ensaiando na sala 2 e acredito que quando minha colega de quarto entrar já estarei dormindo.
Sozinha, ligo a caixa de som, escolho um pen drive com músicas funk e deixo num volume não muito alto. Aproveito e checo as mensagens no meu celular. Nada de tão importante.
Me levanto, abro o armário e levo ao banheiro uma muda de roupa. A água morna do chuveiro banha meu corpo suado, retirando dele todos os resquícios de sujeira e cansaço, e enquanto me ensaboo, um sorriso brinca em meus lábios quando uma estrofe da música da MC Lara que está tocando sai de meus lábios.
De olhos fechados, dançando debaixo do chuveiro, minha mente se dispersa. Não me importo com mais nada. Meu coração só anseia por mais um dia de dança, por mais um dia em que eu possa me sentir resgatada do mundo.
…
Comemorar meu aniversário longe da minha família não era algo que eu imaginava um dia, mas as mensagens de felicitações que meus pais, meu irmão, meus parentes e amigos me enviaram por telefone me fizeram meu dia feliz.
Enfim, dezesseis anos. Por mais um ano vou continuar disputando competições dentro da categoria júnior, pra só depois competir com a Alice e a Jordana. É na categoria sênior que dançam os bailarinos com ambições maiores.
Recebi felicitações dos meus colegas de balé. A única que não olhou pra minha cara foi a Rebeca, mas nem liguei, porque odeio receber abraço de gente falsa.
Como presente de aniversário, ganhei da Jordana uma aula particular de contemporâneo. Dançamos uma coreografia juntas e ela dividiu comigo suas impressões em alguns dos teatros em que se apresentou.
— Nunca fui uma bailarina de conquistar primeiros lugares, esse tipo de ambição não fazia parte de mim; eu via a Danny e a Duda treinando pra provar quem era melhor que a outra, aquela rivalidade, aquele respeito mútuo entre as duas. Às vezes elas choravam de frustração no banheiro porque nem todo dia as coisas saem como queremos… Eu me perguntava: será que eu preciso disso? Será que vale a pena eu me sacrificar tanto, tentar ser a fodona da classe pra ficar assim, triste? A dança tem que nos fazer bem. Do meu jeito, eu consegui muita coisa, bem mais do que eu queria ou sonhava, e não estou arrependida de nada. Sou feliz na Letícia Ballet. Por mais que algumas vezes eu sinta falta dos meus pais, é o meu mundo, e não troco isso por nada.
Jordana faz essa revelação deixando nítida a emoção que está sentindo. Escuto com atenção, sem interrompê-la. Ela tem uma história de vida com a dança muito linda. E ela é inspiração pra mim.
Me sento mais perto dela no chão e deito a cabeça em seu colo. Como se fosse minha mãe, faz rolinhos no meu cabelo e diz, de um jeito amável:
— Não importa o que as pessoas falem de você ou que elas digam que o balé não é mundo de sonhos. O mundo que a gente quer somos nós que devemos construir. E você vai brilhar, minha amiga.
Cada palavra toca meu coração como gotas de chuva que caem sobre a terra, renovando a esperança. Mesmo não estando com as pessoas que eu mais amo, mesmo longe da minha cidade e sabendo que vou ter de enfrentar muitos obstáculos, fecho os olhos com a certeza de que as palavras da minha amiga são o melhor presente de aniversário que eu poderia receber hoje.
…
Gigi e eu estamos há quase uma hora trocando mensagens de áudio, e essa atividade tipicamente jovem tem ajudado a tirar um pouco do tédio da viagem. Seu Eduardo, o motorista que há anos leva os alunos da Letícia Ballet pra competir pelas cidades do Estado de São Paulo, conduz a sua van com segurança. Seu filho está logo atrás de nós, dirigindo outra van.
O tempo estimado da viagem entre São Paulo e Barra Bonita é de 3h40, mas pode variar de acordo com as condições da pista. Ainda não pegamos tráfego e torço pra que continue assim. Se bem que a Rodovia dos Bandeirantes pode aprontar surpresas.
Comi pão com margarina e tomei um copo de café com leite antes de sair do estúdio. Jordana saiu depois de mim, junto com a Alice e o Angel. Eles estão vindo de carona com o noivo da minha colega de quarto, um cara legal chamado Samuel, que toca na igreja que eles frequentam. Não duvido que logo eles passem por nós e cheguem antes, já que daqui a pouco faremos uma parada no Graal.
Pela janela posso ver o céu azul, sem nuvens, prenunciando um dia de muito calor. Não fosse o ar condicionado da van, eu estaria transpirando, e não tem coisa que eu mais odeie do que ficar molhada de suor. Como os raios de sol me incomodam, puxo as cortinas da janela.
Pamela, ao meu lado, escuta música. Dou um sorriso, achando graça nos movimentos cheios de energia que ela faz com as mãos enquanto canta trechos das músicas. Pelo pouco que conheço dela, sou capaz de apostar que é uma banda de K-Pop.
Direciono meu olhar para a pista, vendo com assombro uma carreta carregada passar por nós. Uma coisa me passa pela cabeça: deve ser incrível poder rodar pelo Brasil numa máquina dessas. Imagine por quantos lugares os caras que dirigem esses gigantes passam, imagine quantas histórias eles têm pra contar aos familiares e amigos.
De um jeito diferente, eu também quero conhecer muitos lugares. Dançar em cidades importantes. Ser uma bailarina famosa, chegar até meu talento me permitir. Eu sei que posso.
Solto um bocejo, fecho os olhos, já começando a sentir o efeito de ter me deitado tarde — ensaiamos até as 21h e fiquei conversando com as garotas — e de ter acordado cedo — cinco horas. Quando os abro, percebo que a van está parada e que Pamela está se levantando.
— O que foi? — pergunto, confusa.
— Pausa pra fazer xixi e pra tomar café da manhã — ela sorri enquanto guarda o fone do celular na mochila que traz a tiracolo.
Solto outro bocejo, me levanto após Pamela saltar da van. Algumas garotas se alongam a fim de destravarem seus músculos. Os meus estão doloridos. Antes de marcar o palco, vou tentar fazer uma sessão de relaxamento pra que esse incômodo passe.
Entramos no Graal como numa turminha de jardim de infância, em fila. Pamela me convence com seu jeito todo amável a tirar com ela uma selfie, e a seguir me dirijo ao banheiro a fim de fazer minha higiene. Quando saio após dar a descarga, a única pia livre é a que está ao lado da Rebeca. Resignada, me aproximo. Lavo minhas mãos e rosto, e a garota olha para o meu reflexo no espelho.
— Está com cara de cansaço, Sofia — ela dá um sorriso desdenhoso, o pingente de Estrela de Davi em seu pescoço brilhando. Deve ser uma jóia bem cara.
— É que você cansa minha beleza — respondo de um jeito seco, apropriado para garotas esnobes como Rebeca Horowitz.
A garota ri, enxuga as mãos com a toalha de papel e a atira no lixo.
— Tente não passar vergonha no palco — ela me olha por cima de seu ombro enquanto caminha para a saída. — Shalom.
Franzo o cenho e ponho as mãos na cintura, e quando a metida sai do meu campo de visão, suspiro com tédio.
Pamela sai toda risonha e franze o cenho ao me ver, indo diretamente para o lavatório.
— Que cara é essa? Parece que chupou limão.
— É o efeito Rebeca Horowitz — dou espaço para que uma mulher segurando uma garotinha nos braços se aproxime. Pamela e eu saímos do banheiro.
— Ela te provocou?
Respondo sim com um leve aceno de cabeça.
— Pediu pra eu não passar vergonha no palco.
— Que ridícula! E o que você respondeu?
Dou de ombros.
— Nada. Tô numa fase mais calma.
Pamela ri e eu me junto a ela.
Pegamos as bandejas de plástico e me sirvo de uma fatia de pão com manteiga. Peço um café expresso no balcão e entrego a comanda ao atendente pra que este anote meu gasto. Uma das coisas que se deve evitar de fazer em paradas nas rodovias é se servir como se não houvesse amanhã. Pode ser que você tenha que trabalhar lá o resto da vida pra pagar a conta.
Nos sentamos à mesa ocupada pela Juliana e pela Pink.
— Ouvi dizer que haverá diretores de escolas dos Estados Unidos e do Canadá — Juliana comenta enquanto toma seu copo de chocolate alpino.
— Será que estão atrás de novos talentos? — fico curiosa.
— Em finais de ano, com a aproximação das disputas de títulos, é assim mesmo — Pamela não dá tanta importância ao rumor da nossa colega. — As escolas estrangeiras gostam do jeito brasileiro de dançar, querem levar algo novo para suas escolas, e por isso todo ano aparece um brasileiro de destaque em companhias como o Ópera de Paris ou o Royal.
— Deve ser incrível dançar no Ópera de Paris — apoia o cotovelo na mesa e pousa o queixo sobre a palma da mão. — Já imaginou eu dançando na mesma companhia em que a Nicole Rachid?
Quem é Nicole Rachid?, pergunto em pensamento enquanto intercalo um olhar inquisitivo entre as três garotas.
— Nicole foi aluna da Letícia — Pamela adivinha minha curiosidade. — Ela ficou em terceiro lugar ano passado no Prix de Lausanne e ganhou como prêmio uma bolsa de estudos no Ópera. É uma bailarina fodidaça.
— E também é muito bonita. Ela tem um olho azul e outro castanho.
— Que moça peculiar — tomo um gole de café. — Parece uma fada.
— Era o apelido dela.
Bem longe de nós, à nossa frente, Rebeca sorri enquanto segura o celular diante dos olhos, e a julgar por sua expressão, sou capaz de apostar um rim que está conversando com o namorado. Por mais que pareça ridículo eu dizer isso — já que nunca tive um namorado de verdade —, conheço bem a expressão corporal de meninas que estão namorando. A gente enxerga de longe o brilho nos olhares delas.
Tenho pena do Léo. Um cara tão do bem, namorando uma moça esnobe que só fala coisas desagradáveis e parece ser vazia por dentro, incapaz de se importar com alguém. Ele merece coisa melhor.
Mas eu não tenho nada a ver com a vida dele, nem de ninguém. Cada um que se foda com seus problemas.
Nos levantamos e andamos até os caixas, apresentando às funcionárias antipáticas nossas comandas. Entramos nas vans após pagarmos e seu Eduardo entra novamente na Bandeirantes.
Acabei adormecendo novamente enquanto escutava música. Só acordei quando chegamos ao nosso destino, e uma das coisas que me impressionou foi o rio. Ao perguntar a Pamela o nome dele, ela respondeu que é o Tietê. Curioso, não é? O rio poluído e sem vida que delimita São Paulo é limpo e de águas cristalinas no interior do Estado.
Seu Eduardo nos leva para uma escola pública. Ficaremos alojados aqui neste fim de semana. Rebeca desce da van do filho de seu Eduardo com a mochila nas costas e carregando os porta tutus nos ombros, não fazendo questão alguma de esconder seu desprezo pelo prédio.
— Isso é uma escola ou um reformatório? — faz uma careta ao perguntar.
— Pelo menos tem um teto pra abrigar a gente — respondo com rispidez. — Sua alteza pode alugar um quarto de hotel, caso não goste das acomodações.
— Ora! Nós somos uma família, portanto temos que ficar juntos — a ironia dela é irritante.
— Não somos uma família, somos um corpo de baile — ponho meu porta tutu no ombro, me distancio de Rebeca.
Somos recepcionados na entrada por um senhor de bigode branco que se apresenta como Ulisses. Ele nos conduz pelo interior da escola, e ver as marcas de giz no chão, pichações e rachaduras nas paredes, me faz pensar que seus alunos não são necessariamente fáceis de lidar.
— Espero que não haja baratas aqui — Pamela sussurra ao meu ouvido.
Os corredores da escola são exíguos, mas a vista da janela da sala que será nosso quarto coletivo improvisado é satisfatória; podemos ver daqui boa parte da cidade.
— Você trouxe sua faixa elástica? — Bruno me pergunta.
Respondo com a cabeça que sim.
— Vai se alongar? Letícia disse para a gente ir ao teatro assim que chegássemos.
— Estou com câimbras por ter vindo espremido na van, por isso quero esticar meus músculos um pouco.
— Tudo bem — abro a mochila e entrego a thera band ao meu colega.
— Valeu, amiga.
Ulisses nos passa orientações quanto ao uso dos chuveiros. Depois de deixarmos nossos colchões infláveis no chão e os cobertores sobre os mesmos, vou ao banheiro com uma muda de roupa e tomo um banho rápido a fim de tirar a sensação de cansaço. Faz tanto calor que nem me importo com a água fria.
…
Levamos apenas cinco minutos para chegar ao Teatro Zita de Marchi. Letícia está na porta conversando com algumas senhoras que imagino serem professoras de balé, e atrás delas algumas garotas com moletons se alternam entre tirar selfies ou demonstrar passos de dança.
O legal é que também há crianças. Estas são as mais empolgadas.
— Bom dia — nossa professora interrompe sua conversa e nos olha com uma expressão inquisitiva. — Vocês demoraram.
— Nós deixamos parte da nossa bagagem na escola — Pamela explica — e aproveitamos pra comer naquela padaria no começo da Rua João Gerin.
— Pensei que seu Eduardo tivesse feito uma parada no caminho.
Minha colega e eu trocamos um olhar com significado e olhamos para alguns de nossos colegas que estão atrás de nós.
— Os salgados são muito caros — Juliana responde.
Letícia assente.
Uma das mulheres fixa em mim seus olhos amendoados, me fitando com uma expressão de curiosidade.
— Essa moça é sua nova aluna?
Saco, será que vou ser atração nesta cidade?
Letícia sorri e põe a mão em meu ombro.
— É sim. Ela é a Bombom. Eu a trouxe de Campos do Jordão pra fazer dela uma nova estrela da Promoarte.
— Ela é linda e tem uma postura altiva. Estou ansiosa para vê-la dançando. Ela me faz lembrar a Duda, nossa ex-Primeira Bailarina Estadual.
Apesar das palavras elogiosas, estas não são suficientes pra fazer com que um único músculo do meu rosto se mova.
— Obrigada — me mantenho neutra.
Ela dá um sorriso sem graça.
— Bem, eu vou passar algumas instruções para os meus alunos. Nos vemos depois, Letícia.
As outras senhoras também pedem licença e se retiram.
Letícia põe as mãos na cintura ao me avaliar, e para minha surpresa, ao invés de me censurar por ter sido seca com sua colega, abana a cabeça e ri. Em seguida ela sai.
Caminho até um canto do vestíbulo, me distanciando um pouco das pessoas. Destravo o celular e mando uma mensagem para minha mãe avisando que já estou em Barra Bonita e que daqui a pouco iremos para a marcação de palco.
De repente sinto um gostoso aroma de perfume amadeirado e uma voz conhecida chega aos meus ouvidos.
— E aí?
Me viro rapidamente. Odin está parado diante de mim com uma mochila pendurada no ombro direito. Seu semblante, como sempre, é provocativo, afrontoso e cínico.
— Oi — mexo levemente os lábios, guardando o celular na mochila.
— Não esperava que você viesse — falo com um pouco de surpresa.
Ele dá de ombros.
— Eu também não estava a fim de vir. Desfilei ontem à noite no Rio de Janeiro, tô um pouco cansado, mas resolvi vir.
— Tô vendo.
O louro me avalia com seus olhos azuis escuros, posso perceber seu cansaço.
— Com licença, tenho que encontrar minha mãe — ele passa por mim e segue apressadamente um grupo de pessoas.
Seguro a mão contra o peito. Um tipo de quentura escapa por meus poros e não consigo suportar as palavras que arranham minha garganta.
— Qual é a tua, Odin?
O tom da pergunta sai mais alta do que eu pretendia e foi suficiente pra que o garoto parasse e se voltasse pra mim com os olhos arregalados.
— O quê? — ele não entende.
— Está na cara que você não curte balé e que você não liga para esse mundo rosinha, de garotas vestidas de figurinos, calçando sapatilhas de pontas e saltando e girando no palco. Você não fala a língua dessa gente. Você perdeu a conexão que um dia teve com a dança, e no entanto, está aqui, como uma figura deslocada, fazendo o que não gosta. O que você quer com isso? Tentar provar pra si mesmo que é capaz de ser bom em tudo o que fizer? Ou só agradar sua mãe?
A mudança da cor do rosto de Odin é instantânea. É como se tivesse sido atingido por uma descarga elétrica.
Ele volta até mim em passos largos e só então começo a entender que ficar de boca fechada muitas vezes é sinal de inteligência.
O rosto dele, no entanto, readquire o ar cínico e folgado de sempre.
— Isso não é da sua conta, é? — embora calmo, sei que toquei num ponto dolorido dele.
— Não — reconheço que fui inconveniente.
Ele assente, pondo as mãos nos bolsos.
— Bombom…, se algum dia eu quiser te contar algo da minha vida, você nem precisa perguntar.
A raiva se apossa de mim e posso sentir meu corpo querer estremecer. Mas não é raiva do louro arrogante e sim, de mim mesma.
— Você não tem nada que me interesse, Odin Dressler — insinuo um sorriso afrontoso.
— Bom. Bem, agora vou indo. E por favor, se quiser que os avaliadores te dêem uma boa nota, lembre-se que só dançar bem não é suficiente, então, quando dançar, sorria como uma princesa de contos de fada.
Cruzo os braços em desafio.
— Pode deixar — murmuro.
Odin assente e desta vez anda sem se deter, mesmo quando meus lábios deixam escapar um babaca.
— Caramba, você é bem devagar — Pamela segura minha mão e me puxa, quase me fazendo desequilibrar. — Vamos, a gente já vai começar a marcar palco.
Minha amiga me conduz por um corredor que leva à coxia. Os competidores estão se aquecendo no palco, ensaiando saltos e giros. Um grupo de bailarinos sai e uma moça de cabelo preto se dirige ao palco. Ela usa um collant rosa, com saia tule rosa e seu coque é baixo.
— Aquela é a Vitória Couto — Pam quase sussurra ao meu ouvido. — Ela é de uma escola de Jundiaí e dança demais. Parece que vai disputar o título de primeira bailarina no final do ano.
Me sento no chão e tiro meus tênis e também a calça de moletom. Como já estou de collant e meia calça, ponho as ponteiras e calço as pontas, amarrando os lacinhos, enquanto a garota chamada Vitória começa a dançar uma variação de Coppélia. Ela nem precisa fazer muito pra chamar a atenção: é alta, bonita, tem pernas compridas e um arco de pé perfeito. Os colegas da garota a aplaudem como se ela estivesse dançando pra valer e não apenas marcando palco.
Me levanto do chão e tiro minha camiseta, expondo meu collant regata preto, e faço um coque minimamente aceitável. Vitória passa sorrindo por mim e por Pamela, e posso ver que ela parece uma fada. Seu cabelo negro é uma moldura perfeita para seu rosto branco, os olhos verdes claros. Ela não dá atenção a ninguém e sai da coxia sendo ladeada pelas amigas.
Os bailarinos se alternam no palco enquanto aguardo minha vez. Começo a entrar num estado emocional que beira entre a ansiedade e a euforia, o que faz com que eu peça calma a mim mesma. Cruzo os dedos diante do peito, fecho os olhos.
Escuto a voz de Letícia me chamando da cabine de som.
Bombom, canto 5!
Diante de uma pequena plateia (composta de uns poucos alunos, professores e profissionais da dança), executo os passos do balé de repertório que vou dançar. Cometo alguns erros e Letícia pede pra que eu repita.
Se acalme, peço a mim mesma. Você dançou essa variação muitas vezes, ela te deu o título de solista Pulse, então não é uma coisa que você não domine.
Inspiro e expiro, me posiciono novamente no canto 5 e parto para mais uma demonstração, que também é a última.
A música sai através dos amplificadores. Minha alma se transforma para um lugar onde não há barulho, onde não há tempo. Parece que meu corpo levita, parece que estou saindo de mim e dando meu corpo para que Diana o possua e sua vontade oriente meus passos.
Seria essa a simbiose entre bailarina e personagem?
A resposta está além da minha compreensão. Não quero compreender nada. Só quero ficar contente com meu desempenho, me sentir bem comigo mesma e acreditar que sou capaz.
Mal termino de ensaiar a variação clássica e já emendo com o balé contemporâneo que vou dançar amanhã. Nada como trocar meu par de pontas por sapatilhas de lona e fazer movimentos mais ousados no palco.
Ao contrário do primeiro ensaio, desta vez me jogo. A adrenalina de dar saltos arrojados com rolamentos no chão é como um combustível, como uma droga, que faz com que eu chegue ao êxtase. Me sentindo imponente, finalizo com uma sequência de saltos e caindo sobre o tablado em um dos meus flancos.
Me ponho em pé e saio do palco, e a primeira pessoa que vejo é Rebeca Horowitz. De braços cruzados, com seu sorrisinho irritante, me avalia da cabeça aos pés e eu respondo empinando meu queixo.
— Tenho que reconhecer que você não é tão ruim — ela murmura.
— Você também não é nada má — sorrio. — Pode conquistar um segundo lugar.
Não posso cair nas provocações de Rebeca, prometi a mim mesma que nada vai abalar meu equilíbrio. É meu primeiro festival pela Promoarte, eu sei que há pessoas que esperam muito de mim. E eu vou mostrar do que sou capaz.
Quero calar a boca de todo mundo que está duvidando de mim.
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