Capítulo 12
O tempo começou a mudar em São Paulo. As frentes frias pararam de chegar, e de repente, todas as árvores começam a recuperar o verde de sua folhagem com o eminente fim do inverno.
Tudo passou a ter cheiro de novo. De vida.
O guarda chuva me protege dos pingos grossos que caem. É a primeira vez que estou voltando para o estúdio sob chuva. Tomara que passe logo essas sensações de novidade, tipo: minha primeira chuva em São Paulo, minha primeira ida ao Burguer King.
— Boa tarde, Clara — falo ao deixar o guarda-chuva molhado à porta, junto com os outros guarda-chuvas.
— Boa tarde, Bombom.
Esfrego os pés no tapete, a fim de não tomar um escorregão no piso de azulejo e ando em direção ao quarto. Antes dou uma espiada pela grande janela, vejo os bailarinos da companhia principal da Letícia Ballet ensaiando.
Jordana me vê enquanto anda para um dos cantos ao lado de Alice. Elas sorriem, as mãos em bra bas, prontas para começarem os exercícios de diagonal.
Como duas moças tão diferentes uma da outra podem ser tão amigas?
Alice passa a mão em sua cabeça pelada, faz a pose inicial, e quando a dupla a frente delas termina sua rotina, ela e Jordana saem.
Vai demorar pra caramba pra eu chegar no nível delas, falo pela milésima vez em pensamento. Mas vou conseguir.
Entro no quarto, fecho a porta atrás de mim, me deixo cair na cama. Me revolvo, ficando em posição fetal. Meu celular toca.
— Oi, mãe — dou um sorriso.
— Tudo bem, filha?
— Tudo. Acabei de chegar do colégio e daqui a pouco vou para a aula de balé.
— Aquela dor que você estava sentindo passou? — paira um pouco de preocupação na pergunta da minha mãe.
Há uma semana venho sentindo incômodos musculares nas panturrilhas e partes posteriores das coxas devido às aulas de chão e alongamentos. Contei à minha mãe, e preocupada como é, acha que preciso ir a um ortopedista.
Não deixa de ser engraçado. Bailarinos costumam se consultar com fisioterapeutas, nesses casos.
— Mãe, eu não vou cair por causa disso, ok? Já te falei que é normal.
— Mas você nunca reclamou de dores quando estudava na escola de dona Fernanda.
Embora eu nunca tivesse reclamado (já que eu era durona), claro que eu sentia.
— Dona Fernanda não dava aula de chão como a Letícia Espinoza — explico, revirando os olhos.
Minha mãe é uma das pessoas mais desconfiadas que conheço e não adianta explicar a ela que sentir dores musculares no balé faz parte da nossa evolução, e que sem dor, não há ganho.
— Se essa mulher estiver judiando de você, vou até aí falar com ela.
Uma risada inevitável escapa da minha garganta, e mamãe não gosta, é óbvio.
— Você se perderia aqui em São Paulo, mãe. Ir de um bairro para o outro não é como pegar os ônibus verdes da Viação na Montanha e ir da Vila Abernéssia para a Vila Capivari.
Por outro lado, bem que eu gostaria que meus pais e meus irmãos viessem me visitar um dia. De repente a saudade bate e me interrompo quando me lembro das manhãs em que nós quatro tomávamos café e conversávamos.
— Bombom?
— Tô aqui, mãe. E o Cadu, está feliz no emprego dele?
— Seu irmão foi transferido para Santo Antônio do Pinhal. Vai trabalhar como repositor.
— Que bom. Fico feliz por ele. Ele é um chato, um babaca, mas eu o amo.
— Que maneira de demonstrar amor por seu irmão!
Dou outra risada.
Como se Carlos Eduardo não falasse a mesma coisa de mim para os amigos dele. Se bem que no caso dele, é para que ninguém se aproximasse de mim, já que tem ciúme da irmã bailarina.
O problema é que também tenho ciúme dele. Não vou aceitar ter qualquer putiane como cunhada.
— Tchau, meu anjo. Se cuide — minha mãe recomenda, depois de conversarmos por cerca de dez minutos.
— Tchau, mãe.
Travo o celular, olho um pouco para o teto, e antes que o sono me vença, fico em pé num pulo e vou até o armário. Tiro um collant de uma das gavetas, meia calça, deixo-as sobre a cama e entro no banheiro segurando uma toalha e uma calcinha.
Entro sob a ducha morna do chuveiro assim que termino de ficar pelada, e canto um trecho de um funk que a MC Lara acabou de lançar enquanto me ensabôo sem pressa.
Saio do banheiro só de calcinha e visto a meia calça, cobrindo minha nudez com o collant regata. Já que hoje não temos aulas de pontas, calço as sapatilhas e começo a fazer o coque em frente ao espelho.
Eu teria evitado muitos aborrecimentos se desde meu primeiro dia tivesse me produzido no quarto; por vezes eu me chamava de burra por ter caído nas provocações da Rebeca. Pelo menos aqui não tenho que olhar para aquele sorrisinho sarcástico dela, nem ouvir comentários irônicos sobre minha cidade ou sobre minha antiga escola de balé.
Uma vez feito o coque, prendo-o com grampos e ponho uma redinha em volta, e dou uma volta, olhando meu bumbum no espelho. Esse collant faz com que ele pareça maior, mais bonito, e sorrio para mim mesma.
No corredor, encontro os bailarinos do Balé Avançado. Jordana, Angel e Alice conversam enquanto bebem de suas garrafas de água, e minha colega de quarto acena com os dedos enquanto passo.
— Boa aula — ela me deseja.
Respondo com um sorriso e sigo em direção à sala. Falta meia hora para o início da nossa aula, e como Letícia costuma se atrasar às vezes, talvez eu tenha quarenta minutos para me aquecer.
Basta eu abrir a porta e entrar para boa parte do meu entusiasmo descer pelo ralo: Rebeca Horowitz — sempre ela — está pondo um pen drive no aparelho de som, e quando me vê, franze o nariz.
— Ah! Você — faz com ar esnobe.
— Eu estudo aqui. Por que o espanto? — retruco.
— Não tô espantada. Só não esperava que você entrasse. Normalmente, eu sou sempre a primeira a chegar.
— É, me disseram isso. Você é a mais aplicada, a mais técnica, a fodona daqui, e estão te preparando pra disputar o título de primeira bailarina.
Um sorriso de orgulho aparece no rosto perfeito da garota de pele quase albina e olhos azuis confrontadores.
— Que bom que sabe — ela cruza os braços em atitude de desafio.
Dou de ombros, e ignorando-a, caminho até o fundo da sala.
— Se não se importa, também vou treinar — estico minha perna esquerda sobre uma das barras, afundando meu tronco sobre ela num ângulo zerado.
— Desde que você não me atrapalhe — Rebeca insiste em usar comigo um tom nada amigável.
— Não vou nem chegar perto de você. Não quero que a futura postulante ao título de primeira bailarina perca o equilíbrio como naquele dia — sorrio de um jeito irônico que irrita a morena a ponto de fazer com que seu rosto se retraia.
Ela dá dois passos em minha direção e para quando encurto a distância entre nós duas.
— Quem você pensa que é, garota? — ela agita as mãos.
— Alguém que está na tua cola e que pode atrapalhar o teu sonho de ser estrela.
— Há há há há! Muito engraçado. Eu danço desde os três anos de idade, sempre estudei nas melhores escolas de balé e tenho dinheiro pra pagar por aulas particulares, além de poder competir fora do Brasil. E você?
— Eu tô me lixando pra isso. O teu dinheiro, ou melhor, o dinheiro do teu pai pode comprar muita coisa, menos talento.
Rebeca Horowitz dá mais um passo em minha direção e ergue o indicador em riste, mas antes que ela retruque, encolhe-se quando a porta se abre e Jordana adentra, intercalando um olhar inquiridor entre nós duas.
— Está tudo bem, meninas? — ela dá um sorriso conciliador, embora eu saiba que tenha ouvido nossas trocas de farpas.
— Aham! — Rebeca acena a cabeça. Ao contrário dela, não relaxo minha postura. Não me intimido com ninguém, nem com bailarinas adultas.
— Bombom? — a ruiva sustenta meu olhar no dela.
— Está tudo certo, Jô — sou econômica nas palavras.
— Que bom. Pensei que tivesse ouvido vocês discutindo.
— Imagine! — Rebeca dá um sorriso sem graça. Ela é desaforada, porém covarde.
Jordana olha para a porta e acompanho seu movimento de cabeça. Alice está com o cotovelo apoiado no batente, ainda de collant, e calçando um par de tênis.
— Vamos, Jô? Preciso comer logo alguma coisa antes da porra do ensaio.
Jordana faz um movimento afirmativo com a cabeça.
— Boa aula, meninas. A Alice, o Angel e eu vamos no restaurante dali da frente.
— Obrigada — Rebeca e eu falamos ao mesmo tempo.
Esperamos o som da conversa entre as duas amigas ficar mais baixo à medida que elas andam pelo corredor, e quando escutamos o barulho da porta da entrada da escola se fechar, voltamos a nos encarar.
— E aí? Não vai treinar? — cruzo os braços.
Rebeca solta um grunhido igual ao das bruxas dos contos de fada quando são derrotadas, e andando para perto da parede de espelhos, faz a pose para o início de uma série de exercícios de Allegro.
Ela tem equilíbrio nas pirouettes, tem expressividade, é leve quando salta no ar e está sempre dentro da contagem de tempo, digo a mim mesma enquanto tento não deixar transparecer que estou admirada.
Ela é boa. Ela merece ter atenção da Letícia.
Me sento no chão para dar continuidade ao meu alongamento, mas não consigo parar de olhar para Rebeca, para seus movimentos quase perfeitos.
Talvez eu precise fazer aulas particulares pra entender melhor as técnicas dos passos e ter condições de disputar com ela.
Mas será que Alice me daria essas aulas?
Declino no instante seguinte dessa ideia. Aulas particulares são caras e não tenho dinheiro, embora tenha começado a dar aulas para as meninas do Baby Class. Vou ter que me virar.
…
Como na maioria das vezes, Letícia está disposta a nos matar. Sua voz ecoa com firmeza pela sala enquanto nos dá instruções, muitas vezes interrompendo a aula quando julga necessário corrigir os erros de um ou de vários alunos.
No meu caso, ela se aproxima e pede para que eu incline meu tronco à frente em souplesse e o levante.
— Assim! — põe uma das mãos na minha lombar e a outra logo abaixo dos meus seios, me pressionando de leve. — Seu peito deve se projetar para o alto, sua espinha dorsal fica reta.
Letícia enfatiza que a coluna é o primeiro conjunto de ossos que se forma num bebê, e por isso, devemos sempre mantê-la alinhada.
No grand battement, que é um exercício em que posso mostrar o alongamento máximo das minhas pernas, lanço-as o mais alto que posso, tanto em devant, a la second e derriere. Não acho que ainda exista líquido dentro de mim, já que meu collant está molhado de suor, mas ainda tenho que fazer esforço pra girar pirouettes na barra.
— EU NÃO ESTOU VENDO OS PÉS DE VOCÊS ARRASTAREM NO CHÃO! — Letícia bate palmas enquanto margeia os alunos nas barras. Pamela tem seu braço esquerdo sustentado pela professora. — Força nesse braço. Força nesse braço — ordena.
O que me deixa desestabilizada nem são os rompantes da nossa professora, muito menos a complexidade dos passos (muitos deles ainda novos pra mim), mas a presença de Tânia Dressler e seu filho. Os dois estão sentados nas mesmas cadeiras em que estiveram há semanas atrás, quando fiz minha aula teste. Mesmo focada apenas na minha dança e no meu reflexo no espelho, às vezes meus olhos encontram os do louro alto e musculoso, e percebo um ar sarcástico.
Será que ele precisava ter vindo? Ele é modelo, não é? Ele não devia estar desfilando ou tirando fotos para catálogos de cuecas fio dental?
Depois de eu não ir com a cara de uma pessoa, é difícil eu formar uma opinião positiva sobre ela. Ela tem que se esforçar muito. Gigi diria que nem uma canceriana seria como eu, rancorosa, ou do tipo que até perdoa mas não esquece.
Esse cara, Odin, tem uma energia tão… desafiadora. A verdade é que não gosto que olhem pra mim à modo de desafio, como que empinando o queixo dizendo: e aí?
Mesmo eu não querendo chegar muito perto dele, não consigo evitar quando giramos tour piqués em volta da sala. Tento me blindar, dizendo a mim mesma que tenho que me concentrar unicamente em não perder o equilíbrio.
— Por hoje é só — Letícia diz após fazermos reverence. — Os bailarinos que vão dançar em Barra Bonita ficarão para ensaiar seus balés de repertório.
Alguns alunos saem, dando tchau para Letícia. Esta se aproxima de Tânia e as duas conversam um pouco, enquanto Odin desliza o dedo pela tela de seu celular e lhes mostra algo.
Aproveito o breve tempo de descanso para tomar um gole de água. Duas ou três bailarinas estão treinando suas coreografias (longe uma da outra, a fim de evitarem um choque), Felipe sai de uma das diagonais dando saltos potentes e para quase a frente da diretora artística da Promoarte e seu filho.
— Rebeca, você ensaia primeiro — Letícia faz com a mão um gesto para que a versão má de Branca de Neve se adiante.
Ela passa a menos de dez centímetros de onde eu e Pamela estamos. Mostra uma performance limpa, técnica e artísticamente irretocável, fazendo por merecer o elogio de Tânia. Esta só a adverte quanto a um olhar mais baixo do que o necessário.
— É papel dela fazer correções? — pergunto para Pamela, tomando o cuidado para não ser ouvida.
— Sendo dona da produtora, ela pode fazer o que quiser — ela dá de ombros e cruza os braços.
Depois de acatar os conselhos da toda poderosa, Rebeca ensaia mais uma vez sua coreografia contemporânea, e também o pas de deux de Pássaro Azul que vai dançar com o Bruno. Os dois fazem um bom ensaio. Pamela é a próxima a usar a sala, e eu me posiciono para ensaiar minha variação de Diana.
Basta a música sair da caixa de som para que eu incorpore a aura da deusa da caça. Me imagino segurando um arco, pronta para disparar uma flecha. Sorrio com altivez enquanto olho diretamente nos olhos de Tânia, Letícia e Odin, e diferentemente das duas bailarinas que me precederam, não preciso repetir o ensaio: a mestra de dança se dá por satisfeita.
— Muito bem, Bombom — Tânia me oferece um sorriso.
Retribuo na mesma medida ao elogio. Outros bailarinos ensaiam, e como sou a que tem menos coreografias para apresentar em Barra Bonita, aguardo no fundo na sala, esperando minha vez para ensaiar mais uma vez, até que sinto sede e percebo que minha garrafa está vazia.
Saio da sala sozinha, me esgueiro até o bebedouro e misturo no recipiente de alumínio água gelada com água em temperatura normal.
— Você dança muito bem.
Giro meu pescoço rapidamente e meus olhos vão de encontro aos de Odin, que está parado à minha frente com as mãos nos bolsos.
— Você quer me matar de susto? — pergunto.
Ele ri, só para me irritar e reforçar minha tese de que ele sente um estranho prazer em me tirar do sério.
— Não é minha intenção — responde.
— Por acaso sabe a diferença entre um salto e um pulo? — cruzo os braços.
— Eu não danço há sete anos, e nem tenho a flexibilidade e o alongamento que tinha, mas ainda me lembro dos nomes dos passos e dos fundamentos técnicos.
Balanço a cabeça levemente para os lados. De repente uma risada baixa sai da minha boca.
— Não consigo imaginar que um dia você dançou — observo.
— Só porque trabalho num ramo diferente da dança?
Dou de ombros.
— Não sei. Mesmo professores com quarenta, cinquenta anos, tem algum vestígio de que algum dia pisaram num palco ou viveram numa sala de aula. Mas você tem movimentos duros.
— Consigo entender. Eu não estudei porque quis, mas porque minha mãe me obrigou. Ela queria que o filho fosse um Roberto Bolle, ou no máximo um primeiro bailarino de uma companhia brasileira. Mas tirando o fato de dançar com bailarinas muito gatas, era um mundo muito rosa pra mim, e isso não combinava nem um pouco comigo.
— E ao criar coragem e dizer para a Tânia que queria ser modelo, jogou fora suas sapatilhas de meia ponta e nunca mais pegou numa barra, certo?
— Sim.
— Então, por que está aqui? Ou melhor, por que é assistente da sua mãe, já que esse mundo rosinha — faço aspas com os dedos — é tão sem graça? Será que o seu cachê como modelo é baixo e ela ameaçou cortar sua mesada, caso não a ajudasse?
Odin ri, mas percebo uma pontada de ressentimento em seu semblante.
— Fique sabendo que não recebo mesada. Eu não gosto de dizer quanto ganho, mas posso manter meu carro e meu apartamento com o que eu recebo modelando. Tenho certeza que o eu ganho em um mês, você nunca recebeu em sua vida toda.
— Dinheiro nunca me fez falta — tento não perder o rebolado. — Mas você não me disse por que é assistente da sua mãe, já que não gosta de balé.
— Apesar de eu não gostar de balé, a Promoarte é um patrimônio da minha mãe e ela está esgotada mentalmente. Por muito tempo não conversamos direito, o que causou uma ferida em nós dois, que quero tentar curar ficando ao lado dela por um tempo, até que encontre uma pessoa a quem possa preparar para assumir a diretoria da produtora.
Mordo o lábio inferior. Tenho que admitir que é um gesto maduro da parte dele.
— Se você não contasse, eu não teria desconfiado — murmuro.
Odin assente. Seu semblante fica grave e ele elimina a distância entre nós após ficarmos um breve instante silenciosos.
— Com licença? — ele aponta para o bebedouro.
Saio do lado para que ele pegue um copo plástico e o encha de água. Toma um gole rapidamente, atira o copo na lixeira e ao dar dois passos, me olha por sobre seu ombro.
— Você tem que ensaiar mais uma vez, então volte logo para a sala.
Meus olhos piscam. Minha boca semiabre, e abaixando um pouco o olhar, toco minha garrafa de alumínio, pensativa.
…
Hoje é um daqueles dias em que tenho dificuldade para me manter desperta. À todo momento bocejo, mal presto atenção ao que o professor de História explica. O sinal tocando, avisando que a aula acabou, é como uma canção libertadora.
— Finalmente — Jaqueline se levanta de sua carteira, pondo nos ombros as alças de sua mochila.
Saímos juntas do colégio, desviando dos alunos que saem como fugitivos de um hospício, e só começamos a conversar quando transpomos o portão.
— Você devia ter trazido um travesseiro — minha amiga brinca. — Toda vez que eu te via, seus olhos estavam quase fechados.
— É que eu demorei a dormir essa noite — explico, desviando do galho de uma árvore. — A Alice foi até o quarto onde a Jordana e eu dormimos e elas ficaram conversando até meia-noite.
— Alice é aquela bailarina careca, que tem o corpo cheio de tatuagens? E que é tatuadora também?
— Ela mesma.
— Putz, ela é bem sem noção. Eu tô dormindo faz tempo nesse horário.
— Eu até gosto dela. No começo pensava que ela era bem arrogante, nariz empinado, mal humorada. Hoje penso completamente diferente.
Jaqueline assente.
Andamos conversando até o próximo cruzamento. Nos despedimos e continuo seguindo sozinha.
Então dois rapazes aparecem e bloqueiam minha passagem. Encrenca.
— Saiam da minha frente! — ordeno.
— Hum! Garota marrenta, hem? Você não tá em condições de pedir nada. Aqui não é o colégio e o diretor veado não tá aqui pra te defender. Você vive dizendo que a gente é idiota, mas isso vai acabar aqui, entendeu? Você não sabe com quem está se metendo, por isso é bom ficar na sua.
Desde que comecei a estudar na escola Vitória Spoladore, tenho pensado bastante antes de dar cada passo. Eu evito ficar perto das chamadas garotas populares, dos playboyzinhos cuzões, dos rapazes que usam drogas e dos que gostam de causar problema. Deu certo por algum tempo.
Os dois cuzões que adiantam dois passos a cada passo que eu recuo costumam dizer coisas desagradáveis para as meninas, e uma delas se sentiu constrangida quando um deles disse, enquanto íamos para a aula de Educação Física, que queria ter uma bunda igual a dela todas as noites para dar um tapa. E como não sei manter a boca calada, a defendi e os chamei de babacas. E como eles tiram e me imitaram, fiz algumas observações sobre meninos punheteiros que não sabem conversar com meninas e falam as merdas iguais aos que eles falaram pra tentar passar imagem de pegadores, mas na verdade são uns bundões. Todo mundo riu e eles ficaram vermelhos de vergonha e raiva.
Mas não parou por aí. Continuei me estranhando com eles. Chamei-os de idiotas, e quando um deles tentou me agarrar, dei um chute bem dado no saco dele, derrubando-o.
— Você vai ver só, sua vaca…! — ele se contorceu no chão.
— Vai contar para o diretor que a aluna novata chutou suas bolas? Conte, e eu aproveito pra contar o motivo.
O idiota se levantou e saiu encurvado, quase correndo.
Pensei que ele se daria por satisfeito, mas eu devia saber que idiotas não sabem quando parar. E aqui estou eu, Bombom, sendo acuada e intimidada pelos dois.
— Não se aproximem ou eu… — a frase fica em suspenso na minha boca quando meu braço é agarrado.
— Ou você o quê?
— Solta ela, seu covarde.
Nos viramos ao mesmo tempo. Léo, o namorado da Rebeca Horowitz, vem andando em nossa direção. Seus olhos negros se fixam nos dois garotos como flechas incendiárias. Seu queixo é duro e seu semblante irradia raiva.
— Não se meta, Léo. Isso não é da sua conta — o cara que segurava meu braço aponta o indicador em riste para o garoto que acaba de chegar.
— Quando um covarde intimida uma garota na minha frente, passa a ser da minha conta.
Os dois valentões viram as costas para mim e caminham em direção a Léo, que os avalia. Não demora, e logo um deles ataca com um soco. Porém, Léo desvia no último segundo e dá um murro no olho de seu agressor, seguido de um soco no fígado. O amigo tenta um chute, porém sem sucesso: Léo se esquiva e aproveita a guarda aberta do agressor para derrubá-lo e chutar-lhe a perna.
Assustada, não consigo mexer um único músculo enquanto os três garotos trocam murros. Os poucos transeuntes que se aproximam, ao avistarem a confusão, atravessam a rua e mudam de calçada, pois tem medo que sobre para eles um soco.
Apesar de estar em desvantagem numérica, Léo não tem dificuldade alguma de se esquivar dos dois. Em contrapartida, todos os seus golpes são certeiros, o que me faz pensar que ele é acostumado a brigar.
Um dos agressores cai estatelado de costas no chão e se senta, já sem ânimo e condições de continuar a briga. Seu amigo toma outro murro no fígado, por pouco não cai. Ergue as mãos em rendição.
— Parou, cara! Parou!
Léo, que se projetava com os punhos fechados para finalizá-los, estacou. Estava ofegante, cansado obviamente, mas ainda disposto a brigar.
— Vou falar uma coisa pra vocês, seus bostas: se eu ver os dois se metendo com a Bombom de novo ou com qualquer garota da escola, da próxima vez não vou pegar leve — Léo apontou com o indicador para os perdedores.
— Agora vazem! — ordena.
Os valentões não se fazem de rogado e se levantam, saem rapidamente como cachorros que são afugentados da porta de um restaurante.
Léo se vira pra mim. Seu rosto tem uma pequena marca, talvez de um soco que tomou. Se aproxima de mim, para a um braço de distância.
— Ele te machucou? — seus olhos pousam no braço, nas marcas dos dedos.
— Não — aceno com a cabeça.
— Legal. Tenta não se meter em encrenca, tá? Isto aqui é São Paulo.
— O que você está fazendo aqui?
— Eu?
Léo revira os olhos, me dá as costas e abre um portãozinho de grades, passando pelo mesmo. Minha boca se abre.
— Eu moro aqui — responde. — E não gosto de confusão na frente da minha casa.
Assim dizendo, ele anda, abre a porta da casa e entra.
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