Capítulo 11
Acordo com o cheiro gostoso de café quentinho, que Jordana acabou de preparar. Me levanto após me espreguiçar, arrasto meu corpo dolorido até o banheiro, e após fazer minha higiene matinal e pentear meu cabelo armado, me dirijo à pequena cozinha do estúdio.
— Bom dia — a bailarina ruiva me oferece um sorriso enquanto põe o leite recém fervido numa garrafa térmica vermelha. A cor da garrafa não é aleatória. Jordana me contou, numa das muitas conversas que tivemos nessas duas semanas em que estou aqui, que vermelho é sua cor preferida. Me contou, rindo, que até suas calcinhas são vermelhas.
— Bom dia — bocejo.
Me deixo cair numa cadeira, apoiando minha cabeça entre os braços estendidos na mesa. Estou quebrada, com dores em todos os músculos do meu corpo devido à aula de chão que tivemos ontem.
— Parece que a Letícia pegou pesado com vocês — Jordana observa, se sentando à minha frente.
Aceno em afirmação. Solto um grunhido.
— Você tinha razão — resmungo. — Ela está começando a mostrar seu lado carrasco comigo. Imagina que mandou a gente fazer espacate frontal e lateral, e do nada ela se aproximou de mim e me mandou negativar minha abertura de pernas.
— E você conseguiu?
— Consegui, mas com a ajuda dela. Ela pôs dois blocos debaixo de cada um dos meus pés e disse: se vira.
Suspiro aborrecida.
— O pior foi ela ficar falando pra gente o tempo todo que vocês fazem isso dando risada.
— Tente ver nisso como um incentivo — assim dizendo, Jordana pega um pedaço de pão com margarina e pede para que eu abra a boca.
— Que pão gostoso — falo com satisfação após comê-lo. — Onde você compra?
— Eu desço um quarteirão e viro à esquerda. Fica pertinho.
— Posso comer mais um?
— Claro.
Espalho a margarina pelo pão e me sirvo de uma xícara de café com leite. Já que falta uma hora para a aula, como sem pressa alguma.
De repente a campainha toca.
— Já volto — Jordana se levanta e sai apressadamente. Me pergunto quem pode ser, já que a escola só abre daqui a duas horas.
Logo escuto vozes e Jordana entra na cozinha com a Alice, a garota de cabeça pelada. Ela usa jaqueta de couro preta, calça legging preta e botas de cano alto. Segura um capacete de motociclista no cotovelo.
— Oi — a bailarina careca se senta.
— Oi — respondo.
Sem cerimônia, ela pega a faca e corta um pão ao meio, espalhando margarina.
— Então quer dizer que... valeu a pena? — Jordana pergunta, mal disfarçando um sorriso malicioso.
— Super valeu a pena — Alice sorri e percebo ela morder seu lábio inferior. — A mulher tem pegada.
Espero que Alice não conte sobre sua relação sexual com essa tal mulher. Não me interesso por detalhes sórdidos.
— Vou me trocar pra ir ao colégio — comunico, arrastando a cadeira e me soeguerguendo.
— Mas ainda é cedo — Jordana não entende minha pressa súbita.
— É que...
— Ei, garota, não precisa sair só porque cheguei. Sou feia, mas não mordo — Alice dá um sorriso.
Feia? Mesmo careca, a garota à minha frente parece uma modelo de tão gata. A beleza dela é exótica, claro, do tipo impactante, mas ela tem seu encanto peculiar.
— Não, não é nada disso, não tem nada a ver com você. É que vocês duas são bailarinas profissionais e devem estar querendo conversar sobre ensaios, e não quero atrapalhar e...
— Você é sempre tão fofa assim, Bombom? — Alice Chamowitz ri. E de repente, a imagem que eu teorizei dela, de uma mulher esnobe e mal humorada, se desmancha. O que uma boa transa não faz, não é?
— Não tá atrapalhando a gente em nada — a visitante me tranquiliza —, eu saí agora do apartamento de uma mina, e como fica aqui perto, resolvi passar pra tomar um café com a Jordana.
— Somos colegas desde os oito anos de idade — a ruiva salienta.
Intercalo um olhar entre as duas, hesitante.
— Senta aí — a garota de cabeça lisa e brilhante como porcelana pede.
Sem escolha, acomodo minha bunda de novo na cadeira e tomo participação na conversa entre as duas. Para meu alívio, elas não falam sobre sexo. Alice me pergunta duas ou três coisas, e nos pouco mais de trinta minutos em que ela fica conosco, compreendo que ela é um pouco arrogante, com um humor cáustico, porém sem ser desagradável.
Mesmo que não tivessem me contado, eu teria percebido que ela é lésbica, porque seus gestos são duros e sua voz tem uma entonação forte, diferente da voz da Jordana, que é doce.
Por mais que elas tentem se esforçar para não falar sobre dança, o instinto de bailarina é mais forte, e elas comentam de forma dispersa sobre os ensaios, as apresentações, as novas coreografias. Me sinto uma bebê perto delas quando elas usam termos técnicos que nunca ouvi.
Elas ficam fofocando enquanto me tranco no quarto. Destravo meu celular. Há várias ligações da Gigi. Me sento na cama, só de camiseta e calcinha e, sorrindo, retorno para ela.
Conversamos por muito tempo, falamos de tudo um pouco, e quando me dou conta, estou em cima da hora.
— Tchau, amiga, agora preciso ir para o colégio — me despeço de Jordana.
Visto o uniforme da escola. Calço o tênis, guardo os cadernos e livros na mochila, volto à cozinha. Olho para Alice de modo sugestivo e em seguida para Jordana.
— Já estou indo — comunico. — Tchau.
As duas acenam enquanto saio. Puxo o capuz sobre minha cabeça e enfio as mãos na blusa de moletom enquanto ando pela rua Caiowaá, já pegando um trecho de subida forte. Uma das coisas que percebi neste bairro é que a maioria das ruas são ladeiras. A outra: boa parte das ruas tem nomes indígenas: ruas Cotoxó, Iperoig, Ticuna, Caiowaá, Bartira.
O porteiro espera eu entrar para fechar o portão. Mais um minuto e eu teria que esperar para entrar na segunda aula.
Os alunos já não me olham mais com tanta curiosidade como na primeira semana, o que acho ótimo. Fora dos palcos, gosto de não chamar a atenção. Caminho apressadamente em direção à minha sala, quando escuto passos atrás de mim, e por impulso, olho por sobre meu ombro.
Ele. O garoto negro do segundo ano que todos os dias me lança olhares suspeitos, e que todo mundo chama de Léo.
Paro de andar e ele passa por mim, mãos enfiadas no bolso da calça. Dou-lhe um olhar do tipo qual é a tua, cara?, que ele ele retribui com um esboço de sorriso confiante.
— Oi — ele diz.
— Oi — respondo. — Você está me seguindo?
Ele recebe minha pergunta com surpresa, mas logo uma risada irrompe de sua garganta.
— Como é? Não entendi.
— Não se faça de sonso. Você tá me seguindo.
— Por que eu iria te seguir? — o jeito com que ele finge inocência é tão irritante quanto engraçada.
— Eu é que quero saber — cruzo os braços.
— Quem sabe porque desde que você começou a estudar aqui, ainda não fomos apresentados?
— Tem formas melhores de você se aproximar de uma garota pra você saber o nome dela. Andar atrás dela feito um stalker não é uma delas.
Léo solta uma risada. Seus dentes são brancos e bem feitos. Seria uma pena eu ter que quebrá-los.
— Não tô te stalkeando — ele balança a cabeça. — Mas ok, se não podemos ser amigos, você não sabe o que tá perdendo. Porque eu sou um cara legal, sabe? Acho que já devem ter te falado isso.
Mantenho meus braços cruzados, ainda o olhando. Leonardo não se intimida com a minha cara de poucos amigos e me olha como se a qualquer momento um sorriso improvável fosse surgir em meu rosto, mas não estou disposta a ceder.
Há rumores de que Léo trai Rebeca com outras garotas. Mesmo não tendo a menor simpatia pela morena esnobe, nenhuma garota merece passar por isso: tomar chifre de namorado.
Prefiro acabar logo com isso.
— Só me chame Bombom — falo com rispidez. — Agora eu preciso ir. Estou atrasada para a aula de Matemática.
Viro-lhe as costas acintosamente e ando a passos largos em direção à sala.
— Mais um minuto e você teria que ficar sentada esperando pela segunda aula — o professor vem me recepcionar na porta, com uma cara de quem diz chupei limão.
— Desculpe. Eu acordei tarde.
Estou me saindo uma péssima mentirosa. Acordei super cedo. Tomei café tranquilamente com a Jordana e a Alice, e havia tempo de sobra para eu chegar e fofocar com a Jaque - que está lá no fundo me olhando, apreensiva -, mas a longa conversa que tive com a Gigi me fez esquecer que o tempo não para.
— Bom, que isso não se repita. Eu não abro a porta depois de fechá-la, a não ser uma hora depois. E eu te aviso desde já: eu reprovo não só por nota baixa, mas também por falta.
Engulo em seco e me encaminho para meu lugar, à frente de Jaqueline. Ela espera o professor se virar para o quadro negro para cutucar meu ombro.
— Nossa, que cara chato. E você nem chegou atrasada — minha colega comenta num sussurro.
— É, eu comecei o dia com o pé esquerdo — respondo com acidez.
Sempre odiei Matemática. Talvez por isso as duas aulas tenham passado com tanta vagarosidade. A terceira aula do dia é Educação Física, minha preferida, e hoje a professora optou por vôlei.
As garotas entram no vestiário apertado e encontro um lugar pra me trocar. Tiro o uniforme do colégio e visto o uniforme que as meninas usam: camiseta preta, short lycra vermelho, tênis e meiões. Saio por último, depois que amarro meu cabelo num rabo de cavalo alto.
Os alunos treinam levantadas e passes enquanto dois garotos amarram a rede nos mastros; o professor Cláudio dá instruções a um rapaz magro quanto ao jeito correto de calibrar a bola e apita, avisando que a partida começará logo.
— Tomara que a gente caia no mesmo time — Jaqueline diz, aparelhando do meu lado.
Sorrio para minha colega. Tiro o short justo de dentro da minha bunda, mas basta eu dar dois passos pra ele entrar de novo, então desisto.
— Vamos formar as quatro equipes de garotas e as quatro de garotos! — Cláudio brada. E batendo as palmas das mãos: — Vamos logo, gente!
Isadora e outras três garotas se perfilam para escolher as jogadoras que querem em suas respectivas equipes. Não tenho muitas esperanças de ser uma das primeiras a ser chamada, já que por causa da minha pouca altura (sou a mais baixa entre todas as garotas), todo mundo me subestima quanto à minha improvável eficiência em subidas pra bloquear as bolas.
Paulinha.
Renata.
Thaís.
Renata Izabel.
Os nomes são chamados, e quando Isadora finalmente me chama - aposto que é porque Jaqueline lhe pediu ao pé do ouvido -, só restam três jogadoras. Minha auto estima cai de uma marquise como uma maçã podre cai da árvore, mas pelo menos estou no mesmo time que Jaqueline.
Cláudio torna a acionar seu apito irritante e minha equipe entra em quadra para enfrentar a equipe de uma garota de traços japoneses.
— Ela foi esperta — Jaque comenta com acidez. — Escolheu as melhores jogadoras.
— A gente tem uma chance? — pergunto.
— De zero a cem por cento? Hum... Trinta por cento.
A perspectiva não é nada animadora.
Eu odeio perder. Só consigo ter motivação quando ganho alguma coisa, e quando a jogadora do outro time faz o primeiro ponto com um ace - a bola sacada passou por entre os braços da oposto -, um palavrão sai da minha boca em forma de resmungo.
Me esforço bastante. Me atiro nas bolas como se não existisse amanhã, como se cada bola valesse uma medalha olímpica, e a despeito da minha baixa estatura, consigo saltar alto para ajudar nos bloqueios graças ao meu impulso de bailarina. Ao cortar uma bola, eu a mando pra fora e atinjo o bico do boné do professor, fazendo-o virar para o lado. Ele apita ponto das nossas adversárias e arruma o boné na cabeça.
Nossa equipe perde e eu fico puta. Saímos da quadra de cabeça baixa, com as mãos na cintura. Fico com a impressão de que podíamos ter feito melhor.
Os garotos jogam e outras duas equipes de meninas disputam a partida mais equilibrada do dia, com apenas dois pontos de diferença. Ter assistido a esse jogo foi mais emocionante do que ter jogado.
Nos trocamos no vestiário e saímos para o recreio. Jaqueline e eu nos sentamos numa mesa com nossas bandejas de comida e copos de suco e a gente ri, descontraídas, comentando sobre a partida de vôlei.
— Você joga muito — ela comenta. — Tirando aquela bolada no boné do professor Cláudio, não errou nenhuma bola.
— Por sorte não pegou na cara dele — revirou os olhos. — Ele ia apagar legal.
— Vocês disputavam campeonatos de vôlei pelo seu colégio?
— Não. Quer dizer, as meninas saiam disputar com outras escolas, mas dona Fernanda me recomendou não participar das aulas de Educação Física por eu ser bailarina e correr risco de me machucar.
— Nossa. Essa sua professora era bem exigente. Nunca ouvi falar de uma menina que faz balé não poder fazer aula de Educação Física. Além disso, no balé também acontece de vocês se machucarem, não é?
Dou de ombros.
— Pode acontecer. Sei lá! Eu nunca me machuquei numa aula de balé.
— E você nunca reprovava?
— Não, porque os professores entendiam que o balé era uma atividade física completa pra mim.
Agora é a vez de Jaqueline dar de ombros. Como uma colherada de arroz, feijão e carne, olho fixamente para os olhos da minha colega.
A saída da aula é um atropelo, como costuma ser todos os dias. Os garotos se acotovelam quando estamos perto do portão, disputando pra ver quem é mais idiota e passa primeiro pela pequena porta. Gritos de cuzão, veado, ai meu pé, porra. Tento evitar ser tocada e empurrada enquanto Jaque e eu saímos, mas um deles atinge meu ombro e quase caio.
— Você não olha por onde anda, seu cuzão? — pergunto emputecida.
O babaca só me olha por sobre seu ombro e rindo, chupa seu dedo médio num gesto obsceno, me sugerindo uma coisa ainda mais nojenta.
Tem como não achar garotos os seres mais idiotas que existem? Podem dizer que é testosterona, mas eu acho mesmo que é falta de alguns neurônios.
Jaqueline me pede para não ligar, porque aquele garoto anda com uma turma de rapazes barra pesada, e não é legal uma garota novata arrumar treta.
Já é a quinta vez que escuto uma coisa parecida com essa: que não é pra eu falar o que eu bem entender. Que as escolas de São Paulo são diferentes das escolas de Campos do Jordão, que aqui a banda toca de um jeito diferente. Tirando a Jaqueline, que eu acredito ser uma pessoa de confiança, parece que os outros alunos dão essas informações como que me lembrando que eu sou uma garota da montanha e que sou ingênua em se tratando da maldade e da malícia dos jovens da cidade grande.
Que babacas! Se soubessem que eu sei me adaptar rápido a todo tipo de ambiente e que não sou um poço de inocência como pensam.
Desde que cheguei na capital para dar um passo a mais para o meu sonho de um dia ser uma bailarina famosa e competir em festivais fora do Brasil, vi coisas que deixariam garotas como Eva, Nádia e Gigi de boca aberta, como por exemplo, moradores de rua andando à esmo pelas imediações da estação de metrô Palmeiras-Barra Funda, fedendo urina e álcool. Meninos beijando meninos e meninas beijando meninas. Aquelas duas garotas fedidas do metrô - em especial a loura de body, meia arrastão, coturno e tatuagem de dragão nas costas.
Eu vi aquelas duas mais três vezes, em diferentes estações. Nem todo mundo repara nelas, mas os poucos homens fazem comentários nojentos, do tipo que gostosas. Elas não ouviram. Estavam fechadas em seu mundo fétido, num canto do vagão, rindo alto, conversando alto e ouvindo funk no celular de uma delas em volume alto. Eu adoro funk, porém tenho bom senso o suficiente para não ouvir minhas músicas num volume que incomode outras pessoas.
Enquanto desço pela rua Caiowaá em direção ao estúdio e penso sobre o que vem acontecendo, sobre tantas descovertas que fiz e venho fazendo na cidade grande, me faço a seguinte pergunta: será que não estou me tornando uma policial dos hábitos das pessoas ao invés de ser só uma observadora?
É muito fácil se perder de si mesma quando estamos num ambiente diferente. Tenho medo de acabar me tornando como uma daquelas mulheres católicas ou crentes do meu bairro, que falam sobre Deus mas tudo o que fazem é apontar os erros das pessoas. Se Deus existisse, se elas realmente acreditassem que ele existe, cuidariam do próprio cu ao invés de se preocuparem com os outros. Não quero me tornar alguém assim.
Quando chego ao estúdio e passo em frente ao bookafe, observo numa das mesas Jordana tomando num copo transparente uma bebida que parece ser vitamina de cenoura com laranja e acerola. Ela havia me dito que é delicioso, mas ainda não tenho curiosidade de provar, e nem dinheiro pra isso.
Junto dela estão Angel e Alice. Os três estão com seus uniformes de balé. Alice está de collant preto, com casaquinho cor de rosa, meia calça cor de rosa, polainas pretas e sapatilhas de ponta. Jordana usa collant verde esmeralda, com sainha transparente da mesma cor. Tirando a Alice, que tem bumbum grande, nenhuma das bailarinas adultas gosta de expôr essa parte de seus corpos.
Minha colega faz sinal pra que eu me aproxime e penso se devo ou não chegar perto dos três. Afinal, são adultos. Eles falam sobre apresentações em teatros com a companhia, problemas de adulto, como aluguel, compras do mês. E eu nem dancei meu primeiro festival pela Promoarte.
O impulso de tietar acaba falando mais alto e ando a passos lentos até a mesa.
— Oi — Jordana segura minha mão —, como foi seu dia?
—Foi legal — dou de ombros. — Jogamos vôlei na aula de Educação Física. Meu time tomou uma surra — suspiro com aborrecimento ao me lembrar dessa parte.
— É chato, mas faz parte — a ruiva troca um olhar com a Alice.
— Você é uma boa jogadora? — a garota de cabeça pelada e lisa fixa em mim seus olhos cor de avelã.
— Mais ou menos. Não faço feio.
— Se o seu time não perdeu por sua causa, não tem por que se envergonhar — Alice toma um gole de sua vitamina.
Ela olha para o corredor e acompanho seu olhar. Vejo Rebeca acenando, ao que Alice responde sorridente.
— Bom — ela tira a carteira de sua mochila, pendurada no encosto da cadeira —, preciso ir para a sala de aula. Minha aluna chegou.
A informação me pega de surpresa.
— Você dá aula para a Rebeca?
— Sim. Ela me pede aulas particulares porque quer ser primeira bailarina da Promoarte. Nós, judias, temos que nos ajudar, né? Bye, bye.
Fico de boca ligeiramente entreaberta. Alice paga a atendente e anda em direção à minha colega, que a cumprimenta com um beijo no rosto. As duas saem, mas Rebeca me encara como se estivesse se sentindo a bailarina por ter como professora uma dançarina da companhia principal.
— Se a Alice dá aulas particulares, é porque ela boa, não é? — indago com curiosidade a Jordana.
— Pode acreditar. Se você quiser aprender a dançar contemporâneo, tem que pagar por uma aula dela. Além de bailarina e tatuadora, é uma excelente mestra de dança.
Fico em silêncio.
— Não quer tomar alguma coisa? — a ruiva faz sinal para que eu me sente no lugar há pouco ocupado pela bailarina careca. — Um suco, um café...
— O capuccino daqui é divino — Angel passa o indicador e o polegar unido diante dos lábios.
— Não, obrigada — recuso não por não querer, mas porque estou sem dinheiro e não quero que me paguem nada. — Vou para o quarto botar a meia calça e o collant e requentar a comida na cozinha antes da aula começar.
— Comprei steak de frango hoje de manhã. E também tem hambúrguer no congelador.
Agradeço ao aviso de Jordana e me despeço dos dois, indo em direção ao nosso quarto. Enquanto passo em frente à secretaria, escuto Clara falando ao telefone sobre festivais em Atibaia e Jundiaí, e pontuando sobre compromissos e usando termos que não conheço.
Entro no quarto, fechando a porta atrás de mim, e fico pelada quando entro no banheiro. A água que cai sobre meu corpo leva para o ralo toda a minha sujeira, suor e cansaço, me devolvendo a sensação de frescor. Me enxugo calmamente, visto o collant por cima da meia calça. Como faz frio, visto casaquinho.
Requento a comida no microondas com um sorriso de satisfação. Eu não tinha esse luxo em casa. Quando minha mãe não estava em casa quando eu voltava do colégio, tinha que requentar meu almoço no fogão mesmo. Esse aparelho tão simples era um luxo para a nossa família, tudo pra nós era calculado, contado. Até roupa só comprávamos roupa em época de liquidação.
Por muitas vezes me senti mal por meus pais usarem seus poucos recursos pra pagarem meus gastos com o balé - não com a mensalidade, já que sempre fui bolsista, mas com figurinos, collants, sapatilhas e taxas de inscrição -, já que para uma família pobre como a nossa há coisas que entram na categoria luxo.
Nunca fui uma garota mimada, a típica adolescente bostinha que quer tudo dos pais, que não sabe quanto custa um pacote de arroz. Nunca pedi um tênis de marca, nem um jeans de quatrocentos reais. Mas dançar sempre foi e é tudo pra mim. Eu quero que minha vida chegue a um bom termo, e eu só posso conseguir isso dançando, porque é a única coisa que eu sei fazer. Por isso não me importo de continuar fazendo sacrifícios. Meu sonho não tem preço.
Trituro uma laranja com requintes de crueldade no espremedor, despejo o suco num copo grande, e me sentando à pequena mesa, como sossegadamente enquanto tento distrair minha cabeça para que só meu coração inquieto entre na sala de aula.
Como não gosto de dar lado para que falem de mim, lavo toda a louça. Então me olho no espelho e faço o coque, calçando as sapatilhas a seguir.
Alice ainda está dando aula para Rebeca quando chego, mas minha colega já está no centro, dançando uma coda. A bailarina careca faz com a mão sinal para que eu entre, sem deixar de olhar para sua aluna, que começa a girar tour piqués em volta da sala. Ao passar por mim, os olhos da garota por uma fração de segundo perdem o foco do ponto fixo imaginário que a gente sempre faz quando giramos; ela se distrai, não marca a cabeça e se desequilibra.
Fico levemente boquiaberta. Ainda bem que ela não cai, mas o olhar raivoso que prega em mim me deixa aterrada.
— Cuidado, Beca. Você tá bem? — Alice se aproxima.
Rebeca acena que sim com a cabeça.
Alice olha para o relógio de parede, suspira e andando até o suporte de som, o desliga.
— Por hoje é só — sentencia com voz tranquila. — Falta meia hora para a aula de vocês e é bom que se aqueçam um pouco.
— Sexta-feira posso fazer outra aula? — Rebeca indaga.
A garota de cabeça pelada pensa um pouco.
— Eu tenho que tatuar um cliente, mas acho que dá sim — sorri.
Ao se aproximar da aluna, as duas se despedem e Alice sai acenando para nós duas.
— Boa aula, meninas.
Rebeca sorri. Quando Alice transpõe o umbral da porta, sua cara de aparente simpatia se desmancha e ela franze o cenho, me fulminando com dois olhos cheios de ódio.
— Você fez de propósito, garota! — me acusa.
Arregalo os olhos.
— Posso saber o que eu fiz de propósito?
— Posso saber o que eu fiz de propósito? — o tom de deboche de Rebeca é tão irritante que tenho vontade de dar um soco em sua boca e deixá-la com alguns dentes a menos. Odeio quando me respondem com deboche. — Você me atrapalhou. Tirou minha concentração, quase me fez cair.
— O teu cu! Você se desequilibrou sozinha. Todo mundo fica olhando quando a gente ensaia, e não se desequilibra só por causa disso.
— Larga a mão de ser sonsa, Sofia. Eu sei que você quer tomar meu lugar, que você quer tirar proveito da Tânia querer que bailarinas negras sejam suas estrelas, mas eu sou a melhor aqui e tenho dinheiro pra pagar por aulas particulares.
Rio com sarcasmo enquanto ponho as mãos na cintura e meu gesto deixa a garota ainda mais zangada.
— Você é muito mimada, Rebeca. Não perco meu tempo com você.
E virando as costas para Rebeca Horowitz, caminho com suavidade até o canto oposto onde ela está e me deito no chão de bruços, ficando em posição de sapo. Ainda escuto um grunhido sair da boca da garota enjoada, e olhando-a de esguelha, vejo-a fazer espacate frontal.
Fecho os olhos, descanso a cabeça entre os braços e sorrio em afronta.
4,1k de palavras
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