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Capítulo 1

      Uma semana. Duas palavras apenas, mas que tem todo um significado.

      Daqui a sete dias, vou disputar o título de solista regional. Se eu vencer, por pelo menos mais um ano não vou ter que me preocupar com taxas de inscrição nas competições, além de ganhar, por mês, um par de sapatilhas de ponta.

      Estou muito motivada pra essa disputa, que esse ano vai acontecer na cidade de São José dos Campos, e segundo a Fernanda, o nível de excelência das bailarinas será bom. Só de pensar que nomes como Maria Luíza Pomini vão participar como convidadas e abrilhantar a competição, tudo o que eu posso querer é dar o máximo e fazer bonito. Quero conquistar não só o título, mas também os jurados.

      Sei que só depende de mim. Eu ensaiei muito e estou num bom momento da minha carreira. Sou uma das principais bailarinas da nossa escola, e se não tenho a expressão doce e triste da Eva, tento compensar dando tudo de mim. Sempre levo meu corpo ao limite.

      Não entendo como meninas como Eva e Roberta estão tão nervosas, afinal, vai ser só mais um festival de dança em que vamos fazer o que sempre fazemos. A única diferença é que, ao invés de usarmos figurinos vistosos com pedrarias, só vamos usar collant, meia calça e sapatilhas. E nada mais. Nem calcinhas, pra não marcar o collant.

      Na verdade, só estou com um pouco de ansiedade, que é bem diferente de nervosismo. Isso eu deixo pra sentir faltando meia hora pra ser anunciada. É inevitável. Ele vem de qualquer jeito, por mais que você reze, faça meditação ou cumpra um ritual.

      Mas não é ruim. Pelo menos mostra que você é humana e tem limites pra transcender, e eu sei que tenho os meus. Minha professora sempre diz que garota de sangue frio não serve pra ser bailarina, porque ela não se entrega, não se desnuda, não brilha.

      Fernanda também diz que devemos superar nossos limites aos poucos, subir degrau por degrau e nunca pular uma etapa importante do nosso aprendizado, porque ainda somos jovens e temos tempo.

      Nesse momento, nada disso importa pra mim. Só o que importa é terminar minha corrida (que faço todas as manhãs) e chegar ao Portal. Fazer esse exercício tem me ajudado bastante a fazer com que minha cabeça não entre em parafuso, e também me ajuda a lembrar que eu tenho uma vida fora da escola de balé. Uma vida diferente do glamour dos palcos, é verdade, mas que eu também amo.

      Meu nome é Sofia Christina da Silva. Sou uma garota negra, de 1,65 de altura, e estou usando uma blusa de moletom preta, calça legging branca, polainas pretas e um par de tênis Nike de corrida. Meu cabelo é crespo e volumoso, e está amarrado num coque frouxo, bem diferente do coque caprichado que faço pra fazer balé.

      Por causa da cor da minha pele, meu apelido é Bombom, e eu adoro. Gosto bem mais dele do que meu nome de batismo.

      Moro na linda e charmosa cidade de Campos do Jordão, conhecida pelo frio de montanha e que no inverno, atrai turistas de todo o Estado de São Paulo. Alguns desses turistas estão descendo de vans e fazendo poses em frente ao famoso Portal para fotos de recordação. À medida que me aproximo, vejo que as mulheres estão usando palas, mantas ou gorros para se protegerem do frio absurdo. Dois ou três homens estão com cobertores sobre os corpos.

      Caralho, que frio!, um deles grita. Não é exagero. O termômetro marca -1 grau e uma grossa camada de geada cobre tudo. Como todos sabem, nossa cidade vive do turismo de inverno, não há indústrias aqui, e é no mês de julho que você vê brotar na Vila Capivari gente bonita, de todas as cores, atrás de comida alemã, cerveja artesanal, fondue e pinhão cozido. 

      E como não ficar deslumbrado com os plátanos, suas folhas formando lindos tapetes dourados nas calçadas?

      Parece que estão adorando o frio, mesmo com seus dentes batendo e as mãos tremendo. Mesmo pra nós, jordanenses, o frio da madrugada corta, e seus pés congelam fácil se não calçar um par de meias bem grossas. Os meus só estão quentes por causa da corrida da Vila Abernéssia até aqui, e mesmo assim, logo vou ter que me levantar e me movimentar um pouco pra que meu corpo não esfrie.

      Se bem que acho que vale a pena ficar sentada um pouco, olhando pra esses visitantes. Os garotos são bem gatos. Um deles é alto, negro, de um tom de pele um pouco mais claro que o meu e parece ser bem forte por causa das várias camadas de agasalho. Correspondo com um sorriso ao aceno que ele me dá, só pro meu encanto por ele desaparecer instantaneamente assim que o vejo tirar um cigarro e acendê-lo. Não suporto fumaça de cigarro, não suporto a idéia de beijar a boca de um garoto que fuma, mesmo que ele pareça um Will Smith.

      Por sorte, estou imune ao desejo de flertar com alguém.

      Uma das coisas que eu aprendi é que balé e namoro são duas combinações improváveis. De manhã tenho colégio. À tarde tenho aulas de dança e também ensaios que demoram a acabar, e como nos sábados de manhã dou aulas de baby class e depois tenho aula, não sobra tempo pra eu fazer muita coisa.

       Mas tudo bem. Sou feliz assim, sem compromisso, sem alguém pra me cobrar. Se bem que às vezes queria saber como é ter uma vida normal.

      Às vezes. 

      Dançar é mais importante do que tudo pra mim. É pra isso que nasci e não aceito que nada, nem ninguém, se ponha entre o balé e eu.

      Decantada com o gato afro que se revelou uma chaminé, que expele nicotina em forma de fumaça, me levanto e sinto uma brisa gelada tocar meu rosto. Não sei porque à medida que clareia, a sensação térmica é de mais frio, e tocando a folha de um arbusto, sinto pelinhos de gelo. Na hora que o sol aparecer, tudo vai feder a queimado. 

      Me afasto da multidão de turistas e estico minha perna direita, segurando-a com a mão e tocando-a na orelha. Faço o mesmo com a perna esquerda.

      Então, ao me virar pra fazer o percurso de volta, uma mulher se aproxima de mim. Ela é bem jovem e bonita, tem cabelos castanhos cobertos por um gorro e usa uma jaqueta preta, cachecol e botas que passam da altura dos joelhos. Segurando uma máquina fotográfica Canon, destas que custam um valor absurdo, abre um sorriso.

      — Oi — ela diz —, posso te pedir um favor?

      Antes que ela diga qual o favor, já sei que quer uma foto de recordação. Tirei muitas fotos de casais, de grupos de amigos. Meio que estou acostumada a ser fotógrafa de turistas, e eu gosto. Sinto que fico fazendo parte das vidas deles, mesmo que se esqueçam de mim assim que sobem nos carros de passeios.

      Revezo meu olhar entre ela e a câmera, sorrindo embaraçada. Uma coisa é tirar foto com celular, outra com uma câmera caríssima.

      — Ah… Nunca mexi numa máquina dessas — respondo com honestidade.

      — Eu já fiz os ajustes de configuração — a explicação da mulher me tranquiliza. — É só apertar esse disparador — ela aponta para um botão azul.

      Antes que eu responda sim ou não, a visitante coloca a câmera nas minhas mãos como quem não aceita uma negativa. Olho através do visor, indecisa.

      — Ok, então — respondo.

      A moça chama um homem alto, que vem soprando as mãos enluvadas e expelindo fumaça pela boca.

      — Amor, vamos tirar aqui? — ela aponta para o Portal, abaixo da inscrição Campos do Jordão. — Ela vai tirar pra gente — e se voltando pra mim: — Como você se chama, meu anjo?

      — Sofia — sorrio, ao mesmo tempo que olho a Canon por vários ângulos.

      — Sofia. Que nome lindo. Então, Sofia, aqui está bom?

      O rapaz passa o braço em volta do pescoço da mulher, que imagino ser sua esposa ou noiva, e os dois dão aquele sorriso falso e irritantemente lindo que todo mundo dá quando é clicado.

      — Vocês podem dar só um passo pra esquerda? — oriento. — Tem um grupo atrás de vocês, e a foto não vai ficar legal. E ali a iluminação é um pouco melhor.

      — Claro.

      Faço sinal positivo, aperto o disparador. 

      A foto fica com uma boa qualidade, muito melhor do que o que qualquer celular ultra moderno tira. Parece que já tem todos os recursos de Photoshop embarcados.

      — Obrigada — a mulher agradece quando lhe devolvo a máquina.

      — De nada.

      — Sofia, eu vi você estirando as pernas. Por acaso você é bailarina?

      — Sou sim — afirmo sorrindo com orgulho. — Faço balé num estúdio daqui. 

      — Uau, que bacana. Parabéns. Continue assim. Você tem muita flexibilidade e um excelente en dehors. 

      Oi? Essa mulher sabe o que é en dehors?

      — Ah! Desculpa… Você me disse seu nome e eu nem me apresentei. Eu me chamo Letícia, e este é meu marido, Ricardo.

      Digo prazer num tom neutro de voz. 

      — Somos de São Paulo — enfim ouço o homem falar, e a voz dele é forte. — Estamos comemorando nosso décimo aniversário de casamento. Foi aqui que nos conhecemos há quinze anos e aqui que tivemos nossa lua de mel.

      — Essa cidade é muito especial para nós, Sofia. Eu amo vir para cá. 

      — Que bom. Campos do Jordão é linda mesmo, eu adoro viver aqui. 

      Isso porque não faço ideia de como é viver noutra cidade. Nunca sai da Serra da Mantiqueira senão para visitar parentes em Santo Antônio do Pinhal, São Bento do Sapucaí e Paraisopólis, que fica logo ali, em Minas Gerais. E, também, claro, para participar de festivais de dança. Todas viagens do tipo bate e volta.

      Continuo intrigada com as observações que a Letícia fez sobre meu detiré. Ela disse en dehor. Gente leiga não sabe que isso quer dizer pra fora.

      — Bom, mais uma vez, obrigada, Sofia — Letícia prende a correia da câmera num dos braços enquanto o outro se engancha no do Ricardo.

      — Tenham um ótimo passeio — desejo ao casal.

      Os dois acenam, andando em direção à cabine no meio do Portal, que divide as duas mãos de direção da rodovia, e entram num volvo prata depois de Letícia pegar um guia com os pontos turísticos da Serra da Mantiqueira.

      Não é trágico? Eu que, sou jordanense, conheço menos da minha cidade do que esse pessoal de fora.

      Não há mais nenhuma estrela no céu quando estou de volta à Vila Abernéssia, mas ainda continua escuro, já que no inverno as noites são longas. Vejo dois moradores de rua deitados em frente a uma drogaria sobre papelões, cobertos com mantas e trapos, e não consigo deixar de sentir um arrocho no coração pela situação triste dos dois. Estão dormindo, mas quanto frio passaram antes de pegar no sono? O mais triste é que dizem que um deles era um comerciante da Vila Jaguaribe e que teve a vida ferrada pelas drogas, e abandonado pela mulher e pelos filhos que não suportaram mais levar porrada, passou a viver como indigente.

      Também há aqueles que não suportam a cobrança no trabalho e dentro de casa, e desistem de tudo. Estes simplesmente rasgam suas histórias de vida pra se tornarem párias e viverem no abandono.

      Há um monte de gente assim nesta cidade. Por mais que o frio esteja insuportável, mesmo quando tem carros recolhendo essas pessoas das ruas pra levá-los a abrigos, boa parte delas quer ficar ao relento.

      Por mais que digam que a gente se acostuma com tudo, não consigo acreditar. Ninguém nasce pra sofrer. Ninguém nasce pra viver sozinho e na miséria, e não acredito nessa babaquice de karma.

      Em momentos assim que agradeço por ter uma família incrível. Somos muito pobres, moramos numa casa de aluguel e meu pai sustenta minha família com o ordenado que recebe na choperia em que trabalha, na Vila Capivari. Minha mãe, de vez em quando, faz bordados e costura pra ajudar nas despesas e pra pagar meus figurinos de balé. Meu irmão está desempregado.

      Muita coisa falta pra gente, menos o mais importante: amor. Somos uma família unida, sem máscaras, todo mundo se respeita. Só meu irmão e eu que destoamos às vezes. Mas qual família é perfeita?

      Eles fizeram e continuam fazendo tudo pra que um dia eu entre numa companhia profissional e realize meu sonho de ser primeira bailarina. Não é só por mim que eu danço. É também por eles.

      Passo com cuidado ao lado do morador de rua, pra não chutar sua garrafa de aguardente, e entro na padaria, olhando-o com compaixão. Sorrio para os clientes que comem pão na chapa e tomam café com leite. O cheiro de pão quentinho saindo do forno é delicioso, dá vontade de comer um.

      Pena que meu dinheiro está contado.

      — Bom dia, Bombom — o dono da padaria me oferece um sorriso.

      — Bom dia, seu Germano — me sento numa das cadeiras altas junto ao balcão. É o mesmo balcão onde apoio os cotovelos desde pequena, quando meu pai me trazia e eu pedia pizza para o senhor de óculos e barba rala, que me olha com ternura.

      — Quatro, como sempre?

      — Sim. Os mais queimadinhos, por favor.

      Seu Germano me conhece desde que eu era uma garotinha e ajudou minha família muitas vezes, quando meu pai estava desempregado. Nunca vamos poder pagar a generosidade dele em ter nos dado pães e frios sem cobrar nada, num dos momentos difíceis da minha família. Ainda bem que tem sempre alguém que se importa com as dificuldades das pessoas e as ajuda sem pedir nada em troca.

      Por esses gestos de abnegação que acredito que mesmo esse mundo sendo uma bosta, ainda tem esperança.

      Seu Germano sonha em me ver dançando numa companhia famosa, levando o nome da nossa cidade pra fora. Também foi dele que ganhei de presente meu primeiro patrocínio, uma viagem pra Marília, onde nossa escola disputou um festival super disputado e onde  ganhei medalha de primeiro lugar com variação de Paysant.

      Como meus grandes fãs, seu Germano e dona Cidinha, sua esposa, sempre assistem as apresentações da minha escola. Faz tempo que não a vejo, desde que a família recebeu o choque da notícia que ninguém espera receber, de que a boa velhinha tem câncer. Ela faz tratamento intensivo, evitando tomar friagem.

      — Está chegando o dia, Bombom — o padeiro se refere ao dia da disputa de títulos.

      — Nem me fale, seu Germano — passo os dedos por entre meus fios de cabelo crespos. 

      — Está ansiosa?

      — Um pouco.

      — Você vai vencer.

      — Tomara. As bailarinas são muito boas, eu vou ter que dançar muito pra ganhar os jurados. Sem falar que não posso errar nada.

      — Fica em paz, vai dar tudo certo.

      Penso que seu Germano vai dar bola fora, dizendo que se Deus quiser, vai dar merda. Merda é o que a gente deseja na coxia a um colega que vai se apresentar, é tipo um boa sorte, porém deselegante. Felizmente, em respeito aos clientes, ele segura a língua.

      Recebo o saco com pães, me dirijo ao caixa. Dá vontade de comer um agora, por estar quentinho e ter um cheiro gostoso. 

      — Oi — sorrio pra Júlia, enquanto tiro uma nota de dez reais do bolso canguru da minha blusa de moletom.

      — Seu Germano, manda um abraço pra dona Cidinha e diz que eu gosto muito dela — deixo uma última recomendação antes de sair.

      — Pode deixar. Deus a abençoe.

      — Tchau.

      — Tchau.

      Saindo da padaria, quase sendo empurrada para o lado por um grupo de jovens, que eu tenho certeza que vi lá no Portal. Pelo visto, a educação tirou férias junto com eles. 

      — Olha por onde anda, cara — dou um esporro num garoto louro que entra abraçado com uma moça de olhos puxados. Foi ele quem chocou o corpo contra o meu.

      — Foi mal, garota — o sarcasmo dele faz a temperatura do meu sangue subir, meus instintos me empurram pra uma confusão que parece inevitável.

      O idiota é bem gato, tem olhos azuis e o canto esquerdo da boca ligeiramente torto. Não me lembro de tê-lo visto lá atrás. Mesmo assim, o rosto dele não me é estranho. Tenho certeza que o já o vi antes.

      — Vai ficar me olhando? — ele debocha. — Tá me achando bonito?

      Meus olhos se estreitam e o que mais queria era ter um dom paranormal igual ao do Darth Vader, para estrangular o cuzão diante de mim.

      — Vá se ferrar — respondo.

      Eu me irrito fácil com idiotas. Não suporto gente que se faz de sonsa e que quer tirar com a minha cara, e esse sujeito representa tudo o que eu detesto numa pessoa. É arrogante, debochado e tem um sorrisinho sarcástico. Infelizmente conheço muita gente assim. Eva é uma delas.

      Desta vez não tomo muito cuidado ao passar pelo morador de rua que ronca na calçada, e sem querer, chuto pra longe sua garrafa de aguardente. Ela se quebra ao se chocar com um poste.

      — Que bosta! — solto um resmungo.

      O indigente não acorda com o barulho, pra minha sorte. Os olhares das poucas pessoas que andam na calçada se cravam em mim, em reprovação ao meu ato, esperando que eu me retrate. Mas se pensam que vou comprar outra garrafa, estão muito enganadas; primeiro, porque álcool faz mal à saúde. Segundo, porque não tenho dinheiro.

      Só não posso deixar esses pedaços de vidro no chão, porque alguém pode passar descalço e se cortar, e não quero que ninguém se machuque.

      Fico de cócoras, junto os cacos numa das mãos e ponho dentro de uma sacola plástica que encontro, jogando-a a seguir num cesto para lixo de vidro que tem ali perto. Pronto. Conserto em parte minha cagada.

      A criatura começa a resmungar, voltando aos poucos da terra dos sonhos. É a deixa pra eu sair rapidinho antes que ele abra os olhos e dê por falta de seu vício.

      Sinto o inconfundível e delicioso cheiro de café que a minha mãe está preparando assim que piso no primeiro dos três degraus da nossa casa. Ela nunca me vê saindo pra correr ou caminhar de manhã. Já espero tomar um belo puxão de orelha por sair na friagem, mas nem ligo. Tô acostumada com os cuidados dela.

      Nunca crescemos para nossos pais. Não importa que tenhamos quinze ou dezoito anos (meu irmão tem essa idade), para eles ainda somos crianças. Se bem que o Cadu tem um comportamento bem infantil às vezes.

      O babaca se adianta, abraçando nossa mãe antes de mim, e me olha afrontosamente quando cruzo os braços.

      — Privilégio de ser o filho mais velho, irmãzinha — ele beija a bochecha da minha mãe e dá um bom dia tão adocicado que já sinto medo de pegar diabetes.

      — Privilégio de ser o bebezão da mamãe, você quer dizer — retruco.

      — Tudo isso é ciúme, Bombom?

      — Tô com preguiça de você, sabia?

      — Parem com isso vocês dois — minha mãe solta um dos braços do meu irmão e me chama pra que eu participe do momento de carinho. — Logo cedo, e vocês dois brigando. 

      — Ele que provoca — me defendo.

      — E ela cai na pilha — que vontade de dar um soco no Cadu.

      — Chega, Carlos Eduardo e Sofia Christina.

      Quando minha mãe diz nossos nomes de batismo, ainda que sem o sobrenome, é porque fodeu mesmo.

      — Vem cá, Bombom — o rosto dela recupera a expressão carinhosa, e então dou nela meu abraço mais apertado. Ela me dá um beijo na testa e também na do meu irmão.

      — Querem ver a mamãe feliz? — dona Marina diz.

      — Sempre — Cadu e eu retrucamos ao mesmo tempo.

      — Peçam desculpas um ao outro. E parem de se estranhar.

      Andar pelada à noite na rua sob uma temperatura de – 1 grau parece mais fácil do que dar um abraço num cara tão chato quanto Carlos Eduardo da Silva. Não bastasse ele me chamar de baixinha e disputar comigo a atenção da mamãe, a gente tem que dividir o quarto. Ele está sempre acordado quando chego tarde do balé e demora a dormir, porque fica assistindo vídeos pornô no celular, e a luz do visor me incomoda bastante.

      Em comum só temos o gosto por funk, o amor pelo Corinthians e os traços físicos. Fico puta quando dizem que nós dois somos parecidos fisicamente, principalmente porque é verdade. Nós dois temos nariz levemente achatado, boca carnuda, olhos negros, e a pele cor bombom. Herdamos essas características dos nossos pais, e mesmo quem não nos conhece, ao nos ver juntos, logo percebe que saímos do mesmo ventre.

      Cadu e eu trocamos um olhar perplexo, aflitos com o que temos de fazer.

      Não quero ser a primeira a ceder.

      Tudo, menos isso.

      — Estou esperando — mamãe põe as mãos na cintura. 

      Abaixo os olhos torcendo para que o chão se fenda e eu possa me esconder pra sempre nas suas profundezas, só pra não ter de me submeter a essa humilhação.

      Mas o impasse logo se resolve.

      Levanto assustada minha cabeça quando sinto os braços fortes do meu irmão me envolverem e me apertarem. Os lábios dele estalam ao beijar minha testa, fico desconcertada com esse gesto de carinho inesperado.

      — Desculpa, Bombonzinha.

      Bombonzinha era o apelido de que ele me chamava quando eu era pequena. Não é sempre que ele me chama disso, mas quando o faz, me lembro de uma época gostosa de que sinto falta. 

      E me faz lembrar de que apesar dele ser grosso, irritante e babaca, e eu ser esquentada, metida e arrogante, temos muito mais que um laço de sangue. Temos amor recíproco.

      Porque a verdade é que eu amo o meu irmão. E sinto ciúmes quando minhas colegas de balé dizem, na minha frente, que ele é gato e tem uma bunda linda.

      — Tá tudo bem — sorrio sem jeito. — Desculpa, irmãozinho.

      — Ok.

      — Ótimo! — dona Marina joga as mãos para o alto. — Agora vamos nos sentar e tomar o café da manhã em paz.

      Assim que minha mãe põe a garrafa térmica na mesa, papai aparece na cozinha e a abraça por trás.

      — Bom dia, minha família linda.

      — Bom dia, pai — meu irmão e eu respondemos ao mesmo tempo, passando margarina em nossos pães.

      — Amor, você voltou tarde ontem, podia dormir mais um pouco — mamãe dá um sorriso adorável respondendo ao carinho de papai com um selinho.

      — Faz tempo que estou acordado. E depois, não resisti ao cheiro desse café, por isso levantei.

      Meus pais são o que as histórias bregas e clichês definem como feitos um pro outro. Nunca, nesses meus quinze anos de vida, os vi brigando. Nunca os vi ficarem sem se falar. 

      O que sempre vou lembrar deles, além do amor e do nome digno que deram para dois filhos, é seu modus vivendi. Sua luta, fé, resiliência diante dos problemas e a cabeça sempre erguida nas adversidades.

      Tudo o que eu sou devo a eles. Não importa o quanto tente, nunca conseguirei pagar todo o sacrifício que eles fizeram e continuam fazendo, pra que eu possa dançar e realizar um dia meu sonho: ser bailarina profissional.

      — Você foi ao Portal, filha? — meu pai se serve de uma xícara de café, misturando com o leite que minha mãe pega de graça na secretaria da igreja.

      — Fui, sim, pai. Tinha muita gente lá, contei umas dez vans, mais ou menos.

      — Hum… Isso é bom. Mais gente pra comer no restaurante, mais gorjetas.

      — É, e mais carros estacionados em frente as garagens das casas, mais quase atropelamentos nas ruas, já que em Campos do Jordão não tem semáforos, mais garrafas quebradas e jogadas na Djalma Forjaz¹ — concordo em gênero, número e grau com Cadu. Então me lembro do cara louro que quase me derrubou na padaria de seu Germano e franzo o cenho.

      — Eles se acham donos da cidade — reforço.

      — Bom, faz parte — papai dá de ombros. — Normal pra quem tem dinheiro.

      — Mas não tá certo.

      — Se eles vieram atrás de frio, este ano acertaram em cheio — mamãe põe manteiga numa das metades do seu pão. — No jornal deu que está 0 grau.

      — O termômetro do Portal marcava -1 grau — corrijo.

      — Acho que deve ser sensação térmica. Não acho que esteja tão frio assim — Cadu discorda, como sempre.

      — Ah, é? Então vai lá fora e veja a camada de gelo em cima dos carros. Aí você me diz se é só sensação térmica.

      — Eu não — ele dá de ombros. — Vou voltar pra cama daqui a pouco.

      — Você não vai procurar emprego, filho? — papai o olha em perplexidade.

      Cadu fecha os olhos, solta o ar pelos lábios sem esconder a irritação. Outro dos defeitos dele é ser acomodado, apesar de ser honesto e trabalhador. Ele tem que parar de se contentar em fazer bicos e procurar um trabalho formal.

      — Tá, pai, eu vou — Cadu responde sem ânimo algum.

      Cadu não tem sido muita sorte ultimamente. Espero que não desanime e consiga alguma coisa hoje, porque ele também tem sonhos.

      Nossa conversa segue outros rumos, a seguir cada qual sai pra se virar. É ótimo que hoje seja sábado, estou livre do colégio.

      Como moro perto do estúdio de balé, só levo cinco minutos para chegar.

      Meu primeiro compromisso do dia é dar aula para minhas alunas de baby class. Os carros das mães das pequenas estão estacionados e outros chegam.

      Cumprimento a Marta assim que entro, como sempre a tv está ligada e sintonizada na tv Vanguarda, que mostra a Vila Capivari lotada de turistas andando pela Djalma Forjaz. A imagem hoje está ruim, porém dá pra ver bem a cara de sofrimento daquelas pessoas enfiadas em grossos casacos. Dá até vontade de subir até lá pra sentir essa vibe.

      Minhas alunas se despedem de mim abraçando minha cintura, e elas quase me fazem ter uma overdose de fofura ao dizer que vão sentir saudade de mim.

      Saem as pequenas, entram as bailarinas do grade 6. Eva, a linda ruiva de olhos verdes e 1,75 de pura arrogância, passa por mim sem me olhar. Ela está usando collant preto de manga comprida, meias cor de rosa e sapatilhas Toshie e parece a dona do estúdio. Se ela não fosse tão bosta como pessoa, já teria ganho faz tempo um título de solista. Ainda bem que o palco mostra o verdadeiro caráter das pessoas e não dá chance pra quem só quer jogar as pessoas pra baixo.

      Não me engano achando que vou ter vida fácil numa outra escola, infelizmente existe muita gente má que quer destruir sua auto estima gratuitamente. Pouco importa pra elas de onde você vem ou sua história de vida, só querem que você se convença que não merece estar ali, que você não nasceu pra ser bailarina porque é negra e pobre. 

      Eu calo a boca da Eva sempre sendo melhor que ela nas competições que disputamos, e embora ela nunca vá dizer isso, está conformada.

      Entro na sala por último, dou um beijo na bochecha de dona Fernanda e vou pro meu lugar na barra, entre a Giovanna e a Samantha. Tenho permissão pra só usar collant sem meia calça, pra valorizar a cor da minha pele e combinar com minhas sapatilhas de ponta mais escuras. Só uso um par de polainas.

      — Pelo menos nos sábados você não é a primeira a chegar — Gigi observa sorrindo.

      — Cheguei, sim — ponho as mãos na barra e estico uma das pernas pra trás enquanto a outra faz apoio na frente, flexionada. — Eu tava dando aula mais cedo pras pequenas.

      Gigi faz dois demi pliés seguidos de um grand plié, com um degagé.

      — Você tem paciência com crianças — o sorriso dela é tão lindo que parece de uma modelo.

      — Eu gosto. Parece que eu me sinto como se tivesse cinco anos de novo.

      Depois de esticar a outra perna, faço um espacate frontal perfeito no chão e mergulho meu tronco sobre a perna esticada. 

      — Mesmo assim, tem que ter dom pra coisa, né? Ouço as mães delas falarem super bem de você. Vai ser uma ótima professora um dia. — minha amiga developa a perna direita pro lado. A perna dela treme um pouco no ar antes de ter estabilidade.

      — Ah, não. Sem chance. Só quero dançar mesmo.

      — Frente à barra! — a voz de dona Fernanda refulge. A acústica da sala faz a voz dela parecer mais alta.

      Me levanto rapidamente, meus braços assumem a posição de bra bas – sempre com os polegares escondidos, os braços em forma circular.

      A turma do Balé Avançado estuda em tempo integral. São bailarinos entre dezoito e vinte e sete anos, com muita técnica e garra (e muito nariz empinado). Luana tem vinte e cinco anos e é a primeira bailarina do estúdio, a que dança os papéis principais, e nossa referência. Ah, e ela é linda. Como sou adolescente e estou no Ensino Médio, faço balé depois do colégio. Mas não vejo a hora de poder dançar o dia inteiro.

      Tem dias que eu me sinto a fodona da classe. Mesmo não tendo pernas tão compridas quanto as da vaca da Eva, meus saltos de grand jetés são os mais altos. Mas tem dias em que meu desempenho é discreto, por causa das dores musculares, das minhas oscilações de humor ou estresse. Não dá pra ser boa o tempo todo.

      Terminamos com uma reverance para nossa professora e lhe damos uma salva de palmas, nos cumprimentando a seguir com abraços e tapas nos bumbuns.

      — Boa aula — digo saindo com a Giovanna e a Mirela.

      Quem me vê suada e fedida não imagina que lá fora está frio. De repente, enquanto saio em direção ao vestiário, vejo na tv uma reportagem sobre a Vila Capivari.

      Parece coincidência, mas a moça que pediu pra eu fotografá-la com o marido está lá, conversando alegremente com uma mulher que eu sei que é a diretora artística da Promoarte SP.

      Perto delas está o babaca que tive o desprazer de ver na padaria de seu Germano. Ele sorri pra câmera enquanto segura a namorada pela cintura.

     Muito gato. Capaz, sim, de fazer a calcinha de uma garota molhar.

      Mas não deixa de ser um idiota.

5k de palavras
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Djalma Forjaz¹: nome de uma das ruas mais movimentadas de Campos do Jordão.

Vila Abernéssia, Vila Capivari e Vila Jaguaribe são nomes de bairros.

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