XII
"O homem e a mulher viviam nus e não se envergonhavam (Gênesis 2:25)"
Auto Cuture da Rosalia toca alto na cozinha. Não conhecia a cantora, mas recentemente fiquei fã das músicas e da voz, meio mística. O apartamento moderno, bem menor que nossa casa anterior, possui outros onze convidados, incluindo amigos do trabalho. A maioria das paredes é de um tom amarelo claro, sendo algumas texturizadas de um marrom cor de terra. A exceção é a cozinha, que é branca com uma das paredes verde-água.
Os sofás da sala são todos marrom escuros. Meus armários e cadeiras são de madeira escura também, com algumas partes de um amarelo mais forte. As cores ainda lembram os móveis anteriores. Nossa cama é uma box moderna de cabeceira removível, sem pilastras coloniais ou qualquer coisa do tipo. O apartamento possui cômodos grandes, mas apenas um quarto.
Sinto falta da casa antiga, enorme, de móveis antigos, com jardim e sótão, que tanto me assustava, mas que era tão bonita. Diogo me explicou que a casa fazia parte da minha provação, sendo tanto um lugar onde estavam as coisas que eu mais gostava, quanto um lugar que me confrontava aos meus maiores temores. Ao término do prazo, ela ficaria à disposição do próximo locatário. Ela teria sido locada para nós pelo misterioso Proprietário por apenas um ano.
Ao menos Salazar acabou ficando mais calmo nesse apartamento. Dorme no sofá, quase que o dia todo. Estamos nos dando melhor, acho que transmito menos insegurança a ele hoje em dia.
É estranho pensar que já se passaram quatro meses desde que Diogo me contou ser uma espécie de entidade invocada pelos meus desejos e eu tive de escolher se queria permanecer com ele sabendo disso ou não. Até hoje é difícil acreditar na verdade. Digo continua tão... humano.
Na ocasião eu tive que decidir em tão pouco tempo, e então já tivemos de arrumar as malas e sair. Me pergunto o que teria acontecido se ainda estivéssemos na casa ao final do suposto prazo, mas como Diogo disse que isso simplesmente não seria permitido, achei por bem não desafiar Seja-Lá-Qual-Força que movia aquilo, o tal Proprietário. Ficamos em um hotel nas primeiras noites, e tivemos de recomeçar do zero. Há coisas que eu simplesmente não consegui entender, embora ainda não tenha me arrependido.
Olhos os convidados ao redor da sala, vejo Sabrina, com um vestido de estampa floral branco, de flores carmesins, conversando com a garota nova do trabalho, Rafaela. Rafaela usa um topete estiloso, cor de vinho, e cabelo raspado nas laterais.
Duas pessoas do grupo de "Cura e Salvação" que procurei haviam me mandado mensagens no Whatsapp: uma tinha sido Raquel, ainda naquela noite, me perguntado se eu não ia voltar para o carro. Só respondi alguns dias depois, pedindo desculpas e dizendo que decidi ficar com meu marido. Ela respondeu com pregações vindas do Levítico e Coríntios, mas me limitei a pedir desculpas mais uma vez pelo lance do carro, e então a bloqueei.
A outra pessoa foi Sabrina, que deve ter pedido meu número para Raquel. Ela me mandou mensagem perguntando se eu não ia voltar para o grupo. Eu disse que não, expliquei como estava numa fase de libertação, e ela acabou conversando muito comigo. Por fim ela admitiu que ela própria estava muito infeliz e sentia muitas dúvidas. Ficamos amigos de certa forma.
Eu fiquei bem surpreso com quando ela aceitou meu convite para vir a essa nossa reunião.
Levanto minha taça em direção a ela e Rafaela, que é a nova contadora júnior que vem me auxiliando com minhas funções. Recentemente fiquei um pouco mais amigo das pessoas do meu trabalho, embora ainda haja àqueles que eu deteste. Cinco pessoas do meu trabalho estão aqui, as únicas quatro garotas do trabalho e André, que está próximo a mim, e chama minha atenção nesse exato momento.
- Como sempre avoado, não é Samuel? - diz ele. Usa uma camisa polo salmão, apertada, que reconheço facilmente que ficou muito bonita em seu corpo.
- Desculpe, eu me distrai.
- É o meu sonhador avoado - diz Diogo, que conversava com ele ao meu lado, me abraçando por trás, encostando a barriga em minhas costas.
Está com uma camisa leve e branca, meio oriental com o kanji do amor bordado no peito. É parecida com a que estou usando, só que a minha é preta e esqueci de perguntar a ele o que o meu kanji significa. Comprei as duas juntas, no mesmo local, e embora tenhamos corpos diferentes, consegui achar que a minha ficou tão bonita em meu corpo alto e esguio, quanto a dele em seu corpo mais gordinho e musculoso.
- Nem ouviu o que eu dizia não é? - insiste André.
- Perdão.
- Eu dizia a você e Diogo que as mudanças que fizeram no apartamento novo desde a última vez que estive aqui ficaram muito boas. Da primeira vez que vim aqui confesso que não gostei muito do apartamento, mas com a nova pintura virou outro lugar.
Era verdade. Ele foi "conhecer" o apartamento uns dois meses atrás, mas acho que ele já imaginava o que conheceria...
O primeiro quem desconfiou havia sido o próprio Diogo: "Ele sempre dava umas passadas de olho em você, e acho que ele ficou me medindo naquele dia também", disse rindo, uma vez aleatória na qual o mencionei. Em outros tempos isso teria gerado inseguranças e culpas em mim, mas havíamos decidido partir para uma relação mais sincera e aberta entre nós. Eu admiti que achava ele atraente, embora meio tonto, e Diogo disse que não havia problema, e que ele também. Ambos admitimos que seria divertido brincar a três com ele.
A partir daí eu comecei a entender que as brincadeiras de André comigo, no escritório, sempre envolviam me cutucar, pegar, algum tipo de contato físico, alguma menção indireta a sexo. Além dele perguntar sobre Diogo com bastante frequência.
O que havia mudado é que eu não recuava mais com as brincadeiras, também cutucava ele, pegava em seu bíceps, elogiava que ele estava forte, reparava em suas reações. Ele sempre deixava. Até o dia que ele próprio praticamente se convidou pra ir conhecer nosso novo apartamento, que na época ainda estava sendo organizado.
Até hoje é muito gostosa a lembrança dele na cama conosco. Ele me chupando e depois me penetrando, de frente, com Diogo o abraçando por trás para depois ir se colocando nele, o devorando. Lembro de extasiar e me divertir muito com os gemidos de dor de André sendo penetrado e a cara de sádico de Diogo, olhando sempre para mim e vice-versa.
A visão dos dois era incrível. André com os braços musculosos em torno da minha cintura me penetrando, a face e o pescoço forte, vermelhos, com pequenas veias saltando; ao mesmo tempo que começava a empinar-se para Diogo atrás dele, que o estava agarrando com brutalidade, apalpando seu peitoral e o segurando pela barriga.
A imagem mais forte que ficou foi a do corpo branco e alvo de um e marrom-dourado do outro se esfregando, debruçados sobre mim, as mãos de André me segurando forte, até que eu não pude mais me conter e a minha ejaculação surgiu, fazendo ambos eles me acompanharem...
Havia sido muito engraçado que, quando terminamos, André havia se levantado e começado a falar sobre o apartamento, com o membro rosado e um pouco pequeno meio flácido, como se nada demais houvesse ocorrido.
Concluí que ele entendeu que aquilo foi só diversão, e não misturou as coisas, isso acabou sendo ótimo, afinal ambos o consideramos apenas um amigo "engraçadão", que às vezes é meio ultrapassado, mas no fundo não é má pessoa. E admito que já cogitamos chamá-lo de novo para as nossas brincadeiras.
- É verdade, pouco a pouco tudo vai se organizando.
- Eu só não entendi o porquê de vocês deixarem a casa anterior. Era uma casa tão bonita.
- Eu diria que foi um ciclo que se encerrou, tudo muda algum dia - digo enigmático, e vejo que ele faz uma expressão perdida, mas me dirijo ao centro da sala.
Diogo me acompanha.
- Como tem passado, Isaias - digo, cumprimentando meu velho amigo, que pareceu meio deslocado a um canto, com uma cerveja em punho.
- Bem, muito bem, e vocês? - diz ele com sua voz charmosa, abrindo um sorriso bonito para nós.
Decidi parar de chamá-lo de padre, já que resolvi abandonar a religião, e tratá-lo só como um amigo. Usa uma camisa de gola V que eu nunca vi, branca com os detalhes das mangas em vermelho. Ele parece mais saudável, segundo nossas últimas conversas, ele tem se questionado muito sobre sua vocação sacerdotal. Penso que ele sabia que era gay, e por isso teria aderido a batina, mas não me senti confortável em tocar nesse assunto com ele.
- O que decidiu? Continua sendo padre?
- Por hora, sim. Eu já solicitei meu desligamento no Tribunal Diocesano. Eles devem enviar uma carta de desligamento para que assine. Depois ainda tem todo um processo.
- Que diferente! Então não é só pedir demissão? - pergunta Diogo.
- Não é tão simples. Como nós conversamos certa vez, eu ainda tenho dúvidas quanto a minha vocação. Mas ainda não decidi o que fazer, esse processo me dá tempo para pensar.
- Seja como decidir, saiba que pode conversar com a gente quando quiser - digo.
- Eu sei disso, muito obrigado. Você parece muito bem Samuel. Fico feliz que você tenha se encontrado. E que vocês dois estejam tão bem, você mudou muito.
- Você vai se encontrar também, muitas vezes é bom mudar.
Tenho a impressão de que ele gostaria de ter me contado algo mais, se estivéssemos a sós, mas conversamos apenas sobre nosso trabalho, até que ele nos deixa a sós para ir buscar mais uma cerveja. Ele já parece levemente embriagado.
_ Ele é bem bonito - diz Diogo me abraçando por trás, ao que sou obrigado a concordar.
De costas, mesmo com a calça mais folgada é possível ver que Isaías possui uma bela bunda, empinada, que sobe em costas bem feitas, e um pescoço forte.
_ Da próxima quem sabe eu chamo ele para as nossas brincadeiras - brinco, esfregando as nádegas nele sutilmente, e sinto ele começar a ficar animado quando me encoxa.
_ É melhor convencer ele logo, ou pode ser nossa última oportunidade de brincar com um padre - reponde ele, brincando também, mas com certa malícia .
Acho graça da brincadeira, embora saiba que ambos toparíamos se acontecesse. Entorto o pescoço, meio de lado com ele ainda me abraçando e trocamos um beijo. É estranho pensar que ter tal ideia, meses atrás, já me faria querer me penitenciar.
Quando terminamos de nos beijar, ele me abraça, dançando minimamente, ao que o acompanho, olhando meu apartamento cheio. Ouço a música e vejo as pessoas sorrindo e bebendo, descontraídas. Percebo que assim como na casa anterior, esse apartamento de certa forma traduz o meu estado de espírito. Eu me sinto uma pessoa muito mais livre.
- Eu me sinto muito feliz com você Diogo - digo absorto, sentindo seus braços me apertarem com mais força por um instante, enquanto falo - É estranho pensar em como a minha vida ficou mais leve quando parei de deixar os outros me dizerem pelo que me sentir culpado.
- Eu sei, eu vejo isso em você, lindo. Você é a melhor pessoa.
Penso em responder com "você quem é", mas percebo que isso estaria errado. Sinto que talvez devesse questionar algo.
- Eu queria te perguntar: desde o ocorrido, eu nunca te vi fazer qualquer feito sobrenatural. Você é sempre tão... humano comigo - digo, e algo começa a se formar em minha mente - É sempre assim? Existem outros como você? O Proprietário também era a mesma coisa que você?
- Eu não sei tudo, desconheço a mim próprio, mas eu sei que existem alguns como eu. Sei que havia o Proprietário da casa anterior, mas eu mesmo nunca o vi, ou quais as reais intenções dele.
- Essas pessoas que se dizem atormentadas, possuídas, endemoniadas...são entidades que fazem isso?
- Eu acredito que na maioria dos casos sejam apenas pessoas querendo culpar outros seres, sobrenaturais, por seus erros, medos, obscuridades. Mas como eu disse, eu não sei tudo. Eu também fui "agraciado" com uma perda de memória, mas no meu caso, de quem eu era antes de ser um espírito vagante, e te conhecer.
É a primeira vez que ouço isso. "Eu não faço as regras (...) e o que eu não te falei, você sempre teve a oportunidade de perguntar", me recordo. Me sinto egocêntrico.
- Não te incomoda não saber certas coisas.
- Mas é claro que sim. Mas viver não é isso? Quem aqui, nessa sala, realmente sabe quem é? De onde viemos e para onde vamos? Só o que eu sei é meu hoje, o que vivo. É como escolhi viver.
Acho tudo sensato e confuso. Queria ter olhado em seus olhos, mas ele estava me abraçando pelas costas.
Tento racionalizar uma explicação melhor pra tudo que aconteceu no último quase um ano e meio, mas tudo soa absurdo. Teria eu delirado, durante a minha internação após o acidente, falado sobre demônios e salvação, e essa pessoa que se diz Diogo resolveu interpretar esse papel todo? Seria tudo um coma? Seria eu louco, Diogo uma projeção minha? Mas e os outros?
Começo a rir comigo perante as ideias súbitas, mas principalmente com como o porquê das coisas sempre parece tão importante, a estrada às vezes tão fascinante, mas ficamos obcecados com o que há em seu final.
- Do que está rindo? - Diogo pergunta ao meu pescoço.
- De nada. Foi só uma reflexão sobre o que você disse. As pessoas obcecadas pelos motivos, atribuindo suas mazelas ao Diabo, aos espíritos... Acho que no fundo, a maioria dos demônios vivem mesmo é em nossos corações.
***
Olá pessoal. Eu gostaria de agradecer muito a todos que votaram e acompanharam a história até aqui, e dar um agradecimento especial àqueles que em qualquer momento decidiram comentar ou me mandar alguma mensagem particular sobre o que achou da história. É a primeira história que eu finalizo e o feedback de vocês foi muito importante tanto para aprendizado quanto para motivação.
Espero que tenham gostado da história e, caso eu tenha decepcionado alguém, que me desculpem e saibam que eu escrevi de coração.
Fico à disposição caso alguém queira me falar o que quer que seja, mesmo que seja alguma crítica sobre o que eu poderia melhorar.
A quem eu não veja mais por aqui, desejo tudo de bom pra vocês!
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