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"Early this morning when you
knocked upon my door
And I said "Hello Satan I believe it's time to go"
(Tradução: Hoje de manhã cedo, quando você bateu na minha porta, E eu disse "Olá, Satan, acho que é hora de ir" - Me And The Devil Blues, de Robert Johnson)
Sobre a música acima: pra quem não conhece, Robert Johnson é um dos grandes heróis do blues. Consagra a lenda que ele morreu aos 27 anos por ter vendido sua alma ao diabo em uma encruzilhada. Motivo? Ele queria ser um grande guitarrista. Quem o conheceu, jura que só vendendo a alma pra fazer o que ele fazia. Boa parte das letras trata de temas satânicos, quase que confirmando a história. Bateu a curiosidade? Indico que assistam ao EPISÓDIO 08 da SEGUNDA TEMPORADA da série Supernatural, dos irmãos Winchester, que fala justamente de nosso mestre do blues. Na real mesmo, o bluesman morreu envenenado, supostamente por um homem ciumento por tê-lo visto flertando com sua esposa. Prefiro a lenda. Vamos ao quarto capítulo da saga diamandina?
Capítulo 4
— Mathias, saia já daqui, tua função é outra. Não quer ter problemas com Petrus, certo? —
Mathias obedeceu, não sem antes lançar um olhar ameaçador para Cleo. Mas sabia que a confeiteira tinha moral de sobra com o chefe, melhor não arriscar.
Bem sabia Mathias que as coisas poderiam ficar um pouco difíceis. Petrus não gostava de erros, e mexer com um fornecedor era o pior dos mundos. Gostaria imensamente de esquecer a história, mas não seria possível. Não seria possível...
Sentindo-se cansado, foi ao banheiro. As mãos tremiam levemente. Reparou nisso. Notou também as olheiras, profundas, verdadeiros sulcos circundando os olhos baços. Sentiu algo estranho. Pelo reflexo do espelho, viu um homem na porta do banheiro, parado. O homem olhava para ele. O homem tinha olhos negros. Usava um terno preto texturizado de caimento perfeito. As sobrancelhas espessas, mas bem desenhadas. A mandíbula quadrada, conferindo masculinidade e força. Mas os olhos... Duas esferas negras escondendo mundos distantes. Mathias virou-se rapidamente e não havia ninguém à porta. Não correu. Não se mexeu. Ficou parado. Virou-se novamente, os olhos fechados. Abriu a torneira, tomou um verdadeiro banho no rosto, nos cabelos, pescoço. Durante mais de dez minutos, ficou a mexer na água, talvez tentando purificar-se, ou apenas fugir do que vira. Temia sair do banheiro. As luzes, então, começaram a se apagar. O mercado dava seus últimos estertores da noite. A claridade ofuscante dava lugar à escuridão cega. Não podia ficar ali. Correu. Correu muito, pelos corredores. Longos corredores, que jamais pareciam terminar. A escuridão aumentava a cada passo. Mathias suava muito, suava em bicas. Acordou algum tempo depois. Estava deitado, cercado de três funcionários, dentre elas a confeiteira, Cleo, além de Petrus, nitidamente preocupado.
Envergonhado, mudo ficou. Não entrou em detalhes, apenas disse que sentiu-se mal, uma tontura forte, a fala engrolada, pouco compreensível. Como normalmente ocorria, o filho de Cleo, Jean, buscou-a no mercado, com seu Dodge Magnum 1979, cor marrom sumatra com detalhes creme, herança de seu falecido avô. Jean era louco por carros antigos e estudou mecânica desde muito cedo para aprender a lidar com essas máquinas fora de linha. O fascínio era tal que, aos 38 anos, era dono de uma oficina especializada em carros não mais fabricados, e organizava eventos para donos e fãs das máquinas de outrora, pelo país afora. Cleo pediu que levasse Mathias também, que não estava bem, e foi dirigindo o Palio 2012 do supervisor assistente até sua casa, com certa dificuldade, pela pouca prática na direção. Mas chegaram inteiros, era o que importava. A esposa de Mathias saiu desesperada da casa, sem entender o que ocorrera.
Ela o recolheu à casa. Muitas perguntas, poucas respostas, Mathias pediu que, peloamordedeus, parasse de importuná-lo, precisava apenas descansar um pouco. Despiu-se, tomou um banho mais longo e quente que o normal, bebeu um chá de camomila feito pela esposa (ele que nunca foi de chá), e dormiu. Ou tentou. Debateu-se à noite e acordou ainda mais cansado. Mas era um novo dia, e a luz do sol faz milagres. Nada além de uma indisposição. Saíram os dois juntos, Mathias deixou sua esposa no trabalho dela (uma loja popular de roupas no centro da cidade) e dirigiu até o Diamandi. Chegando próximo ao mercado, percebeu, talvez pela primeira vez, a imponência da construção. Era basicamente uma caixa retangular e bege, mas muito, muito grande. Não lembrava em nada a antiga sede da família de Petrus. A região era praticamente inabitada, o que destacava ainda mais o prédio. Não entendia o que acontecera na noite passada. Seu ceticismo não ajudava em nada, e pretendia seguir vida normal, sem tocar no assunto e sem querer ouvir falar em ternos novamente. Por sorte era tarde da noite e poucos o viram naquela situação de fraqueza. Pessoas de confiança, que não espalhariam a história. Pensava, porém, em dar uma conferida nas câmeras para ver se descobria algo sobre o homem. Sentiu um mal-estar só em pensar nisso.
Euller chegava naquele momento também, de skate, mas devidamente uniformizado. Estava animado, para não dizer eufórico. Naquela semana, trabalharia com Larissa, acompanhando-a em suas tarefas administrativas e burocráticas. O serviço talvez fosse chato, mas a motivação era outra, se é que o leitor me entende. Guardou o skate em seu escaninho, chaveou-o, cumprimentou Mathias (com olheiras, nitidamente cansado, logo cedo), e subiu a escadaria. Encontrou Larissa já trabalhando, sempre elegante em seu conjunto social azul-marinho, toda sorrisos.
— Olá, garotinho, veio pra aulinha da titia Lari? — Sorriu maliciosamente para o pobre guri.
— Oi, tia Lari, vim sim, o que é que vamos aprontar? — Sem perder o rebolado, Euller já foi puxando a cadeira e sentando-se do lado dela.
— Na aula de hoje, vamos aprender tudo sobre excitantes planilhas do Excell.
Euller riu. As planilhas não eram exatamente excitantes, mas o que importava? Seria uma semana de excelente companhia, além da oportunidade de observar Petrus mais de perto. Pretendia aprender o máximo possível observando a postura do empresário mais respeitado de Gorpan.
— Cê viu a cara do Mathias? Deve ter sido boa a noite! — Euller riu, comentando do "capataz".
— Não vi e nem quero ver, aquele ogro de bosta. Comigo ele não se criava. — Larissa demonstrou a indignação com a rudeza do homem.
— Cheio de olheira, cara de quem não dormiu. Decerto viu fantasma. Será que foi o homem de terno?
— Tá me zoando, garoto? Meu Deus, a Ária ficou bem louca com essa história, né? Agora parou, mas... até eu vi o tal homem. Ainda acho que a Sarah escondeu ele lá, sabe? Muito estranho... ela tá escondendo alguma coisa, aquela vaca. Acho que vou conferir as câmeras pra saber onde ele se escondeu.
Euller ria sem parar do jeito de Larissa se referir aos colegas. As palavras não eram ditas com raiva, e sim com uma ironia fina e engraçada, quase como se estivesse cantando ou contando uma piada boba.
— Eu vou vestir um terno pra assombrar o Mathias qualquer hora, você vai ver só.
— A única assombração que você vai ver é uma carta de demissão, se inventar uma coisa dessas. Vem cá, me acompanhe até o arquivo, vou te passar algumas coisas práticas.
Deixemos a esfuziante Larissa e o intrépido Euller divertindo-se com os velhos arquivos, e passemos para o andar de baixo, onde o trabalho pegava fogo. O movimento era intenso, início de mês, povo com dinheiro fazendo "comprão". Alberto estranhava a baixa implicância de Mathias naquela manhã, mas sentia-se feliz por isso, afinal era um alívio trabalhar sem a pressão do "capataz" (o carinhoso apelido recebido pelas costas). O serviço fluía melhor, os erros eram mínimos, e até a vontade de trabalhar aumentou. Pôde sorrir e conversar com clientes, animado com o movimento intenso, o barulho, o burburinho, toda a agitação de um típico dia no Diamandi. Beto gostava disso, da dinâmica imparável de pessoas e máquinas atuando com harmonia, como uma grande engrenagem. A ausência aparente do (parecia tão velho) Mathias lançava novas cores, suavizadas, à rotina. Mas não se iludia, sabia que não seria sempre assim, devia ser uma dor de barriga.
A correria foi tanta que sequer teve tempo para a parada do cafezinho. Tudo bem, estava se sentindo bem, afinal. Só parou mesmo ao meio-dia, quando fechava seu caixa para ir almoçar. Almoçava na própria praça de alimentação do mercado (os funcionários não tinham uma cozinha para preparar sua comida ou esquentar uma marmita. Petrus dava um vale-alimentação válido exclusivamente para a praça do Diamandi). Convidou Ariane e pediram hambúrgueres. Não era todo dia que comiam no buffet ("comida de buffet enjoa", Ária repetia como um mantra).
— E aí, tá de quantos meses?
— Três e pouco. Parece que não gostam muito de grávidas nesse mercado, não é mesmo?
— Acho que em nenhum lugar. Já trabalhei numa faculdade onde a nossa chefe simplesmente mandava embora a funcionária quando ela voltava da licença-maternidade. Deu muita treta, mas ela continua lá, firme, forte e pegajosa. Cem vezes pior que o Mathias.
— Pior que o Mathias? — perguntou com um sorrisinho estranho.
— Sim. Que sorriso é esse? — Mera retórica, sabia bem que sorriso era aquele.
— Ué, não posso sorrir, não? Ih...
— Como você pode gostar de alguém tão ogro? — perguntou, não de forma indignada, mas curiosa mesmo, enquanto dava outra bocada no hambúrguer.
— Eu não acho ele ogro. Eu acho ele...
— Não responda. Prefiro morrer sem saber.
— Hum, tá com ciuminho, hein?
— Ele é casado.
— E daí? — Sorriu com um marotismo épico.
— Como e daí? Tanto cara legal por aí, e você amarradona num capataz casado?
— "Amarradona"? Céus, você é mais velho que ele, Beto. E você é gentil e engraçado. Ele é...
— Não diga.
— Quente.
— Eu disse pra não dizer.
— Voraz.
— Vou jogar esse sanduíche na tua cara.
— Gost...
— Cale-se, peste! — Foi quase um grito, mas contido.
— Adoro te atentar, bobo.
— Nota-se.
O som ambiente calcado em músicas popularescas tomava o ambiente. Petrus vivia um dia particularmente estressante, sob acusação de roubar cargas de caminhões. Havia explicações a dar, mas acionou o jurídico para cuidar do caso, recomendando o cuidado de sempre. Não à toa, não havia setor mais bem pago que o jurídico. Outra questão a resolver era em relação à contratação de mulheres. Hermes talvez tivesse razão. Já havia cinco funcionárias grávidas, dentre elas duas recém-contratadas. Era demais. Era prejuízo. Focaria na captação de funcionários do sexo masculino por um tempo. O anúncio em reunião com a equipe diretora foi recebido com naturalidade. A única mulher da equipe sugeriu de leve uma situação um pouco diferente:
— E se, na entrevista, deixássemos claro que preferimos mulheres solteiras e sem filhos, com possibilidade de assinar contrato sob a responsabilidade de não engravidar por um período X de tempo?
— Não sei se esse tipo de contrato é possível, Verona. Acho mais seguro simplesmente não contratar. Mas obrigado pela sugestão. É algo que podemos resolver com os advogados.
Mais abaixo, Cleo se desesperava porque seus doces estavam queimando. Aparentemente algum defeito na regulagem do forno. Atípico, já que o equipamento era novo. O antigo, com mais de vinte anos de uso, jamais dera qualquer problema. Esses produtos novos não duram nada, pensou alto. Aliás, nada parecia funcionar naquele dia. Nem mesmo os simplórios brigadeiros. Há muito tempo ela não se deparava com situação de trabalho tão estressante, desde quando estragou uma bela remessa de massas para torta por conta de um ingrediente estragado.
Foi quando o cheiro de queimado ganhou outras cores, mais ácidas, como se fosse uma secreção que saísse do forno. Não podia ser, será que tinha algum maldito rato por ali? O lugar era extremamente limpo, mas vai saber. O cheiro foi piorando, os demais funcionários começaram a se afastar, e Cleo ainda pensava no que fazer quando a fumaça começou a se desprender do forno já desligado. O tom nauseante de enxofre impregnou o ar e ninguém mais conseguiu ficar próximo. Apenas Cleo ainda insistia. Por pouco tempo. Uma grande explosão se fez ouvir, estremecendo todo o mercado.
Parece que tivemos uma EXPLOSÃO de preços baixos no Hipermercado Diamandi! E aí, o que será que rolou? Algum chute?
E essa situação das mulheres, o que acham disso? Este é um aspecto bem real da história, baseada em um mercado aqui da região que simplesmente eliminou o sexo feminino de seu quadro funcional.
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