Capítulo Único
Pórtico
Observei a porta vermelha por alguns segundos e conferi o endereço no convite da festa de halloween para a qual todo mundo da minha classe tinha sido convidado. Era alí mesmo, na porcaria de um daqueles escape rooms que estão na moda agora. Sei que é estranho, mas quando recebi o convite senti um arrepio na espinha e alí, parada naquela rua gelada, num bairro desconhecido, quase desisti, mas não o fiz por dois motivos. Primeiro porque havia prometido a mim mesma que iria tentar mais uma vez, ou melhor, ao menos uma vez, fazer algum amigo e esta era minha oportunidade. Me mudei para Marblehead há três meses e iniciei aqui meu segundo ano do ensino médio, porque minha família adotiva atual (já passei por tantas, que perdi as contas) é daqui.
E o segundo motivo de eu não ter desistido de entrar na festa, foi a voz de Zoey Parker atrás de mim:
– Savannah?
Me virei, sorrindo amarelo:
– Oi...
– Que legal que você veio! – Ela pareceu sincera, mas tenho sérias dificuldades em confiar nas pessoas, todos os psicólogos pelos quais passei me disseram isso, não que precise ser um gênio pra chegar a essa conclusão.
A loirinha estava acompanhada de duas pessoas: seu irmão-quarto-anista-lindo de morrer Luke e uma outra loira que nos primeiros dias eu confundia com a Zoey, mas que é mais quieta: Grace Coleman.
Conforme exigia o convite da festa, estávamos completamente vestidos de preto e devido a incapacidade adolescente de criarmos um estilo próprio, parecíamos uniformizados: calças, blusa de tricô, botas sem salto e jaquetas.
– Vamos entrar? – Luke passou na frente e tocou a campainha – Parece que quem conseguir "escapar" em até uma hora pode participar da festa e ganha desconto da próxima vez que vier, se trouxer mais dois convidados.
– É isso então? A festa é marketing pro escape room? – Perguntei.
– Ah sim, não existe almoço grátis, né. Pensa que se você não está pagando por alguma coisa, o produto é você. – Ele riu.
A porta rangeu e um homem magérrimo, usando um terno risca de giz e com uma maquiagem digna de Hollywood que ressaltava suas olheiras, nos recebeu. Nos calamos, impressionados, e outra vez tive um ímpeto de voltar pra casa, mas, de novo me lembrei que o lugar em que eu estava dormindo naquele ano dificilmente podia ser classificado como "casa" no sentido amoroso da palavra. Eu com certeza não me sentiria melhor do que naquele lugar esquisito.
– Bem vindos... – A voz do homem era de alguém que fumava há anos, ou de um ótimo ator.
Entramos num hall, onde havia algumas cadeiras de plástico e o homem parou em frente a outra porta vermelha, idêntica à da entrada, no nosso lado oposto.
– Ótimo, vocês já estão em quatro pessoas, não precisam esperar mais... Cada grupo deve ter quatro participantes para passar pelas quatro salas. Quem chegar ao final, poderá entrar na festa.
– Tem open bar? – Luke perguntou.
– Só para maiores.
– Ah... – Ele fez uma careta.
– As instruções estarão em cada sala... Divirtam-se... –O homem abriu a porta e correu pra dentro.
Zoey, Luke e Grace se apressaram para entrar e eu, novamente, olhei para a porta de entrada.
– Vamo logo Miller! – Luke puxou minha mão e eu comecei a achar que talvez seria legal fazer amizades nesta cidade.
Sala 1
O homem magro tinha desaparecido. Estávamos num ambiente com uma luz fraca, paredes pintadas de cinza e caracterizado como uma sala de estar. Me senti sufocada e me aproximei de uma cortina, mas quando a abri dei de cara com uma parede. Havia dois sofás, uma lareira, uma poltrona e num canto uma mesinha com um telefone antigo, que começou a tocar assim que Luke fechou a porta. Grace sorriu e atendeu:
– Alô! Sim... Ãh? – O sorriso dela se desfez e ela desligou – Credo!
– Que foi? – Zoey perguntou.
– A gente tem que achar a chave que abre a próxima porta.
– Tá, mas por que a careta?
– O cara falou que a chave está na arma do crime que vai ser cometido hoje.
– Deixa de ser dramática! – Zoey riu – Faz tudo parte da brincadeira.
– Porra, não tem sinal de celular aqui... – Luke reclamou – A Chelle não vai conseguir falar comigo.
Ah sim, Luke Parker obviamente tem uma namorada linda, inteligente e tudo o mais, ou seja, ele é só aquele cara pra gente ficar babando de longe.
Os três conversavam e mexiam nas coisas da sala, como se eu não estivesse alí. É claro, pra que eles interagiriam comigo? Não precisavam de mais uma amiga, tinham seu grupinho, como todo mundo na nossa sala, possuíam suas piadas internas, se conheciam, se gostavam... Só se comunicariam com a "menina nova" se algum professor os obrigasse a fazer um trabalho comigo ou se precisassem completar um time, como nesse caso. Bom, ao menos desta vez eu não estava sofrendo bullying, quer dizer, não ainda. No ano passado fui zoada por ser gordinha, no anterior, por causa dum corte de cabelo e há três anos porque meus pais adotivos temporários eram um casal gay. Sempre inventam alguma coisa, estou até curiosa pra saber o que vai ser dessa vez.
– Savannah, não vai ajudar? – Zoey me olhou irritada quando sentei numa poltrona – A gente só tem uma hora!
– É, se você não queria brincar, não entrasse... – Grace estava concentrada, mexendo no que pareciam ser partes de uma espingarda e me surpreendi com essa patada. Acho que ela não é tão boazinha quanto eu imaginava.
Então eu vi um acendedor de lareira, desses elétricos, conectado numa tomada e me agachei:
– E isso? – Ao puxar o plugue, o espelho da tomada veio junto e revelou um buraco na parede. Lá dentro havia uma chave antiga.
– Boa Savy! – Zoey pegou o objeto e correu pra porta.
Não sei se gostei de ser chamada assim, mas não tive coragem de reclamar. Nunca tenho coragem de falar nada do que gosto ou não gosto. Mais uma descoberta elementar sobre mim: personalidade zero.
Sala 2
Lá estávamos nós, num minúsculo banheiro de paredes e louças brancas: havia uma banheira, onde Luke logo deitou, um vaso sanitário, uma pia e em cima dela um armário embutido, com um espelho na porta. Contrastando com a sala, o lugar tinha uma iluminação clara, quase como num hospital.
Mal conseguíamos nos mexer, mas começamos a fuçar nas coisas, apertar a descarga, abrir torneiras e registros e os três mais uma vez brincavam entre si. Zoey e Grace se abaixaram pra mexer nos rodapés e eu abri o armário da pia, que só tinha uma escova de dente usada, tentei desencaixar o fundo, mas nada aconteceu. Quando fechei o armário:
– Puta que pariu! – Vi o reflexo de uma mulher ruiva tocando num dos azulejos, juro que vi.
Mas quando me virei para trás, não havia ninguém.
– Que foi? – Os três interromperam o que estavam fazendo.
– Eu vi um reflexo de uma mulher mexendo num azulejo. – Apontei pra onde tinha visto a ruiva, tremendo, e os três começaram a rir.
– Sua cara foi a melhor... – Luke levantou da banheira e começou a bater na parede.
Meu coração batia descompassado.
– É porque não foi com vocês! – Quase gritei e sentei na tampa do vaso sanitário.
Eles riram mais alto ainda.
– Deve ser um vídeo... Esse espelho é tipo uma televisão... – Zoey balançava a cabeça.
– Aê! – Um dos azulejos afundou como um botão e a porta vermelha seguinte destravou.
Fui a última a sair do cômodo e quando encostei a porta posso garantir que um vulto de cabelos vermelhos se levantou da banheira.
Sala 3
Uma cozinha.
– Uma cozinha de bruxa, é claro! – Zoey começou a tirar os diversos vidrinhos coloridos das prateleiras que iam do chão até o teto de uma das paredes – Asas de borboleta, olho de sapo, pó de cemitério...
Luke levantou as tampas das panelas que estavam no fogão:
– Vazias...
Achei estranho não haver geladeira no cenário e novamente optei por abrir as torneiras da pia. O cômodo era mais ou menos do mesmo tamanho do primeiro e no centro havia uma mesa com cadeiras. O piso era avermelhado, as paredes amarelas e outra vez a iluminação era fraca, provavelmente para acentuar o clima fantasmagórico.
Grace se aproximou da porta vermelha seguinte e puxou um envelope que estava parcialmente visível, por baixo dela:
– Correspondência. – Ela sorriu e estendeu o envelope na nossa direção – Não quero tomar outro susto.
Luke pegou a carta e a abriu, revelando um papel:
– Chegarão ao quarto quando o feitiço correto for jogado... – Amassou a folha e revirou os olhos – Zoey é a última vez que eu te acompanho nessas festas furadas.
Ela riu e nem deu bola para o irmão:
– Deve estar aqui... – Pegou um livro grosso que estava junto aos vidrinhos e começou a folheá-lo. Grace se juntou a ela e as duas perderam uns bons vinte minutos alí, mas era óbvio que mesmo que tivéssemos três horas elas não dariam conta de verificar tudo.
Luke tinha desistido de brincar e estava tentando desesperadamente obter sinal do celular, subindo em cima da mesa e segurando o aparelho em diversas direções.
E eu continuei mexendo nos potinhos, fingindo ajudar, mas a verdade é que eu já tinha concluído que eu consigo viver bem sem amigos. Os interesses e diversões daqueles três e de todos os outros alunos da minha turma não me atraiam. Eu só estava esperando o prazo dos desafios acabar para perdermos a chance de participarmos da tal festa e ir embora. Eu já desconfiava que este seria meu motivo de bullying nesse ano: estraga festa.
Zoey ia folheando o livro e lendo os títulos de cada página:
– Feitiço para fazer chover... Para destrancar janelas...
– Quase hein! – Grace lamentou.
– Para chamar espíritos... Para fazer flores florescerem no inverno...
Enquanto as meninas continuavam, impacientes, algumas páginas soltas caíram no chão e elas não pareceram notar. Eu as recolhi e numa delas havia uma receita, que consistia em colocar três ingredientes, que eu já havia visto nos potinhos, dentro de uma panela, acrescentando água.
– Gente, vou testar essa aqui.
– Qual o nome?
– Sei lá, não tem.
– Então não é essa. – Zoey e Grace nem levantaram os olhos do livro.
Peguei os potinhos, a panela e juntei as coisas. Depois, sem muita certeza, molhei minha mão e salpiquei a mistura na porta vermelha.
– Estou testando...
E antes que eu pudesse acrescentar qualquer outra coisa, um barulho de ar comprimido me assustou e soltei a panela no chão.
– Miller, o que você está fazendo?! – Luke desceu da mesa e as meninas também se aproximaram.
No lugar onde os respingos da água colorida haviam atingido a porta, pequenos furos apareceram e foram se expandindo... Era como se a porta estivesse sendo corroída vorazmente por cupins.
– Caramba! – Zoey foi a única que reagiu àquela imagem bizarra – Os efeitos aqui são bem cinematográficos mesmo.
A porta havia desaparecido.
– Mas como é que você leu isso? – Grace olhou a folha da receita e franziu a testa.
– Como assim? – Me aproximei.
– Em que língua tá isso?
– Ué... Em... – E observei as palavras esquisitas sem saber ao certo como eu sabia o que cada uma significava.
– Deixa isso aí, vamos logo que a gente só tem dez minutos. – Zoey reclamou e nós a seguimos para o cômodo seguinte.
Sala 4
O único móvel do local era uma cama com uma colcha de renda branca. Na parede oposta a que entramos havia quatro batentes, sem portas, mas sim com grades, levando a quatro diferentes escadarias, que pareciam dar no quintal dos fundos, um nível abaixo. Não conseguíamos enxergar o que havia no final das escadas. As paredes neste cômodo também eram de um tom amarelo e a luz fraca.
Mas ao menos já era possível ouvir música e o falatório das pessoas na festa.
– E aí Savannah? – Luke me olhou sorrindo.
– E aí o que?
– Você resolveu todos os desafios, certeza que vai conseguir esse também... – Ele sentou na cama e as meninas se viraram para mim, como se eu fosse a bruxa-madrinha que os levaria para a melhor festa de suas vidas.
– Ai gente, sei lá... Acho melhor cada um usar uma das saídas e vamos na sorte... – Empurrei os portões e todos estavam abertos.
Os três me olharam desanimados, mas, como tínhamos pouco tempo, acabaram concordando.
– Tá vai, qual vocês querem? – Luke questionou.
Escutei um miado e me aproximei de uma das escadarias. Lá embaixo, um gato branco, que me lembrava Kiara uma gata que eu tinha quando era criança, me encarava.
– Eu quero esse... – Nem esperei por uma resposta, desci correndo, atraída pelo animal.
No final da escadaria o gato se esfregou nas minhas pernas, exatamente como Kiara fazia e eu o peguei no colo. Empurrei a próxima porta vermelha e saí num cômodo decorado como um escritório antigo: escrivaninha e cadeira de carvalho, tapete grosso e estantes com livros empoeirados. O homem da recepção estava sentado numa poltrona, próximo a uma janela:
– Você passou no teste. – Ele não parecia mais tão assustador.
– Ãh?
Ao lado dele uma mulher ruiva me lembrava minha professora do jardim da infância:
– Muitas bruxas nascem todos os anos, mas está cada vez mais difícil localizá-las, nós temos que ser cada vez mais criativos.
Abri a boca com a intenção de fazer mil perguntas, mas, no fundo, eu sentia que aquela não era uma situação assim tão absurda. Eu já sabia que não pertencia àquele mundo há muito tempo e essa revelação fazia muito sentido. Então só perguntei:
– E agora?
– Se quiser, você pode fazer parte do nosso clã, mas terá que abandonar sua vida antiga.
Sorri e acariciei o gato, que havia começado a ronronar no meu colo:
– Onde eu assino?
A tribuna de Marblehead
02 de novembro de 2019
O incêndio na casa de entretenimento Escape Room 29 finalmente foi controlado nesta madrugada. De acordo com o corpo de bombeiros o fogo foi provocado por um curto circuito num acendedor de lareira que fazia parte do cenário.
O corpo de Savannah Miller foi encontrado carbonizado e não haverá necessidade de exames de DNA para identificação, tendo em vista se tratar da única vítima fatal do desastre.
Até o fechamento desta edição não havia informações a respeito do velório.
Fim
TOTAL DE PALAVRAS: 2475
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