Continuação
Os motivos que tinham levado um homem com o talento de Paul Goossens a enveredar pelo mau caminho na meia-idade eram um mistério tanto para os seus poucos amigos como para a Polícia belga. Ao longo dos seus trinta anos de empregado de confiança da Fabrique Nationale d'Armes, de Liège, granjeara uma reputação de precisão infalível em questões de engenharia.
Tornara-se o principal perito da fábrica numa gama muito vasta de armas.
Também não existiam dúvidas quanto à sua honestidade. O seu cadastro do tempo de guerra era notável.
Durante a ocupação alemã continuara a trabalhar na fábrica de armas como chefe de um grupo de sabotadores, graças aos quais uma razoável proporção das armas produzidas em Liège ou não proporcionavam uma pontaria precisa ou explodiam ao quinto projétil, matando os municiadores alemães. Em princípios da década de 1950, quando era chefe de seção, foi acusado de defraudar um cliente estrangeiro numa elevada importância em dinheiro. Embora os seus próprios superiores tivessem sido quem mais veementemente ridicularizaram as suspeitas policiais, Goossens fora considerado culpado e condenado a cinco anos de prisão. Quando, decorridos três anos e meio, foi libertado por bom comportamento, fundou uma firma que veio a florescer graças ao fornecimento ilegal de armas a metade do mundo clandestino da Europa ocidental. Nos primórdios da década de 1960 conquistara a alcunha de l' Armurier (o Armeiro).
Para comprar uma arma ou munições em qualquer loja de artigos esportivos do país, um cidadão belga tem de apresentar o seu bilhete de identidade, e a venda fica registrada no livro de vendas do fornecedor, juntamente com o nome e o número do bilhete de identidade do comprador.
Porém, para conveniência dos seus clientes, Goossens estabelecera laços fortes com um famoso carteirista e um mestre falsário. A Polícia Belga suspeitava das suas atividades, mas as repetidas visitas que fizera à sua pequena oficina não tinham revelado mais do que os instrumentos e ferramentas necessários ao fabrico de souvenirs de ferro forjado. O inglês que Goossens conduziu ao seu pequeno gabinete, ao meio-dia de 21 de julho de 1963, fora-lhe recomendado por um dos seus melhores clientes, um antigo mercenário ao serviço do Katanga.
— Quer fazer o favor de tirar os óculos? — pediu, depois do visitante se sentar. — Acho que será melhor confiarmos um no outro na medida do possível. O inglês tirou os óculos escuros e fitou ironicamente o armeiro. M. Goossens sentou-se à mesa e perguntou calmamente:
— Em que lhe posso ser útil, monsieur?
— Suponho que Louis lhe telefonou a respeito da minha visita. Uma vez que eu sei qual é o seu negócio, não vejo nenhuma razão importante para que o senhor não saiba qual é o meu. Sou especialista na remoção de homens que têm inimigos poderosos e ricos. Neste momento tenho um trabalho em mãos para o qual vou precisar de uma espingarda especial, com alguns acessórios pouco comuns. Trata-se de arranjar uma espingarda que se adapte às limitações impostas pelo trabalho. Os olhos de M. Goossens brilharam de prazer.
— Pressinto um desafio. Diga-me, que limitações são essas?
— A principal é de tamanho. A câmara e a culatra não devem ser mais volumosas do que isto... — Formou, com o dedo médio e o polegar da mão direita, um “o” com menos de seis centímetros de diâmetro. — Não poderá ser uma arma de repetição, porque o mecanismo seria muito grande. Parece-me que terá de ser uma espingarda com ferrolho e ejetor. Como toda a arma, terá de ser metida em compartimentos tubulares, para arrumação e transporte, e como os compartimentos não devem exceder em diâmetro o que lhe disse, o mecanismo de disparo terá de ser destacável. A própria arma terá de ser leve e com cano curto, provavelmente não excedendo os trinta centímetros...
— De que distância terá de disparar?
— Provavelmente não superior a cento e trinta metros.
— Um tiro na cabeça dará mais garantias de matar, se conseguir um bom tiro — observou o belga. — Mas o peito é um alvo mais seguro para se acertar. Terá oportunidade de um segundo disparo?
— É quase certo que não. Talvez tivesse se utilizasse um silenciador e o primeiro tiro falhasse sem que ninguém próximo do alvo percebesse. De qualquer modo, vou precisar do silenciador para poder escapar. E necessário que decorram alguns minutos antes que alguém nas imediações perceba, ainda que sem qualquer precisão, de onde partiu a bala.
— Nesse caso será melhor utilizar balas explosivas. Vou arranjar-lhe um punhado delas, juntamente com a arma. Há mais algum detalhe?
— Para se obter o máximo adelgaçamento, todo o trabalho de madeira do fuste, sob o cano, terá de desaparecer. A arma vai precisar, para disparar, de um apoio articulado como o da Sten, cujas três seções, superior, inferior e apoio do ombro, têm de poder ser desparafusadas em três peças independentes. Por último, vão ser necessários um silenciador absolutamente eficaz e uma mira telescópica removíveis para acondicionamento e transporte. O belga refletiu durante longos momentos. Por fim, o visitante impacientou-se e perguntou:
— Então, pode fazê-la?
M. Goossens sorriu, como quem se desculpa.
— É uma encomenda muito complexa... Mas posso, posso fazê-la. Na realidade, o que o senhor acaba de descrever é uma expedição de caça em que o equipamento terá de passar por certos postos de verificação sem levantar suspeitas. Uma expedição de caça pressupõe uma espingarda de caça. Tenho em mente uma arma dessas, cara, precisa, bem trabalhada e ao mesmo tempo leve e delgada. Muito utilizada para cabras-montesas e pequenos gamos, mas absolutamente indicada para caça mais grossa desde que se utilizem balas explosivas. O ajuste de um apoio articulado é uma questão meramente mecânica. O afunilamento da extremidade do cano para o silenciador e o encurtamento de vinte centímetros do cano são possíveis. Mas perdese precisão quando se perdem vinte centímetros de cano. É bom atirador? — O inglês acenou afirmativamente. — Nesse caso, com uma mira telescópica não haverá problemas com um alvo humano imóvel a cento e trinta metros de distância. O senhor mencionou, há momentos, a necessidade de compartimentos tubulares para transporte da arma. Quer que os faça? Nesse caso, qual é a sua ideia?
O inglês ergueu-se e aproximou-se da mesa, dominando o armeiro com a sua altura. Levou a mão ao interior do casaco e durante um segundo, o outro experimentou uma sensação de medo. Reparou pela primeira vez que, qualquer que fosse a expressão do rosto do assassino, nunca se revelava nos olhos. Mas o inglês Iimitou-se a retirar do bolso uma lapiseira de prata. Voltou para ele o bloco de apontamentos de M. Goossens e começou a desenhar rapidamente.
— Reconhece isto? — perguntou, e virou de novo o bloco para o armeiro.
— Com certeza — respondeu o belga.
— Muito bem. É isto que quero que faça. O conjunto é composto por uma série de tubos ocos de alumínio, que se parafusam uns aos outros. Esta seção em forma de Y — bateu com a ponta da lapiseira numa parte do diagrama — é constituída pelos dois tubos que conterão os esteios do suporte da espingarda. O apoio do ombro está aqui. Esta é portanto a única parte que não fica oculta e tem um duplo objetivo, sem precisar sofrer qualquer modificação. Este — bateu noutro ponto do diagrama, enquanto os olhos do interlocutor se dilatavam de surpresa — é o tubo de maior diâmetro, que conterá a caixa de mecanismos e o cano da espingarda, com a culatra no interior. As duas últimas seções conterão a mira telescópica e o silenciador. Quanto aos cartuchos, deverão ser inseridos neste pequeno rebordo da base. Quando estiver tudo montado, a arma terá precisamente este aspecto. Entendido?
O armeiro belga olhou durante mais alguns segundos para o diagrama. Depois ergueu-se e estendeu a mão.
— Monsieur, é uma concepção genial. Indetectável. E no entanto tão simples.
O inglês não ficou nem lisonjeado nem descontente.
— Ótimo — disse. — Preciso da arma dentro de catorze dias. É possível?
— É. Posso arranjá-la em quatro dias. Os outros dez deverão bastar para fazer as modificações. Mas será conveniente o senhor vir com um ou dois dias de antecedência, na eventualidade de haver alguns ajustes de última hora. Se puder estar aqui, para os acertos finais, no dia 1º de agosto, terá a arma pronta no dia 4.
— Estarei aqui no dia 1º de agosto — afirmou o inglês. — E agora vamos discutir a questão das suas despesas e dos seus honorários.
O armeiro refletiu alguns momentos.
— Para este gênero de trabalho tenho de pedir mil libras inglesas. Não se trata de uma simples espingarda. Tem de ser uma obra de arte. Quem quer o melhor paga, monsieur. Haverá também o custo da arma, dos cartuchos, da mira telescópica e das matérias-primas... digamos, o equivalente a mais duzentas libras.
— Negócio fechado — declarou o inglês, que retirou do bolso do peito um maço de notas de cinco libras e contou cinco maços de vinte notas cada um.
— Adianto-lhe quinhentas libras e trago o restante quando voltar.
— Monsieur — declarou o armeiro enquanto guardava as notas — é um prazer negociar com um profissional e um cavalheiro.
— Só mais uma coisa — prosseguiu o visitante — o senhor não perguntará a ninguém quem eu sou nem para quem estou trabalhando. Eu não deixaria de ter conhecimento dessa investigação e nessa eventualidade o senhor morre. Compreendeu?
M. Goossens levantou a cabeça e sentiu os intestinos enovelarem-se de medo. Os homens do submundo com quem lidava eram duros, mas havia um não-sei-quê de implacável naquele visitante que não tencionava matar outro bandido como ele, mas sim um homem importante, talvez um político. Pensou em protestar, mas o bom senso levou a melhor:
— Não desejo saber nada a seu respeito, monsieur — declarou calmamente. — Receberá a arma sem qualquer número de série. O senhor deve compreender que é mais importante para mim que o que o senhor venha a fazer não seja relacionado comigo do que procurar informarme a seu respeito. Bonjour, monsieur.
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Voltei!
Serão postados dois Cap. Por dia.
Promessa é dívida
Obridada por ler.
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