Capítulo 28: Quando ouvir o chamado da deusa
A luta estava quase no final.
Morweena deveria estar em desvantagem por ter quatro bruxas conta ela, porém, é perceptível que Morweena é poderosa demais para ser derrotada tão fácil. Morweena poderia tê-las matado se desejasse, apenas com um estalar de dedos, mas não o fez.
Bianca lançou uma rajada de energia elétrica das suas mãos, que se fundiram com as energias astrais daquele plano e aumentaram sua força por pelo menos cinco vezes. Morweena foi pega de surpresa. Seu corpo sentiu a reação do ataque e logo se virou na direção da garota, mas eu precisava ganhar tempo.
— Morweena. — A chamo, mas ela mantém os olhos atentos em Bianca, e eu logo vejo seu corpo ser rodeado por uma aura dourada. — Você estava certa. Eu errei. Em outro tempo, essa seria a coisa mais absurda que já teria dito em toda a minha vida. Um dos pecados mais comuns entre os deuses é o egocentrismo. Nunca erramos, somos perfeitos, claro, somos deuses. Porém, eu vivi meses como uma humana. Eu senti felicidade, senti tristeza, senti raiva, senti amor, senti o luto. Querendo ou não, sua maldição me fez abrir os olhos.
— E continuará assim pelo resto da sua existência mortal. — Morweena diz, voltando sua atenção para mim e aura ao seu redor cresce cada vez mais. — Condenar-te a morte ainda seria pouco para o que você merece.
O lugar onde estávamos não tinha forma, não tinha cor. Eram apenas nossos espíritos vagando em uma esfera de energia pura. Estávamos vulneráveis, pois o plano etéreo é mais perigoso do que padecia ser. O mal existe em todos os lugares.
Uma onda sonora atinge Morweena, fazendo-a se afastar uma distância considerável dos pilares. Além de usar seus poderes de permanência, Leticia conjurou um dos feitiços adormecidos das bruxas, o qual eu não fazia ideia de onde ela sabia.
— Exaudiat me spiritus aethereus, Et virtus det mihi gratiam.
Elas tinham um plano e eu não estava envolvida.
Uma forte fonte de magia iluminou o ambiente, e a luz era tão forte que quase nos deixou cega. Morweena estava vulnerável, e foi o momento perfeito para Carol atacar. Com a força do feitiço que Leticia havia conjugado, o de um espírito etéreo, os poderes de Carol pareceram infinitamente mais fortes. Então, ela lançou uma espécie de maldição de enfraquecimento em Morweena.
— Essa é a última chance que darei para vocês saírem daqui! — Morweena se levanta do chão, e no momento em que Carol ataca, Morweena contra-ataca com magia negra.
As duas fontes de poderes opostas atuavam na mesma intensidade, mas Morweena ainda assim era mais forte. Carol estava enfraquecendo e Morweena se fortalecendo.
— Eu ouvi seu clamor aquela noite! — Digo para Morweena, e ela logo larga seu feitiço e se vira para mim.
Pouco antes do feitiço de magia negra atingir Carol, Miyu se põe a frente e as cerca com uma barreira de proteção, fazendo o feitiço se dissolver no ar.
— Se me ouviu por que não me ajudou? — Morweena berra e eu tento dar um passo na sua direção. — Você viu o quanto eu sofri!
— Eu também sofri, Morweena! Você me odeia tanto que está se assemelhando a mim. Centenas de famílias morreram por causa daquela besta, filhos ficaram órfãos, esposas que ficaram viúvas! Sou tão egoísta que enviei todo meu poder para você para que você pudesse os proteger, mas a única coisa que você se importou foi com seu próprio luto.
— Claro, eram a minha família! — Ela insiste.
— Eu sei, mas o que você queria que eu fizesse? Não posso reverter a morte, não sou a deusa da ressurreição! Eu tentei pelo menos te consolar, mas naquele momento o plano astral estava sendo atacado por uma força quase incontrolável. É o que eu faço, eu protejo o mundo da magia. E sabe? Não é fácil. — Digo com raiva, mas mantendo meu olhar em Morweena. — Você é a minha filha, Morweena. Eu nunca desejaria te ver mal, e se eu pudesse, traria sua família de volta.
— Então por que não me deixou ir com eles? — Morweena rebate, e eu sinto dor na sua voz. — Por que me condenou à imortalidade? Por que não me permitiu ficar com eles após a morte? Por que não deixou meu espírito descansar com meu marido e meu filho?
Sua dúvida em questão atingiu um ponto em mim que ainda era humano. Talvez a palavra certa seja remorso, mas não sei dizer. Antes de conseguir responder alguma coisa, vejo Bianca atacar Morweena novamente.
Dessa vez, usou uma espécie de explosão elétrica, que não fez muito efeito em Morweena, apenas atiçou ainda mais sua raiva. Morweena lançou um feitiço que fez Bianca começar a gritar.
— Alguém apaga! Alguém apaga o fogo! — Bianca agoniza, se debatendo, mas não fazia nada visivelmente a queimando.
— Gosta de usar o trauma dos outros como vantagem? — Letícia questiona para Morweena, enquanto Miyu ajudava Bianca a sair daquela hipnose. — Então vamos ver uma coisa.
Leticia fecha os olhos, e então todas nós ouvimos um som ecoar por todo lugar. De alguma forma, Letícia acessou a mente de Morweena, suas lembranças antigas e mais preciosas, e copiou o som de vozes que ela já conhecia.
— Mamãe! — A voz de uma criança faz Morweena paralisar.
— Minha querida, o que estás fazendo? — Logo, a voz de um homem começa a preencher todo o lugar, mas nenhum dos dois era visto.
— O que você está fazendo?! — Morweena olha furiosa para Letícia, com lágrimas nos olhos. — Pare agora!
— Ah, pesado, não é? — Letícia pergunta com deboche.
E então, o som de um rugido alto e de gritos da criança do homem, os quais agonizavam e transmitiam desespero.
— Letícia, chega! — Ordeno, e Morweena lança uma forte rajada de energia na direção delas.
Miyu rapidamente as teleportou para o outro lado do plano, fazendo a rajada atingir o absoluto nada e causar uma forte explosão. Morweena, não satisfeita, conjurou uma onda de espíritos malignos que começaram a atacar as meninas.
— Vai logo, Carol! — Miyu apressa a garota, que parecia estar fazendo um feitiço que levava tempo.
Miyu se vira na direção da horda de espíritos que se aproximavam e começou a mexer as mãos como se estivesse criando um redemoinho. Uma forte ventania começa a preencher ao seu redor, e Miyu prende os espíritos em uma esfera feita totalmente de éter, que assim que os tocou, dissolveu todos instantaneamente.
— Eu sei que você disse que não iria me perdoar. — Dou um passo para perto de Morweena. — Mas eu te perdoo. Eu te perdoo, Morweena. Por favor, me deixe curar suas feridas.
— Você não entende. — Morweena diz com preocupação no rosto. — Eu preciso proteger a magia.
— Você não pode. Se você assumir os quatro pilares da magia, eles irão deteriorar você. — Insisto, e faço Morweena olhar nos meus olhos. — Eu não vou deixar isso acontecer.
Morweena se ajoelha no chão, mas não por escolha própria. Por alguns instantes ela permanece imóvel, e a energia que a cerca diminui. Logo pude ver a chave mestra saindo dela e indo em direção às mãos de Carol, que havia feito um feitiço de ligação enquanto Morweena estava distraída.
Carol se aproxima, com a chave em mãos, e a entrega para mim sem dizer nada. Ao tocar a chave, sinto uma energia muito forte me atingir e uma onda percorrer meu corpo. Aperto a chave com força, e confesso que aquele processo era doloroso, mas eu havia voltado a ser o que sempre fui.
Finalmente voltei a ser a deusa da magia.
Não só meus poderes e minha onipotência voltaram, mas também a minha verdadeira característica. Meus cabelos negros como a noite caíam pelas minhas costas com graça, e minha face de mulher adulta exaltava toda minha grandiosidade.
Ó, pobre criança sem memórias. A senda que te aguarda é tecida com os fios do poder e da responsabilidade, teu caminho está entrelaçado ao da tríade sagrada, mas o verdadeiro arbítrio sobre o mal reside em ti mesma.
— Vocês cumpriram o destino de vocês. Agora é a minha vez de cumprir com o meu. — Digo olhando para a tríade, e logo crio um portal ao lado delas. — Você também será recompensada, Miyu.
Tu és a fonte de um poder imensurável, cujas profundezas são desconhecidas até para ti. Desde tempos etéreos, teu caminho tem sido delineado por uma única linha que se desenrola nas estrelas.
O plano etéreo se estende pelo espaço, e logo envio as quatro para o plano material, de onde vieram. O portal logo se fecha, e ali naquele pequeno espaço em meio à imensidão da magia, permaneceram Morweena e eu.
Em teu coração repousa a chave para a balança do mundo, e em tuas mãos, a capacidade de tecer e desfazer os fios do destino. Aceita esta verdade com discernimento, pois és guardiã de mistérios antigos e do futuro que se agiganta além da compreensão mortal.
— Meu destino me fez reconhecer meus erros, me fez enxergar o mundo humano de um ponto de vista íntimo. Eu não era uma deusa e nem uma bruxa. Era uma humana, assim como você já foi um dia, e eu sinto muito por tirar isso de você. — Digo olhando Morweena, que ainda estava enfraquecida no chão. — Eu não quero lutar com você, quero apenas que deixe de lado essa ideia boba de assumir os pilares da magia. Aprendi com um certo herói que com grandes poderes vem grandes responsabilidades.
— Eu só queria fazer a coisa certa. — Morweena abaixa o olhar arrependido, desviando-o de mim.
— Eu sei que queria, mas estava fazendo do jeito errado. A magia é uma coisa incontrolável, e é por isso que preciso de bruxas e bruxos para me ajudarem. Não consigo deter tudo sozinha, mas sempre os guardo sob a luz da lua, onde é meu refúgio. Meus filhos, minhas filhas, sempre estarão sob meus cuidados, Morweena, assim como você. — Toco seu rosto úmido pelas lágrimas e o acaricio. — “Quando ouvir o chamado da Deusa Hécate, não hesite. Siga e torne-se um de seus cães enquanto ela guia você pela escuridão. Vá e sinta o poder!”
— O provérbio que eu fiz para você. — Morweena se lembra, e eu me abaixo e a sinto se debruçar sobre mim. — Me perdoe, minha mãe!
Abraço o corpo de Morweena, ainda frágil pela sua considerável força de poder. Acaricio seus cabelos castanhos avermelhados, enquanto Morweena buscava consolo em algo que eu nunca havia feito como deusa: abraçado alguém.
— Hécate nunca deixa seus filhos sozinhos. Por mais que pareça, ela sempre os protegerá. — Digo, vendo os pilares ainda brilhando. — Eu retiro a maldição de você. Você poderá descansar com sua família.
— Obrigada! — Morweena agradece, e então, por mais que eu não quisesse, não podia impedir. Era um desejo dela e não meu.
— Que sua alma repouse em paz, minha filha. — Sussurro, vendo Morweena desaparecer em pequenos grãos dourados, ainda abraçada a mim, assim que retiro sua maldição de imortalidade, a qual fiz sofrer durante séculos.
A morte não é o fim, é apenas o início da jornada de um espírito a caminho da luz. Os humanos possuem a dádiva de morrerem apenas uma vez, enquanto quem vive eternamente revive seus maiores tormentos todos os dias. A imortalidade, para os humanos, é algo tão majestoso por acreditarem tempo para fazerem o que desejarem e nunca envelhecerem. Mas envelhecer faz parte, significa que um ciclo se encerrou e outro iniciou, carregando agora a sabedoria de um ancião. O início de uma geração, o fim de outra, tudo isso girando pela roleta da vida.
Os humanos possuem a capacidade de sentirem tudo com intensidade, sentimentos bons e ruins, qualidades e defeitos que constroem a identidade de cada um. Me tornar humana por um tempo me fez perceber que eles sim vivem de verdade, aproveitam cada momento que para nós, imortais, passam em segundos. Dão importância aos detalhes, e o que os restam são memórias de tudo o que viveram.
Guardarei as lembranças que Morweena me concedeu vivenciar. Cada momento, cada pessoa, cada sentimento que me fez retornar a quem eu realmente sou.
Salve, Hécate, deusa da magia, senhora das bruxas, sábia anciã, mãe protetora, donzela pura!
Fim.
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