27. Cinzas do Passado
HENG
Heng acordou sentindo um gosto metálico na boca. A cabeça doía. Tinha tido um sonho estranho, no qual dividia uma mesa na estalagem no fim do mundo com a mulher mais bela que ele já vira. Estavam esperando pela apresentação de um bardo ou qualquer coisa desse gênero.
Tolice.
Aquele era o fim do mundo, mas não havia nenhuma estalagem por perto.
No topo do promontório, o castelo continuava a arder. As chamas que o haviam consumido não eram mais discerníveis, mas o vento espalhava as cinzas por longas distâncias. A fuligem flutuava no ar, quase como flocos de neve. O aroma de queimado impregnava o vento, mas Heng não conseguia determinar se ele vinha do castelo ou de sua própria casa.
Ele se colocou de pé. O mundo todo girava. O lugar onde haviam lhe dado uma pancada ainda doída. Ele se obrigou a continuar firme. Tinha vontade de vomitar, mas não havia nada em seu estômago.
Na verdade, parecia não haver mais nada no mundo.
As árvores, porém, ainda estavam lá. Os troncos serviram de apoio enquanto ele cambaleava para fora do bosque e as copas pareciam observar enquanto ele atravessava o pequeno trecho descampado de modo vacilante até a sua casa.
Ou ao que tinha restado dela.
As ruínas da Casa Stoneregis assistiram um rapazinho imberbe revirando as cinzas de seu próprio lar. A última casa justa do sul havia finalmente sucumbido diante do Império. O mundo que Heng havia conhecido não existia mais. O que seria de Pedra do Rei agora que não havia uma Casa Nobre para olhar por ela?
A residência da família Aster tinha sido reduzida a um monte de pedras fumegantes. Seus pais estavam mortos. Sua irmã tinha sido levada. Haviam sobrado apenas três espadas puídas, ainda quentes devido às brasas e meio soterradas nas cinzas. Heng conhecia as histórias daquelas lâminas, afinal elas se confundiam com a de sua família.
As mãos de Heng pareciam menores quando ele se abaixou para pegá-las. Pareciam mais lisas e desajeitadas, completamente diferentes das mãos de um soldado que havia vivenciado mil batalhas.
Aquele era um estranho pensamento e Heng simplesmente o rechaçou. Ele nunca tinha sido um soldado. Suas mãos, portanto, refletiam apenas aquilo que ele era: um menino fraco, incapaz de proteger seus entes mais queridos.
Heng prendeu as espadas no cinto desgastado e continuou a andar.
Ouviu um som estranho e se voltou na direção do celeiro. O telhado havia cedido e a construção estava meio tombada de lado, como se estivesse prestes a desabar. Com a entrada principal bloqueada, ele precisou entrar por uma pequena abertura na lateral.
Ouviu um choro.
Nina! Seria sua irmã?
Atrás de uma pilha de madeira meio consumida, uma garota se escondia. Era velha demais para ser Nina. Na verdade, parecia ser um pouco mais velha que o próprio Heng. Era magra, com os cabelos negros presos numa trança desgrenhada. As roupas estavam rasgadas, mas ainda possuíam uma certa... nobreza.
Ela desenterrou o rosto das palmas das mãos e voltou os olhos verdes para ele. Embora seu rosto estivesse inchado de tanto chorar, Heng a reconheceria em qualquer lugar. A tinha visto muitas vezes antes daquela terrível guerra começar.
— Princesa Tylda? — ele perguntou, chocado.
A expressão no rosto dela era a encarnação do medo.
— Por favor, não faça nenhum mal comigo. — ela implorou. — Não conte a eles que eu estou aqui!
Heng duvidava que a lendária princesa Nola tivesse desejado isso para o seu próprio sangue. Seu marido, Athor Andill, jamais compôs uma cantiga que previsse um destino tão cruel. De qualquer modo, não era o final de tudo. A Princesa Tylda estava ali, resistindo bravamente como o último fruto da sua linhagem. Por causa disso, ainda havia esperança. Por causa disso, Pedra do Rei poderia sobreviver.
Heng sentiu os próprios lábios tremerem. O olhar da garota fazia com que ele se sentisse muito mais cruel que os seus meros quatorze anos de idade.
— Não vou contar. — ele disse, simplesmente.
A cabeça de Heng girou. As vistas embaçaram. Tudo escureceu.
Quando sua consciência retornou, estava montado em um cavalo magro. Tylda ia à frente, conduzindo uma montaria igualmente caquética. Sabia que a princesa tinha renunciado a um broche para conseguir dois cavalos esfomeados, cujas celas se resumiam a tecidos esfarrapados. Sabia que, em determinado momento, ela havia decidido pedir a Heng cortasse seu cabelo com uma navalha para se livrar da aparência real e passar despercebida. Não obstante, pensar nessas coisas era como juntar os fragmentos de uma memória distante. Heng havia vivido cada uma delas, embora tivesse a sensação de que isso acontecera em um passado distante.
— Você tem certeza de que estamos no caminho certo? — ele se ouviu perguntar.
— Sim. — ela assentiu. — Estive lá muitas vezes. Tenho certeza de que estamos na direção certa.
Quando ela se virou para ele, Heng reparou no quanto Tylda tinha se distanciado de sua aparência de realeza. A lembrança das festas sazonais, quando ela aparecia ricamente trajada para distribuir dádivas aos camponeses, ainda estava vívida na sua mente. De todo modo, Tylda agora se assemelhava a qualquer outra órfã de guerra. Embora Heng tivesse alguma habilidade em tosar ovelhas, cortar o cabelo de outra pessoa era algo totalmente novo para ele. Isso fez com que os fios da princesa ganhassem um aspecto tão desalinhado quanto o que sobrara de suas vestes. Ela parecia alguém completamente insignificante. Com sorte, esse disfarce poderia afastar qualquer mau agouro.
Não! Jamais vamos ter sorte!, Heng pensou sombriamente. O pensamento vinha de um lugar distante dentro de sua cabeça e ele não o compreendia. Deixou simplesmente que o medo atravessasse sua espinha e, então, o afastou.
Em um esforço para encontrar consolo, Heng tentou concentrar-se na beleza de Tylda. Mesmo em sua condição atual, ela ainda era tão deslumbrante quanto o pôr do sol acariciando as flores do entardecer. Entre todas as mulheres que Heng já vira, ela estava entre as mais belas, perdendo apenas para a garota do seu sonho com a taverna. Mesmo que ela fosse apenas uma miragem, a memória era tão vívida quanto...
— Se tivermos sorte, estaremos lá antes da próxima lua. — Tylda disse, puxando-o de volta para a realidade. — Se tivermos mais sorte ainda, vamos chegar antes dos exércitos do imperador.
Dirigiam-se para Braveste, onde o tio de Tylda continuava a resistir. Após a queda dos Stoneregis, poucas casas nobres permaneciam ao lado de Lorde Nebor. Contudo, sua fortaleza era suficientemente protegida para suportar um longo cerco e requeria apenas uma guarnição reduzida para protegê-la.
Se Tylda conseguisse chegar lá, os rebeldes teriam um motivo adicional para continuar resistindo às investidas do distante Império que tentava apoderar-se de suas terras.
— Espero que esteja certa, senhora. — ele finalmente disse. — Jamais estive em Braveste. Tudo que temos é a sua memória para nos guiar.
— Pois minha memória é ótima. — Tylda retrucou. — Além disso, não gosto quando você usa um tom tão formal comigo. Principalmente considerando que ainda estamos na estrada.
— Sinto muito... — sua boca abriu e fechou rapidamente, reprimindo o senhora que se insinuava. — Não vai se repetir.
— Não precisa ter tanto receio. — ela abriu um sorriso gentil. — Considerando tudo que vivemos nos últimos dias, sequer podemos dizer que eu continuarei sendo uma... senhora. — o sorriso permanecia, mas assumia contornos mais tristes agora. — Talvez você esteja certo e meu tio Nebor esteja morto numa hora dessas. Então não terá sobrado nada.
— Não ouvimos nenhuma notícia a respeito na estrada e já estamos perto. — Heng disse. — Mais do que os outros, devemos ter esperança.
— E se tudo der errado? O que faremos?
— Continuamos por aqueles que não puderam continuar.
Tylda assentiu, mas ainda estava pensativa.
— O que eu vou ser quando eu não for mais uma princesa?
Heng não tinha como responder. Desviou os olhos para o rio que corria a uma pequena distância da estrada e repetiu a pergunta para si.
O que eu vou ser agora que não posso nem mais ser um camponês?
Ele iria, é claro, atrás da irmã. Já teria ido se não fosse pela princesa. Porém, o que ele faria quando (e se) encontrasse Nina? O que seria dos dois agora que não possuíam mais nada que fosse verdadeiramente deles?
Tylda só tornou a falar depois que o silêncio se estendeu por um longo tempo.
— Tive uma ideia. — ela anunciou. — Se eu não for mais uma senhora, serei sua esposa.
Heng se assustou de tal maneira que agarrou a crina do cavalo com força. O animal empinou, agitando as patas no ar e quase derrubando o rapaz. Quando ele finalmente conseguiu acalmar a montaria, seu rosto exibia uma expressão de puro terror. Seu coração batia desordenadamente, mas ele não conseguia determinar se era devido ao cavalo ou da fala da princesa.
— O-o que você disse? — ele perguntou ofegante.
Tylda tinha uma expressão divertida no rosto.
— Que, se eu não puder mais ser uma princesa, serei sua esposa.
Só havia um pensamento na mente de Heng.
— Eu não tenho nada. — ele expressou.
— Aposto que conseguiríamos alguma coisa. — o sorriso da princesa tinha um tom divertido. — Por aqueles que não puderam.
Heng ficou sem reação. Não respondeu de imediato, pois todas as palavras pareceram lhe faltar. Jamais tinha considerado seriamente a ideia de ter uma esposa ou tido alguma experiência afetiva significativa. Apesar disso, Tylda era bela demais para passar despercebida, especialmente aos olhos de um jovem púbere. Sentir-se percebido por ela despertou algo novo nele, dando origem a um sentimento que se formou ali, mas começou a se intensificar nos próximos dias.
De repente, tornou-se difícil demais não dar atenção a tudo que Tylda fazia. Havia beleza na forma que ela desmontava do cavalo e em como se inclinava para beber água no rio. Seus sonhos também eram belos e repletos de motivação juvenil. Tylda acreditava genuinamente que o mundo entraria nos eixos quando ela e seu tio voltassem a se reunir. Heng sabia em seu íntimo que ela estava profundamente enganada. Mesmo assim, nada o impedia de se apaixonar cada vez mais por ela.
Tylda também tinha se apaixonado por ele.
Tylda também tinha se apaixonado por ele. Heng compreendia isso de um modo estranho, como o de alguém que avalia uma memória distante. Não era o amor juvenil e simplesmente descompromisso, que nasce naturalmente, mas o amor que é fruto da gratidão.
Para seu azar, as dúvidas eram frágeis e o amor mais frágil ainda. Quanto mais próximos ficavam de Braveste, mais próximos também ficavam de se despedir.
— Você deveria vir comigo. — Tylda lhe disse em certa ocasião.
— Eu já estou indo com você. — Heng disse simplesmente.
— Eu quero dizer ficar. — Tylda frisou. — Quando chegarmos, você não precisa ir embora. Pode ficar em paz. Pode ficar comigo.
— Eu devo partir. — ele disse. — A minha irmã...
— Você me salvou. — Tylda cortou. — Terá toda ajuda necessária para encontrar sua irmã. Assim que eu retornar ao meu posto, farei de você um lorde.
Algo dentro dele dizia que havia algo errado naquela afirmação. Era como se ele soubesse que se tornaria um nobre, mas não pelas mãos dela. De certo modo, ele sentia que a jornada deles acabava ali.
— Tylda. — Heng tentou continuar. — Eu agradeço, mas você não precisa se preocupar em me retribuir. Minha única preocupação é não saber onde Nina está. Talvez ela já tenha morrido, mas caso esteja viva eu quero estar lá. Quero encontrá-la e... Simplesmente dizer que vai ficar tudo bem.
— Tudo ficará bem. — Tylda concordou. — Basta aceitar o título que eu quero lhe dar.
— Nina é tudo que eu tenho. É tudo que eu quero e preciso ter.
Tylda estava começando a ficar irritada. Seu cenho estava franzido de raiva.
— Heng, não me faça ficar chateada. Já que você me fez um grande favor, deveria se calar quando eu tento retribuí-lo e não levantar sua voz contra mim. Sua irmã é importante, mas decida sobre ela depois que receber meu presente.
Heng permaneceu em silêncio pelo resto do dia. A princesa tinha tentado falar com ele, mas aquele instante decisivo tinha quebrado um pouco o encanto da paixão. Uma verdade tinha sido revelada. Heng nunca deixaria de ser um subalterno, mesmo que Tylda lhe concedesse todas as terras ou títulos do mundo. Um dia, ele provavelmente deixaria de ser significativo. Portanto, encontrar Nina era ainda mais importante.
A noite caiu sobre ele como um delírio suave e, de repente, todas as cores existentes pareciam se concentrar no horizonte. Ao longe, um castelo imprimia sua silhueta no céu noturno, mas Heng não conseguia fixar seus olhos nele sem sentir a cabeça pesar. Quando o contemplava, sua figura ficava disforme e sombria, dissolvendo-se em tons cinzentos. Heng tentava focar. Ele sabia que aquele era o seu destino final.
— Onde está o exército? — ele perguntou subitamente.
— Do Imperador? — Tylda questionou, confusa.
Heng assentiu.
— De certo modo, eu esperava que fossemos nos deparar com as tropas imperiais. Quer dizer, sequer os vimos na estrada. Você não acha estranho que eles não estejam em parte alguma?
Tylda refletiu por um breve momento antes de refletir.
— Não. — ela respondeu. — A guerra acabou quando meus pais morreram. Talvez os soldados estejam regressando para casa.
— Isso não faria sentido. — ele teimou. — Não com as pequenas casas resistindo.
Ela concordou.
— Talvez tenham ido, então, solapar as resistências inferiores. Meu tio Nebor ainda é um Stoneregis. Suponho que o Imperador espera que ele vá se renda se não tiver mais apoio.
— O Imperador é impiedoso. Não perderia tempo com as casas menores quando poderia esmagar seu tio de uma vez só e derrubar a última grande casa do Oeste.
Novamente, Heng disse cada palavra como se uma voz sábia e mais envelhecida falasse através dele, contando uma verdade pesada como o destino.
Tylda suspirou.
— Ele falhará. O destino de tudo que morre é voltar a nascer.
Heng se voltou para ela, surpreso, mas ela permanecia impassível.
— O que você disse?
Ela piscou algumas vezes, confusa.
— Eu não disse nada. Estava apenas ouvindo você falar.
Heng notou que sua cabeça doía. Com a mão direita, ele massageou a têmpora. Tylda continuava a fitá-lo.
— Sobre o que estávamos falando?
— Sobre o tempo. — ela respondeu simplesmente.
— Não! Quer dizer... —ele começou, sem saber ao certo quais palavras usar. — O imperador...
— Virá. — ela completou.
— Devemos nos preparar.
— Não precisamos. — ela cortou. — Estamos em casa.
Heng titubeou. Tylda não disse nada. Ela estendeu a mão para ele e esperou que ele entrelaçasse seus dedos no dela.
A noite os esperava. No horizonte, a fortaleza permanecia perfeitamente visível, iluminada por um brilho fantasmagórico que emanava do interior de suas pedras.
Tylda conduziu-o a uma área macia do gramado, onde se deitaram juntos. Inicialmente, contemplaram as estrelas, mas logo o brilho celestial começou a se fundir com os olhos dela. Heng a envolveu em seus braços, como jamais havia feito com outra mulher, e se permitiu sentir a maciez de sua existência. Tocou sua pele, seus cabelos e beijou seus lábios. Havia ansiado por isso durante toda sua existência e desejou prolongar aquele momento por toda sua existência.
E eterno foi até que ele se deu conta que jamais seria.
Havia algo errado, algo terrivelmente errado.
Tylda se transformou em uma nuvem de poeira, desvanecendo-se em uma areia negra que escorreu-lhe por entre os dedos. Heng sentiu seu corpo pendendo para trás e sua cabeça se chocou contra o chão de mármore com um estrondo alto.
A luz tocou suas pálpebras, ofuscando a visão e intensificando a dor de cabeça. À medida que suas pupilas se ajustavam, ele se viu deitado em um amplo pátio, sob o céu azul, com uma dúzia de lanças apontadas para seu peito.
Estava subjugado por uma dúzia de guardas com mantos alaranjados. Atrás deles, erguia-se um homem alto e magro, com olhos cruéis e uma densa barba negra. Seu gibão exibia as cores do céu poente e, bordado em seu peito, a estrela negra dos Stoneregis brilhava.
— Tylda... —ele murmurou.
O homem barbado soltou uma risada.
—Realmente, devo admirar sua valentia, rapaz! Percorreu todo esse caminho apenas para trazer minha sobrinha. Diga-me, o que você esperava conquistar com isso?
A cabeça de Heng pesava uma tonelada. Articular palavras era difícil.
— Tylda... é a herdeira...
— Sim, ela é. — Nebor disse impacientemente, dando um passo à frente para encarar Heng nos olhos. — Essa não foi minha pergunta. O que você, garoto, pretendia ganhar com isso?
Heng não tinha resposta. Sentiu os olhos marejarem e apenas balançou a cabeça. Quando Nebor Stoneregis percebeu o significado não dito, soltou uma gargalhada estrondosa.
— Jovens têm um defeito fatal. — ele disse. — Com suas cabecinhas repletas de delírios dignos de contos de fadas, vocês acreditam que basta devolver uma princesa ao seu castelo para que tudo se resolva. Não seja tolo, menino. Nós não estamos em uma canção. — Nebor sorriu maliciosamente. — Tylda certamente aprendeu essa lição.
— Tudo que nos cerca pertence a ela. — Heng disse, reunindo suas últimas forças. — Ela é a herdeira!
— Isso não significa que ela tinha algo a oferecer. — o duque reiterou. — Tylda trazia apenas a esperança de resistir a uma guerra que não podemos mais vencer. Ela não possuía poder próprio nem meios de fazer conquistas. Para merecer o poder, é preciso contar com ferramentas tangíveis, não apenas com sonhos.
Heng sentiu vontade de gritar.
— O que você fez com ela?!
— Transformei-a em um troféu para o meu imperador. — Nebor disse. O sorriso malicioso se insinuou em seus lábios. — Ele sim tem algo a oferecer. Minha filha se tornará sua esposa e, quando isso acontecer, terei de volta o prestígio que minha família perdeu com essa guerra tola.
Não, não teria. De alguma forma, Heng sabia que a casa Stoneregis terminava ali.
— Não! Você está destruindo sua própria família! — ele tentou alertar.
— Tudo que não merece viver deve morrer, garoto.
O timbre do lorde ressoou de maneira amplificada, como se várias vozes o acompanhassem. Seus olhos irradiavam um fulgor exótico e intemporal, quase como se pertencessem a uma essência desencarnada. Ele fez um gesto frio para os soldados e as lanças desceram de uma vez só, selando para sempre o destino de Heng.
A realidade desdobrou-se como uma cortina de fumaça. Heng sentiu a friagem em seus ossos, mas rapidamente percebeu que não estava morto. Se encontrava no meio de uma floresta densa, com árvores entrelaçadas e sombras que se movimentavam como coisas vivas. De modo custoso, ele se pôs sentado. A cabeça ainda doía, mas aquela não era a única sensação persistente. Ele não parecia mais um menino de quatorze anos em nenhum aspecto interno ou externo. De certa forma, tinha retornado ao tempo certo, mas todas as dores do passado tinham sido intensificadas.
Então a escuridão que o cercava chamou seu nome.
Assombrado, ele sentou-se de uma vez só. Diante dele, pairava um fantasma do passado, um espectro azulado que envergava a armadura e a face de Hector Varsuit.
— Heng! — a aparição estendeu os dedos para ele.
Sobressaltado, Heng recuou, tentando se distanciar da terrível visão. Até onde sabia, Hector Varsuit continuava vivo em Arindar, embora vitimado por uma terrível doença. Aquilo não podia ser um bom sinal.
— O exército é sua única esperança, garoto. — o fantasma disse. — A única chance que você e sua irmã têm de continuarem vivos.
Heng já tinha ouvido aquilo antes. O ultraje voltou a tomá-lo, exatamente como tinha feito na época do fato. Como ele poderia se juntar ao Imperador que tinha dizimado sua família?
Heng se colocou de pé. Por um segundo, o Supremo General do presente e o Supremo General do passado se encararam.
— Não! — Heng disse, antes de dar as costas e correr para longe, exatamente como ele tinha feito quando era apenas uma criança.
A floresta pareceu se contrair ao seu redor, como se as árvores tentassem aprisioná-lo. Os galhos se chocavam contra sua face e as raízes sob seus pés pareciam engrossar, como se conspirassem para derrubá-lo.. Heng continuou a correr, tentando se livrar dos obstáculos o máximo que podia. Seus pulmões começaram a doer, mas não era como se ele pudesse parar.
Um lamento infantil invadiu seus ouvidos, pairando como uma cortina de melancolia. Heng enterrou os calcanhares no solo, parando a corrida. Tinha reconhecido aquela voz de imediato.
— Nina! — ele gritou para as sombras.
Ninguém respondeu, mas o choro ficou mais alto. Estendeu os olhos para as copas das árvores, mas não havia nada além da escuridão. O choro parecia vir de todos os lados e, ao mesmo tempo, de lado nenhum. Heng girou sobre seu próprio centro, confuso. Onde estava sua irmã?
— Nina! — ele tornou a chamar. — Nina! Onde você está?
Movido por um novo senso de urgência, Heng voltou a correr. Primeiro, correu sem rumo, apenas gritando pela irmã. Depois, começou a vislumbrar a imagem translúcida de uma criança entre as árvores. Ela parecia ficar mais nítida à medida que ele se aproximava, mas desaparecia toda vez que ele chegava muito perto.
Nina simplesmente parou. Tinha chegado numa clareira banhada pela lua. Seu corpo se materializava em uma figura translúcida. Heng quase caiu em cima dela.
— Nina! — ele tornou a gritar.
Mas ela era apenas uma criança e já estava assustada. Tinha os pés descalços e usava a mesma roupa esfarrapada do dia que ele havia reencontrado com ela na casa de freiras para onde ela tinha sido levada depois da desolação de Pedra do Rei.
— Heng. — ela disse baixinho, coçando os grandes olhos azuis e úmidos. — Onde está a mamãe?
O general fez menção de estender os braços para ela, mas uma voz falou em suas costas.
— Nossos pais nos abandonaram!
Ele se virou para dar de cara com uma Nina já crescida, mas completamente diferente do que Heng conhecia. Era estranho vê-la sem as roupas caras que ela normalmente usava, mas o mais arrebatador não era as suas vestes de plebeia. Nina tinha uma raiva descomunal no olhar.
— Você devia ter se alistado no exército, Heng. — ela disse. — Veja o que sua escolha fez a nós! Não temos nada! Como pôde me deixar morrer de fome? Eu achei que você me amasse!
— Eu achei que você me amasse! — disse uma voz acima de Heng.
Quando ele olhou para cima, viu um corpo pendurado em um galho pelo pescoço. Metade já havia se decomposto, deixando antever ossos e a carne apodrecida recheada de vermes, mas a parte intacta tinha o rosto de Nina.
— Como pôde fazer isso comigo, irmão? A riqueza era o que eu mais queria e, ainda sim, você a rejeitou. Como pôde me deixar para morrer?
Heng não podia suportar a materialização da desgraça de sua irmã. Não podia aceitar ser o vetor da adversidade de Nina. Ele precisava assumir a responsabilidade, mesmo que isso implicasse ir contra seus princípios.
Heng gritou em desespero, mas suas palavras perderam-se na vastidão da floresta, dispersas como folhas ao vento. O brado pareceu afastar todas as aparições. Elas não existiam. Heng não ia deixar que elas existissem.
Decidido a aceitar o destino que se impunha, Heng correu entre as árvores, sentindo que cada passo ressoava como uma sentença inexorável. Medo, raiva e confusão entrelaçavam-se em sua mente, formando uma tempestade de emoções que obscurecia o caminho à frente.
Não são apenas minhas emoções, ele compreendeu subitamente. Estava verdadeiramente cercado por uma névoa densa, semelhante às brumas que levam os marinheiros à perdição no mar. Decidiu parar de correr. Não sabia ao certo onde estava, mas sentia que encontraria o antigo general ali.
Parou de correr. Embora não reconhecesse o lugar onde estava, sabia que poderia encontrar o general do passado ali.
— Hector! — ele gritou. — Apareça, seu maldito! Eu estou pronto para me juntar a você!
E então, mãos frias e úmidas emergiram da névoa, tocando sua carne desesperada. Heng se virou, pronto para se deparar com o fantasma do seu antigo mestre, mas não era Hector quem estava lá. Diante dele havia a mulher do seu sonho com a taverna. No entanto, ela parecia muito diferente do que ele lembrava. Embora ainda vestisse os mesmos trajes, suas vestes estavam sujas e seu corpo estava molhado da cabeça aos pés. Mesmo com olhos assustados e cabelos castanhos grudados no rosto, Heng concluiu que ela era a mulher mais bela que ele já havia visto.
— Heng! — ela disse. — Heng, por favor fale comigo!
As pequenas mãos dela, pousadas em seus braços, o sacudiram.
Sim, ela era real. Não parecia ser uma aparição destinada a perturbá-lo. Subitamente, Heng compreendeu. A escolha tinha sido feita muitos anos atrás e Pedra do Rei caíra muito antes disso. O passado era o que era e a culpa o acompanharia até a morte.
Apesar disso, enquanto a olhava, sentiu o alívio tomando seu corpo. Um nome se formou em seu coração e ele se percebeu de volta ao mundo real.
— Lana? — ele chamou.
Aliviada, Lana se lançou nos braços dele. Quando percebeu que o tinha apertado com muita força, se afastou dele com uma leve nuvem de vergonha pairando sobre sua face.
— Você é de verdade? —Heng perguntou.
— Você é? — ela retrucou.
Heng deu de ombros.
— Onde você estava? — ele perguntou.
— Encontrando a saída. — Lana respondeu, simplesmente.
— Onde...?
Lana estava decidida. A névoa parecia não perturbar seus sentidos.
— Por ali! — ela disse apontando para frente. — Mas há algo que precisamos fazer.
— O que é? — Heng perguntou.
Ela abriu a boca e tornou a fechá-la, como se pensasse. Então o fitou, muito decidida.
— Não olhe para trás. — Lana disse. — Em hipótese nenhuma. Se não, vamos ficar presos aqui para toda eternidade.
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