A Linha Paralela - II
Foto: Envato Elements.
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Porém, amanhecido o dia 13 de março de 2011 (dois meses depois de sua partida da Antártida), ao acordar, tomou um susto. Estava tudo diferente. Ele não estava mais em Taiaçupeba e sim no outrora apartamento do Ibirapuera. Ora, o que era aquilo? E estava mais jovem, sua esposa também. Buscou a filha, mas em vão: ela ainda não havia nascido! E como era bom rever Tito, o mais adorado de todos os gatos que tivera na vida, que veio ao seu encontro, ronronando, deslizando e esfregando os pelos suavemente por entre suas pernas. Odiava quando ele urinava nas coisas, mas era para marcar território, fazia parte de sua natureza, assim como fazia parte da natureza do delegado jamais se dar por vencido. Uma lágrima escorreu pelo rosto ao rever Tito; e uma chama sexual acendeu-se ao rever a esposa, 20 anos mais jovem, com ele próprio novamente com 45, sentindo que algo mais, entre as pernas, igualmente se mexia. A lágrima escorrida, contudo, não ficara sem destino, receptada pelo espesso bigode, que logo roçava os lábios da mulher, num doce beijo. Estaria sonhando?
Lembrou-se imediatamente da Bíblia: "Pedi e obtereis" e "Tenha fé do tamanho de um grão de mostarda e direis a esse monte: move-se daqui para acolá e ele mover-se-á". Sentia-se revigorado e mais surpreso ainda ficou ao ver a data na 'folhinha', pendurada na parede: 13 de março de 1990!
"Meu Deus, se não é o dia da morte de Felipe Torres? Então, sim, eu vou ter a chance de mudar o final da história? Contudo, mesmo na minha outra 'existência' temporal, eu não cheguei a ter o real conhecimento de quem fora o assassino, senão muito tempo depois, embora já sem qualquer poder para mudar o curso dos fatos. De qualquer modo... a solução estava errada, eu sei! Jorge Fontana se equivocou. Será que agora vou ter a chance de mudar isso? É o que parece. Então, tentarei ser, dessa vez, mais presente e mais intuitivo, menos pragmático acerca dos deveres da instituição, principalmente com o que querem ou me determinem os superiores, nem sempre movidos pela lisura. Mas espera lá! O crime só vai ocorrer entre 17 e 17h30. Quer dizer então, poderei até evitá-lo, é isso?"
Com o passar das horas, entretanto, Basílio ia-se esquecendo do futuro, melhor, daquilo que fora seu futuro na linha temporal primitiva (pois agora ele estava em uma linha temporal alternativa). Tendo voltado até ali, reiniciando a escrita daquele ponto em diante, apagavam-se paulatinamente a consciência dos fatos vindouros e primitivos, pois sua jornada seria reescrita daquela data à frente, preservados, pareciam-lhe, os fatos que já houvera antes. Causava-lhe angústia esquecer, porque não poderia, segundo almejara, utilizar-se do conhecimento adquirido no universo original. Que adiantava voltar ao começo, melhor dizendo, retroagir até um determinado ponto, para dali reconduzir o destino, sem poder controlar o que viria a seguir? Não daria na mesma? Felipe Torres morreria do mesmo jeito e, pior, ele poderia falhar, uma segunda vez, na solução do mistério.
"Meus Deus e se eu não conseguir de novo? Não! O Senhor não me fez vir (ou voltar) até aqui, para falhar mais uma vez. Não, dessa vez será diferente. E o preço deve ser esse: pude voltar, mas perderei paulatinamente a consciência do ocorrido no universo primário, do qual procedi, mas creio, o conhecimento de causa e a experiência ainda haverão de estar comigo, de alguma forma, acessíveis pelo inconsciente. Talvez seja o mesmo que os espíritas dizem acontecer a um Espírito reencarnante: ainda que ele não se lembre do passado, a intuição do conhecimento adquirido estará lá, para seu usufruto. A razão disso, segundo eles, reside no fato de que assim o Espírito age mais livremente em suas decisões, sem lembranças que poderiam atrapalhá-lo."
Enquanto ainda havia uma réstia de lembrança, Basílio arriscou uma abordagem mais etimológica e neologística, rabiscando algumas palavras em tom de teoria científica, que um dia sua filha, encontrando, leria, entenderia, mas jamais compreenderia. Assim registrou: "A palavra 'universo' vem do latim universum, da combinação de unus (um) e versus (transformado) — particípio passado do verbo vertere (transformar). Ou seja, literalmente, o termo 'universo' significa: 'transformado em um'. Questão proposta: 'O fenômeno bidimensional de cooptação, sofrido por mim, pode ser chamado de duoverso"?
Duoverso! Assim denominou o fenômeno no qual o universo 'primitivo' — 'original' ou 'primário', teria se transformado em dois, surgindo então um universo 'alternativo' — 'paralelo' ou 'secundário'. Por fim, para facilitar, preferiu simplesmente: universo e duoverso. Mas agora que ele estava no 'duoverso', o que teria acontecido ao 'universo'? Ainda subsistia? Ou teria deixado de existir? Tudo, enfim, acabava por representar um verdadeiro 'nó' em sua cabeça, cada vez maior, em decorrência do avanço iminente do esquecimento total.
Pensou, enquanto ainda era tempo, se não deveria escrever uma carta a si próprio, contando tudo aquilo, mas era certo que depois não acreditaria, dado ao seu habitual ceticismo. Mesmo assim, endereçou-se um bilhete, com os dizeres: "Não se esqueça do duoverso".
Mas se esqueceu! E quando já havia esquecido tudo e o releu, rasgou-o, dizendo: "Eu não me lembro nem o que comi ontem, como vou lembrar de algo que já nem sei por que não poderia esquecer? Duoverso? O que será que eu eu quis dizer com isso"?
E assim o futuro foi reescrito, melhor, foi escrito uma segunda vez. E Basílio deu-se bem e até melhor que antes. Curiosamente, pequenas de suas ações afetaram e alteraram igualmente circunstâncias de outros casos, sem grande relevância, mas a aventura antártica, dessa feita, acabou por se tornar mil vezes mais difícil do que havia sido em sua extinta e primária vida. Extinta? Ele não sabia dizer. E até já tinha se esquecido, que havia de se lembrar.
Uma coisa ainda mais importante e espetacular veio a acontecer: dado ao desfecho alternativo do caso Felipe Torres, Jorge Fontana e o sócio Bruno Pereira de Souza Lobo, que haviam morrido num acidente de helicóptero de propriedade de Nilo Romano, isso em 2001¹, acabaram por sobreviver e assim viveram para contar, eles próprios, outras histórias².
O que Basílio, porém, sequer suspeitava, é que em qualquer ponto de surgimento de um duoverso, um fenômeno colateral ocorre: o efeito 'doppler' (assim batizado em alusão à semelhança de uma pedra que se joga num lago). O que significa, de prático? Com a onda temporal propagando-se em todas as direções, isso também afeta o passado do duoverso — e quanto mais próximo estiver o objeto do 'ponto de cooptação do indivíduo', maior será o nível de afetação que o objeto sofrerá, sendo que a onda perderá força, à medida que se afastar do foco central ou origem. Foi assim, portanto, que sua volta reverberou igualmente (e também) até no passado do duoverso, afetando uma investigação anterior ao próprio dia 13 de março 1990 — a onda temporal alcançou o famoso caso Arautra, em 1988³, mas sem grandes modificações: uma vez mais, ao menos nesse início, Basílio continuava a não resolver o caso, o que era, de fato, algo curioso: o protagonista de uma história de detetives, não ter sucesso ao fim.
Com o fato, Basílio às vezes era pego de surpresa, relembrando um passado do universo, mas que a onda temporal havia modificado no duoverso, causando-lhe bons embaraços, porém, nada que não pudesse ser contornado, a não ser o fato de que sua data de casamento tinha sido ligeiramente alterada. Já pode o leitor imaginar, não é, o que aconteceu!
O fim (ou o começo)? *
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¹"Quatro Vezes o Inesperado ", 2002 (remake: 2022).
²"A Fonte Q ", 2023.
³"A Morte de Timóteo Arautra ", 1988.
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*Nota: No conto "O Velório", em "Sete Contos Policiais Inusitados (e uma poesia)", 2011, já havia um prenúncio deste 'reboot', como se intuído pelo autor (a história possuía dois finais, sendo um deles alternativo, em que Jorge e Bruno apareciam vivos).
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