
III
O cabriolé¹ saltava nos pequenos barrancos e tremia contra os pedregulhos insistentes daquele fim de tarde, a chuva forte cessou, dando lugar a uma queda d'água amena, mas nem por isso menos irritante. John tinha medo das rodas atolarem na lamaceira abaixo deles, do cavalo empacar de medo devido algum trovão ou da escuridão descer mais rápido no céu. A lanterna já estava acesa em frente a eles, iluminando quase nada, sacolejando junto aos trotes do animal e das pernas inquietas de Megan.
Em meio à chuva, ela esforçou-se para não prestar atenção em sua volta, no caos tempestuoso que se dava. Dois raios terríveis partiram no horizonte, brilhando incandescente em linhas elétricas que chegaram ao chão. Megan prendeu a respiração e encarou o homem ao lado, temerosa. Estavam em completo silêncio e já passava de vinte minutos na estrada de terra, nenhum dos dois tinha vontade de falar, mesmo que o ócio e espera interminável fossem tão ruins quanto começar uma conversa qualquer.
Campos e colinas. Áreas verde-musgo e lama. A charneca úmida alcançava até o horizonte e só havia o céu preto acima de tudo. Megan considerou que no pior dos casos, aquela paisagem deprimente era melhor que aguentar o cinzento eterno de Londres, o cheiro de excremento nas ruas, a disputa de espaço entre cavalos, pessoas e cabriolés. John havia ofertado a ela um assento confortável, pegou-a pela mão para erguê-la, sentou-se ao seu lado, os cobriu com uma manta. No entanto, mesmo protegida e cuidada, estava paralisada, infeliz e tremendo de frio – nem o casaco do homem, que ainda pesava em seu corpo, aliviava o terrível gélido.
– Achou que eu fosse uma criança, senhor? – Aquilo remoía seus ânimos aos poucos, pinicava suas pernas e destruía com sua racionalidade. – Não era minha intenção decepcioná-lo. – desculpou-se pela própria existência.
– Nunca tive paciência com crianças, de qualquer forma – disse ele, esquecendo da realidade anterior onde imaginou o momento em que iria ensinar a menina a ler e escrever, presenteá-la com bonecas de porcelana e diversas outras bobeiras sem fundamento – Richard deu a entender que era uma menina, pelas correspondências que trocamos.
– Sinto muito, não penso que Richard tenha feito propositalmente. – Megan contou após cobrir a boca para um espirro agudo, também queria dizer que seria muito mais difícil John aceitá-la caso soubesse sua idade, mas preferiu não ouvir a resposta dele quanto a isso.
Um sorriso curto apareceu nos lábios de John, tinha certeza de que o homem havia planejado tudo aquilo, desde a primeira carta. Ninguém em bom juízo aceitaria abrigar uma mulher desconhecida, com procedência duvidosa e parentalidade distante. Ainda pior seria seu próprio caso, onde além de todos esses pontos absurdos, havia o detalhe da aparência física e ausência de dote. Olhou-a de esguelha, Megan estaria perdida se acabasse jogada em Londres, com aquele rosto bonito e olhar ingênuo. Era horrível de se pensar.
– Não se preocupe, senhorita Bourgh.
– Obrigada. – Ela agradeceu sinceramente, até mesmo ajeitou-se no assento para conseguir aproximação, as pernas dela encostavam nas dele, separados pelas dúzias de tecido da saia. – Se não me aceitasse, eu não teria para onde ir. Eu o agradeço muito, senhor Windsor. Sempre lhe serei grata, não farei que se arrependa e nem que desgoste de mim. Ajudarei na sua casa e farei todas as tarefas que desejar. Posso limpar, cozinhar, tudo o que quiser.
Ele leu o desespero implícito nas entrelinhas.
– Me chame de John – pediu, ignorando todo o resto de seu discurso.
Megan apenas aquiesceu, obediente.
Mound Sharp. Os orbes verdes vidraram no longo caminho sinuoso marcado na terra, chegando em uma área plana imensa, sem árvores, apenas grama escura molhada. Após a fachada simplista e não-convidativa, erguia-se o casarão descomunal da família Windsor. Nunca pôs os olhos em construção tão excêntrica antes, por mais magnificência e grandiosidade que transpassasse, estar em sua presença lhe deu um calafrio estranho – como se a avisassem para ir para longe, sussurrassem em seu ouvido que seu fim jazia ali, naquelas terras.
Ao que tudo apontava, a construção de três andares era dividida em duas partes. Havia o bloco central, maior parte da casa, onde a entrada se dava por ela; enormes janelas retangulares com cantoneiras pretas entornavam a casa, algumas janelas redondas podiam ser encontradas no segundo piso, em locais estratégicos; na extrema esquerda, uma torre se erguia até acima do terceiro andar, afunilando em um telhado em cone, afiado como uma grande estaca. Megan não soube dizer por que se imaginou caindo direto do céu, parando naquele telhado suntuoso, empalada por ele.
Em sua fértil imaginação, até assistiu enquanto o sangue escorria para as telhas, deslizando lento como a chuva, o líquido que vinha das vísceras de uma Megan morta atingia a pintura cinza do casarão. Ela aguçou a visão e notou, desconfortável, que aquela casa havia sido da cor vinho inicialmente, um escarlate profundo que fora tampado por uma tinta cinzenta. Agora a coloração desbotava e a sombra rubra aparecia em certos lugares, parecia sangrar.
E de cada sombra vermelha existente ali, nenhum lugar parecia salientar tanto a decadência entre cores senão a ponte. Existia uma ponte que atravessava o segundo andar da casa principal para o segundo andar do restante da construção, era mantida por quatro pilastras que se derretiam em tinta rubra. A mulher resfolegou, impressionada. A ponte era fechada e curva, tinha janelas enfileiradas uma ao lado da outra, por toda a extensão. Embaixo dela, no gramado, arbustos altos foram plantados para esconder as pilastras e parte do muro da residência, deixando livre apenas o meio, de onde Megan pôde enxergar um extenso jardim traseiro ao longe.
– Bem-vinda a Mound Sharp². – John não parecia contente quando pulou do cabriolé, deu a volta por trás e lhe estendeu a mão.
Se fosse possível, a mão de Megan parecia ainda mais gelada por baixo da renda. Segurou com força a mão do primo, temendo que pudesse se estatelar no chão devido sua distração pela casa. Espirrou durante o salto e ele precisou segurá-la pela cintura para não escorregar, a chuva escorria por suas cabeças, interminável.
Preocupado com o provável resfriado que aquela moça já estava contraindo, John abriu o guarda-chuva assim que a soltou, os protegendo da torrente enquanto andavam juntos até a porta principal. O cocheiro que conduzia o cabriolé seguiu caminho para os fundos, desaparecendo de vista.
Adentraram na segurança do vestíbulo, as botas enlameadas e as vestes escorriam como se estivessem horas submersos em um lago. John fechou o guarda-chuva e o deixou em um suporte próprio, apressou-se para tirar o casaco molhado de cima de Megan, livrando-a daquele peso morto. Linda Evans apareceu um segundo depois, os olhos escuros arregalados em completo pavor.
– Pensei que não conseguiriam chegar! – A mulher era responsável pela cozinha, mas nos últimos tempos se debruçava em fazer todo o possível que estivesse em seu alcance. Era baixa e rechonchuda, muito mais apresentável e altiva que qualquer empregada que Megan havia conhecido em Londres. Aliás, mais apresentável e altiva do que ela própria. – Não era uma criança? – A preocupação de Linda mudou.
John umedeceu os lábios antes de suspirar, inclinou a cabeça em uma expressão conturbada, era como se dissesse: "Exatamente, não era uma criança?".
– Muito bem, minha querida. – Linda pegou o chapéu que Megan segurava e o guardou no chapeleiro. – O jantar no salão será cancelado, ela precisa tomar um banho antes que resfrie. O senhor também.
– Ela está espirrando. – John avisou. – Cuide dela, Linda. E depois leve o jantar nos aposentos dela.
Se dependesse dele, a nova inquilina comeria todas as refeições no quarto, atrasaria os jantares no salão para o resto da eternidade e se trancaria no escritório até o fim de seus dias. Mentiria se dissesse estar preparado para a reação de Bethany, tinha medo do que ela faria, principalmente da violência que poderia direcionar à moça, que não merecia aguentar qualquer fúria destinada a si.
A tarde estava no fim e Mound Sharp se entregava a escuridão, o interior do salão principal era envolto por nada além de sombras massivas, reflexos indistintos dos espelhos e o calor insuficiente da lareira central, as toras não ardiam em fogo, apenas brilhavam em brasas. Em uma breve despedida, John avisou Megan que teria com ela quando fosse possível, a mulher acenou e agradeceu mais uma vez, quase amedrontada enquanto era puxada pelas mãos por Linda. O homem assistiu enquanto ambas subiam as escadarias, até que se misturassem ao completo breu.
Megan não pôde ver, estava angustiada e ansiosa demais para se atentar, passou pelo salão sem prestar atenção em sua grandiosidade, nas silhuetas dos diversos móveis ou no brilho do lustre de dois metros de circunferência preso ao teto, sem quaisquer velas acopladas nele, inútil. John não enxergou a princípio, remoendo dentro si todas as questões insanas de sua existência, mas assustou-se com uma sombra móvel perto das cortinas, no extremo contrário à lareira.
Seu peito gelou, mas a coragem abalada voltou para a superfície em contato com a natureza de seus anseios, era Bethany imóvel no canto do salão, o corpo engessado vigiando o marido, encoberta pelas sombras que em breve se tornariam o completo preto do anoitecer. John manteve o olhar nela por algum tempo, suficiente para ela não pensar estar causando qualquer mal-estar a ele. Os olhos de Bethany Windsor brilharam em um fulgor tão nocivo que mesmo na penumbra, John sabia que era odiado de uma forma que nunca havia sido antes – e soube ler cada palavra implícita naquele aviso, cada uma delas:
Ela gostaria de matá-lo.
Nunca o deixaria em paz em toda a sua vida.
Abominava o momento em que o viu pela primeira vez.
E por último, aquela mulher que entrava em sua casa não era uma criança.
1 Cabriolé: Era o meio de transporte mais utilizado na época, ganhava da carruagem comum quando a distância da viagem era curta e precisava ser feita com rapidez. No dicionário fala que é uma carruagem pequena, leve e rápida, de duas rodas, capota móvel, e movida por apenas um cavalo.
2 Mound Sharp: É comum na Inglaterra dar nome às residências. A tradição veio da Era Medieval, onde se dava nome aos castelos, na maioria nomeados de acordo com o nome da família. Tempos depois, o costume voltou e as pessoas mais ricas passaram a dar nomes para as propriedades, como símbolo de status. "Mound Sharp" é o nome dado à residência de John, em tradução livre fica algo como "Monte Afiado". Escolhi esse nome porque a residência é de arquitetura gótica e tem torres com telhados pontudos.
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