Capítulo 1 - A lenda.
Foi entre lágrimas e gemidos que Diêval pôs suas mãos na cabeça em busca de algum pensamento lúcido que pudesse tirá-lo daquele lugar.
Seus pés descalços estavam dormentes, seu corpo cansado e exausto mal conseguia se mover. Gotas gélidas de água pingavam do alto da caverna e dividiam-se em minúsculas partículas ao chocar-se contra sua nuca, mas nada daquilo verdadeiramente o incomodava, apenas o fato de estar sendo roubado. A cada segundo podia sentir seus pensamentos serem sugados pelo COVIL. E ele é prisioneiro de si mesmo, ou da falta de sua própria essência.
Com muita dificuldade e dores extremas Diêval tentou lembrar-se de como foi parar naquele lugar. Aos poucos, conforme a dor em sua cabeça aumentava, sua visão passava lentamente a fazer sentido. Percebeu que estava descalço, seus pés doíam, suas roupas estavam rasgadas e embebidas do sangue que escorria do corte pequeno, porém profundo, em seu braço direito; agora tudo o que lhe cobria eram trapos. Reconheceu o lugar escuro e assustador, a caverna com corredores que jamais chegam ao fim. Gotas pingavam em sua cabeça e conforme seus sentidos voltavam aquilo começou a incomodar. Com dificuldade se levantou e meio cambaleando conseguiu andar. Depois de alguns passos notou que seus pés estavam úmidos, havia um pequeno riacho que acompanhava o corredor e chegava na altura de seus tornozelos. O visgo imundo trazia-lhe uma sensação estranha entre os dedos. Seus pés ardiam, sangravam, mas enquanto tentava inutilmente estancar o corte mais profundo não conseguia lembrar de como o mesmo havia surgido. Aquelas paredes eram tão traiçoeiras, o chão áspero como escamas de uma grande serpente... Como saber o que lhe feriu?
O barulho da água era a única coisa suave no lugar em comparação ao cheiro e temperatura. Era frio e tudo fedia. Fedia A sangue, a morte, e a medo.
Algo se contraiu dentro de sua cabeça trazendo-lhe uma insuportável dor. Mordeu os lábios para não gritar; mais sangue escorreu pelo novo corte. Mas em sua situação, independentemente do quanto doía, a única coisa que conseguia pensar era "Estou vivo!" Enquanto tentava fixar em sua mente já moribunda um plano de fugir dali.
Agora que sabia sua localização e em que deplorável estado ele se encontrava, juntou forças para conseguir suportar a dor e procurar lembranças em sua mente perdida. Lembrou-se de como acordou pela manhã: deitado ao lado de sua amada, o calor do corpo dela esquentando seu peito e seus carinhos despertando em seu corpo nu as melhores das sensações. Lembrou-se de abraçá-la e dizer em seu ouvido que a amava, lembrou-se do sorriso que arrancou dela e de como ele não se desfez com o beijo.
Eram boas lembranças. Vivas lembranças. Vida.
Neste momento um bramido de raiva, ódio, fúria e desespero ecoou pelo corredor, como se saísse das entranhas de um grande animal. Uma nova contração de dentro da cabeça de Diêval o fez torcer-se de dor. Lágrimas escorriam quentes pelo seu rosto, gemidos saíam de seus pulmões. Com um grande esforço Diêval retomou seus pensamentos e mergulhou mais uma vez em suas lembranças. Lembrou-se de estar partindo, de sua amada dizer "volte logo meu anjo". Pensar nela lhe fazia tão bem, e lhe trazia tanta dor. Por ela ele faria qualquer coisa, por ela valeria a pena lutar para voltar para casa. Mas como se seu próprio eu fora-lhe roubado?
Lembrou-se de se preparar para fazer trilha, de caminhar longas horas até a entrada daquele maldito lugar, de achar que sabia o que estava fazendo. O local era lindo. Ele planejava levar sua amada para ver o lindo jardim de flores coloridas e exuberantes e as altas árvores que marcavam a entrada daquela estranha caverna.
Lembrou-se de lendas contadas a beira da fogueira em noites frias, onde se falava de uma caverna amaldiçoada que servira de covil para antigos demônios que lutavam para roubar a essência que fora dada à principal criação de Deus: o homem. Demônios que se tornaram a própria alma da caverna e ficavam à espreita para roubar de homens perdidos a sua porção humana: Os pensamentos.
Lembrou-se de não se importar, de juntar coragem e boas razões, se aproximar, entrar, sentir a estranha presença de um ser nunca visto ou imaginado antes por ele, de ser jogado brutalmente para o interior da caverna e perder a consciência. Lembrou-se da vida. Lembrou-se da luz.
Em meio a todas aquelas lembranças e a dor que elas lhe causavam, Diêval juntou o resto de suas forças físicas e mentais para erguer-se do lamaçal e correr em direção a um ponto claro e distante que acreditava ser a luz do dia.
Mais um bramido pôde ser ouvido, o que levou Diêval a olhar para trás. Viu a imagem que tanto lhe fez temer ao entrar na caverna, uma sombra. Era algo como a própria noite, que apagava de uma vez todo vestígio de luz ao seu redor. Mais escura que a escuridão, mais tenebrosa que as trevas.
Sua cabeça latejava e a sensação de algo querendo sair trazia-lhe uma dor insuportável. Lutando com todas as forças ele correu em direção à luz. Percebeu a sombra se aproximando. Lágrimas, gemidos, dor. O corredor continuava com uma leve curva para a direita. Mais uma vez a dor, parecia que algo empurrava seu crânio de dentro para fora. Ele caiu. Quanto mais pensava mais doía. Quanto mais lembranças ele conseguia ter mais lágrimas. A sombra se aproximou ainda mais e levado pelo medo, Diêval encontrou forças para erguer-se e correr. Enquanto corria seus pensamentos levaram-lhe de volta para casa, sua mãe de costas para ele e de frente ao fogão à lenha, o cheiro da comida, as tigelas distriduídas na mesa de madeira. Foi quando ele viu: Corpos. Dezenas, centenas de corpos vivos — via-se pelo movimento dos pulmões —, largados de todas as formas, como se estivessem dormindo, imóveis, mas com olhos abertos que nunca se fechavam; um olhar distante e perdido. Corações batendo, pulmões respirando, sangue correndo pelas veias, mas sem vida, sem espírito.
A dor, a dor. Diêval caiu no chão e gritou, não suportava mais. Sangue escorreu de seus ouvidos e nariz enquanto teve suas últimas lembranças: Juliet prometendo-lhe amor eterno.
— Deeeus! — Foi sua última súplica.
Mais um bramido foi ouvido, mais alto, mais assustador... Foi a última coisa que ouviu quando a sombra se aproximou, lançou seu corpo ferozmente contra a parede da caverna e roubou-lhe por completo seus pensamentos, sua essência, seu ser.
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