* Sugestão musical para capítulo:
Mystery of Love - Sufjan Stevens

     O resto do almoço passou meio embaçado pra Marjorie. Ela mastigou a pizza sem sentir direito o gosto, respondeu às perguntas da Marylin com monossílabo e enquanto observava Brandon e Marylin planejando os detalhes do encontro, Marjorie sentiu um aperto no peito que ia além do desapontamento de sempre.

     Não era só a dor familiar de ver Brandon com outra garota, mas uma nova pontada, mais aguda e desconfortável. Ver a animação da Marylin, o sorriso fácil do Brandon direcionado à irmã, a naturalidade com que eles pareciam se encaixar… tudo isso ressaltava ainda mais a estranheza da sua própria situação. Ela ali, deslocada, no meio daquela cena de “felicidade” alheia, com um convite inesperado e enigmático pairando sobre sua cabeça.

     E ela também tentou, sem sucesso, decifrar a expressão indecifrável do David. Ele sentou do lado do Brandon, conversando animado sobre o encontro de sábado com a Marylin, como se aquele convite repentino pra Marjorie não fosse nada demais, um mero detalhe logístico.

     Só que para Marjorie, era tudo menos um detalhe. David Walker. Chamando ela pra sair. A mente dela repetia a frase como um mantra, tentando processar a informação. David era um enigma. Enigmático, sarcástico, e com um quê de perigoso que simultaneamente a intrigava e a deixava nervosa. Desde sempre que ela o via de relance pelos corredores, mas as interações deles se limitavam a trocas de olhares fugazes e uns acenos de cabeça protocolares de vez em quando. E agora, de repente, ele se propunha a passar um sábado inteiro na companhia dela? Era surreal.

     O sinal tocou, anunciando o fim do almoço e a volta pras aulas. Marjorie levantou meio que no automático, acompanhando Marylin pra aula de História, mas a cabeça dela continuava presa no refeitório, naqueles olhos azuis que tinham encarado ela com um brilho divertido e desafiador.

     — Marjorie, alô! Planeta Terra chamando! — Marylin estalou os dedos na frente do rosto dela, tirando-a de novo dos seus devaneios. — Cê tá muito desligada hoje! Pensando em quê? Já tá planejando o date com o David?

     Marjorie corou na hora.

     — Quê? Não! Claro que não! — protestou, mesmo que a imagem de um encontro com o David já começasse a brotar na imaginação dela, apesar dos protestos. — É só... esquisito, não é? O David? Me convidar?

     Marylin deu de ombros, relaxada.

     — Talvez ele só seja um cara legal. E o Brandon teve a ideia e ele entrou na onda. Para de neura. É só um filme, Marjorie.

     — Sim, só um filme — repetiu Marjorie, mas as palavras soavam sem vida. Sabia que não era "só um filme". Tinha alguma coisa a mais por trás daquele convite de repente, uma corrente por baixo d'água que ela não conseguia decifrar, mas que puxava ela pra dentro com uma força inexplicável.

     As aulas da tarde voaram. História, Literatura, Química – as palavras dos professores escorriam pelos ouvidos dela sem deixar rastro. A mente dela tava ocupada demais revisitando o momento do refeitório, analisando cada palavra do David, cada detalhe da expressão dele, tentando achar um padrão, uma explicação para o inexplicável.

     Quando finalmente o sinal da saída tocou, liberando os alunos pro merecido descanso do fim de semana, Marjorie sentiu um misto de alívio e apreensão. Alívio por se ver livre da tortura das aulas, apreensão pelo sábado que tava chegando, agora carregado de uma camada inesperada de complicação.

     Encontrou Marylin no portão da escola, animada como sempre.

     — E aí, fechou o cinema pra sábado? — perguntou Marylin, enquanto caminhavam pra casa. — Que filme vocês vão ver? Já decidiu com o David?

     Marjorie engoliu seco.

     — Ainda não... E, tipo, nem falei mais com ele depois do almoço.

     — Relaxa! — Marylin deu um encontrão de leve no ombro dela, rindo. — Liga pra ele hoje à noite e combinem tudo. Para de se preocupar tanto, Marjorie. É só um filme! E quem sabe, até pode ser divertido!

     "Divertido". A palavra ecoou na mente da Marjorie. Divertido era a última palavra que ela usaria pra descrever a ideia de sair com o David Walker. Intrigante, talvez. Desconcertante, com certeza. Aterrorizante, possivelmente. Mas divertido? Isso era uma incógnita.

     Chegaram em casa e encontraram aquela atmosfera calma e organizada de sempre. A casa parecia pairar num limbo silencioso, constantemente vazia, constantemente quieta. Marylin tentava preencher esse vazio com a alegria contagiante dela, mas todos sentiam o peso da ausência da mãe em cada canto, em cada cômodo silencioso.

     Subiu pro quarto, jogando a mochila em cima da cadeira e se jogando na cama. Pegou o celular, indecisa. Ela tinha o número do David. Em algum lugar perdido na imensidão da sua lista de contatos. Lembrava vagamente de ter trocado cartões com ele em algum evento escolar no início do ano, ou talvez tenha sido em alguma atividade extracurricular. Não importava como, o fato é que o número estava lá.

     E, de repente, aquele contato adormecido, quase esquecido, parecia piscar na tela do celular, chamando a sua atenção, quase como um sinal do destino. O número do David Walker. Ali. Ao alcance de um toque. E agora, de repente, a ligação não parecia mais tão... impensável. Ainda era assustador, sim. Mas também... inevitável? O que ela ia falar? Como começar a conversa? "Oi, David, aqui é a Marjorie, sua acompanhante de cinema de sábado?" Soava ridículo. Marjorie franziu a testa, pensativa.

     “Ligar pro David.” A frase pairava na tela, desafiando ela a clicar no ícone verde.

     Respirou fundo, tentando acalmar os nervos. "É só um filme, Marjorie. É só um filme", repetiu pra si mesma, as palavras da Marylin ecoando na mente. Mas mesmo enquanto repetia, sabia que era mentira.

     Não era só um filme. Era o começo de alguma coisa. De quê, exatamente, ainda era um mistério. Mas uma coisa era certa: a vida dela, até então previsível e rotineira, tinha acabado de tomar um rumo inesperado, guiada por um convite repentino e um par de olhos azuis indecifráveis.

     Com um último suspiro hesitante, Marjorie clicou no ícone verde. Era hora de ligar pro David Walker e descobrir o que o sábado, e talvez o futuro, reservava pra ela.