Capítulo 2 - O apanhador de sonhos
Evelyn aguardava o pai diante do cercado de ovelhas. Diferente do bebê do confuso sonho, ela já era uma jovem com mais de vinte anos e mantinha os mesmos olhos azuis de Mister Mustapha. Ela abraçou-o com tanta afeição, que o capuz vermelho que usava caiu, revelando os cabelos alaranjados como fogo.
— Parece que não me vê há anos — comentou Manuel, e correspondeu o abraço de forma desajeitada. — Todos os dias estou aqui, assim quebra meus ossos de tanto apertar.
Estranhou a atitude da filha, mesmo sendo tudo embaçado quando parava para refletir. As memórias dele com Evelyn eram todas cobertas por uma curiosa neblina, como se não tivesse acordado do sonho. Mustapha muitas horas parecia sério demais, imerso nas próprias dúvidas e pensamentos, esperando por algo que não sabia o que era. No entanto, o exterior sisudo escondia um homem brincalhão e afetuoso.
— O que o guarda real queria? — perguntou ela, após rir do comentário do pai.
— Minha visita ao castelo. Um encontro com o rei para decidir o futuro do reino. — Ele balançou os ombros e soprou o ar em um rir. — Talvez queira me pedir em casamento.
— Então, chegou a hora... — Ela entrelaçou o braço ao dele. — De alguém ir naquele lugar. Seguirei contigo até lá.
— Não precisa, Evelyn. Voltarei logo, eu acho — afirmou Manuel, incerto. Mesmo dizendo que não precisava de companhia, ele seguiu com a filha pela extensa área gramada até uma estrada de terra. De repente, era hora de ir. Nem mesmo reparou em que momento se passara um dia.
Podiam observar o castelo acima de uma colina; majestoso, com quatro altas torres perfurando as nuvens do céu nublado. As pedras cinzas e janelas não chegavam perto de serem ameaçadoras, comparando com a cúpula arredondada central que se assemelhava a um observatório de cobre.
— Alugaremos um cavalo quando chegarmos ao centro — sugeriu Evelyn. — É a melhor opção para subir aquela colina.
— Se me convocaram, não sei porquê não me mandaram uma carruagem. — Manuel bufou ao imaginar o caminho naquele vento frio que chegava ressecar-lhe os lábios. Ele mordiscou-os como uma mania para arrancar a fina pele, e resmungou baixo quando a casca se soltou de forma dolorida.
Não demoraram para chegar na área central de Dreamare. Algumas pessoas caminhavam pela rua principal, fazendo suas compras diárias na pequena feira. O aroma de legumes frescos e temperos variados tomava conta do ar, enquanto o som de um alaúde animava aqueles que ali estavam.
Manuel parou em uma barraca de maçãs, comprando duas com moedas de cobre, antes de seguir para a área de aluguel de cavalos com a filha. Uma mulher usando um longo vestido marrom anunciava o preço por hora de montaria, parada diante do estábulo ao final da rua. E, diferente do clima alegre dos outros, ela exibia uma expressão fechada e lábios curvados para baixo.
— Então, precisam de um transporte? — perguntou ela, sem muita simpatia, limpando as mãos sujas de feno no avental branco amarrado à saia do vestido.
— Queremos alugar um dos seus cavalos — respondeu Evelyn, com o final da fala marcado pelo som de uma generosa mordida que o pai deu na maçã. Ela ainda segurava uma das frutas.
— Por quanto tempo? — A mulher levantou uma sobrancelha, olhando-os de cima a baixo.
— Não temos certeza. — Manuel pronunciou-se, desprendeu o relógio de bolso do colete e estendeu-o para a mulher. — Mas pode ficar com meu relógio em troca de um tempo indeterminado. É de ouro.
— Pai, não precisa...— interveio Evelyn.
— Feito. — A mulher pegou o relógio, antes mesmo que Mustapha pudesse mudar de ideia e acenou com a cabeça para que eles a seguissem.
Caminharam pelo interior do grande estábulo, passando por cavalos de porte fino e que exibiam brilho no pelo e altivez no balançar da crina. Pararam diante do último animal, um pouco menor do que os outros apesar de adulto, com pelo caramelho e manchas brancas no focinho e patas. Manuel sorriu quando o cavalo aproximou-se e acariciou-lhe a cabeça perto da franja da crina.
— Ele parece digno para levar eu e Eve ao castelo. Não é garotão? — Ele falou animado, e mordeu novamente a maçã.
— Garotão? — A mulher pareceu ofendida, enquanto retirava o animal selado do pequeno espaço que estava.
— Estou falando com o cavalo.
Evelyn fez menção de rir, porém conteve-se.
Não demorou para que saíssem com o cavalo o qual Manuel nomeou Grumpy, já que a mulher que alugava disse que não se preocupava com essas coisas e que todos os animais se chamavam cavalo. Ele deu para o novo integrante da viagem o restante da maçã, e seguiram pela rua que se inclinava em um morro rumo à colina do castelo.
Depois de quase três horas, as duas únicas ruas do centro de Dreamare se tornaram riscos distantes e Manuel e Evelyn subiam a colina por um caminho sinuoso que contornava a área gramada. A inclinação da estrada de terra úmida aumentou, fazendo-os continuarem em um ritmo mais lento e cauteloso.
— Acho que Grumpy não vai chegar até lá com nós dois — concluiu Evelyn, e desceu antes que o pai contestasse. — Eu te encontro depois.
Por alguma razão, Manuel sentiu que era uma despedida, que demoraria para que ele visse a filha novamente. Ele buscou a mão dela, segurou-a com afeto e deixou que um pesado suspirar escapasse-lhe do peito.
— Eu sei que encontrará. — Ele esboçou um sereno sorriso e beijou-lhe o dorso da mão, seguindo caminho sem olhar para trás. Temia repensar a ideia de atender o chamado do rei.
Quando ele desceu de Grumpy e finalmente entrou no castelo, só tinha o amigo de quatro patas para acompanhá-lo. Os únicos dois guardas fecharam as portas gigantescas com um ruído cavernoso, engolindo lentamente toda iluminação solar que chegava naquele salão de entrada; o ferro grosso dos portões isolavam até mesmo os ruídos externos.
Manuel ficou parado no breu, diante da escada larga que anteriormente viu coberta por um tapete vermelho gasto. Ouvia apenas a própria respiração e os cascos do cavalo no piso ecoarem pelas paredes de pedra bruta.
Ele deu alguns passos receosos pelo piso de cerâmica trincada, até parar diante de um triângulo de luz sobre o primeiro degrau; possivelmente um buraco no teto alto, sustentado por duas colunas de mármore.
— Olá! — chamou Manuel, franzindo o cenho enquanto ajeitava o colete de linho azul. — Estou aqui para falar com o rei... O que quer que ele tenha para falar comigo.
— Que bom que veio, apesar de nesse ponto não ter mais escolha — respondeu uma voz, vinda de algum ponto o qual ele não conseguiu distinguir.
— Porque não se mostra? — perguntou Mustapha, buscando alguma dica naquele feixe de luz isolado.
— Estou além dos portais, além de onde está. O apanhador de sonhos poderá salvar esse lugar.
A porta do castelo abriu-se novamente, porém sem o auxílio de nenhum guarda. Um vento gelado invadiu o local, assim como folhas secas de outono que chegaram em redemoinhos pequenos e contornaram os pés de Manuel. A paisagem revelou-se uma densa floresta vermelha, tudo em uma paleta de cores saturada; não havia fogo para tanto laranja, amarelo e vermelho. O marrom perdia o destaque. Também não havia sol ou nuvens, apenas céu e árvores de troncos largos e amarelos com galhos que cruzavam em arcos. Ele virou-se para o novo cenário, ajeitando o casaco com a súbita queda de temperatura; algo estranho para um lugar que visualmente inspirava calor.
— Há sonhos em todas as portas, no mundo que foi antes do deles. Por trás de cada universo, de cada história. O outro mundo precisa arrumar a própria teia. — A voz contava, em um tom cantado, pausado, como uma cantiga de roda. — Organize a tecelagem e encontre o caminho de casa.
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