capítulo um
É difícil dizer quando uma amizade começa. Na maioria das vezes você descobre que tem algo em comum com outra pessoa e num passe de mágica percebe que está passando o Natal na casa dela. Outras vezes, o caminho da confiança é tortuoso e cheio de espinhos. Se tem algo que aprendi nos meus muitos anos de vida é que nenhuma amizade é igual a outra que e todas guardam uma história peculiar.
A que estou prestes a te contar é sobre a amizade mais poderosa e pura já registrada entre cinco pessoas. Tão fenomenal que senti a necessidade de escrever sobre ela, mesmo sabendo que eu poderia escrever sobre qualquer outra coisa ou até não escrever mais nada. Ninguém culpa os velhos que não fazem nada.
E, acredite ou não, essa amizade começou com um soco na cara.
Juliana e Maria conversavam no corredor do colégio onde estudavam. Falavam baixinho, como se não quisessem que os outros alunos ouvissem. Quando Gabriel tentou passar por elas sentiu a mão firme da Juliana segurando o seu peito:
— Gabriel, cara, nós precisamos conversar! Urgentemente! — ela disse.
— Uau! É a primeira vez que isso acontece desde a quinta série! — Gabriel provocou. E ele estava certo, apesar de se conhecerem desde crianças, os dois nunca foram muito de interagir.
— Não foi legal o que você fez com o garoto novo — ela disse, séria.
— Está falando da postagem?
— Do que mais seria?
— Relaxa! Foi só uma brincadeira!
— O cara nem é seu amigo! Que tipo de brincadeira é essa?
— Ele não conversa com ninguém! Talvez isso sirva para o cara quebrar o gelo e fazer novos amigos. Estou ajudando o rapaz! Você concorda comigo, Maria? — Completou virando o rosto para a menina baixinha de cabelos loiros que acompanhava a conversa sem falar nada.
— Aah... — Maria não era acostumada a opinar sobre as coisas e aquela situação a pegou desprevenida.
— Viu? Maria concorda comigo!
Juliana suspirou:
— Eu só estou dizendo para você não ficar arrumando confusão com um garoto que nem tem amigos na escola...
— Relaxa, Ju. O que ele pode fazer? — Disse rindo. — Por acaso vai me bater?
— SEU PLAYBOY DE MERDA!
O grito veio do outro lado do corredor, onde era possível enxergar um garoto de moletom e calça jeans andando a passos largos, com os punhos cerrados e olhos cheios de raiva. Era o garoto novo. E ele estava muito puto.
Antes que Gabriel conseguisse falar alguma coisa ou reagir, um soco atingiu o seu rosto com força o fazendo cair no chão na frente de dezenas de outros alunos. Foi a primeira vez que Maria via uma agressão de perto e aquilo fez o seu coração disparar.
— QUEM VOCÊ PENSA QUE É? — O garoto perguntou olhando para o chão onde o Gabriel se contorcia tentando entender a dor e o que acabara de acontecer.
Ok, agora acho que preciso contar a história por trás do soco e o que ele gerou. Mas, se você vai mesmo acompanhar estes jovens, saiba que terá que ler a história até o final. Afinal, estou prestes a te contar um segredo. O segredo do...
Milena mal completou 30 anos e já recebeu o trabalho mais chato da sua vida. Tornou-se conselheira pedagógica de alunos no colégio
um dos mais caros e prestigiados do Brasil. O trabalho de uma conselheira consiste basicamente em orientar e ajudar alunos problemáticos, com dificuldades de socialização ou que apenas querem alguém para conversar. Quando você tem uma função assim em um prédio cheio de adolescentes ricos sem muitos problemas na vida, é fácil ficar entediado.
Na maior parte do tempo, os únicos alunos que eram encaminhados a sala da Milena eram aqueles que foram pegos fumando maconha na quadra de futebol e não tinham muito o que dizer. O discurso antidrogas saía quase no automático enquanto Milena entregava um folheto do Proerd e pronto. Fim de mais um dia de trabalho sem emoção.
Isso começou a mudar na tarde em que Davi entrou na sala.
— Posso entrar? — Ele perguntou olhando no vão da porta entreaberta.
— Oi, Davi! Claro que pode! — Milena precisou esconder às pressas um Big Mac que estava comendo. Foi pega de surpresa.
Parte do trabalho de um conselheiro é saber de cabeça o nome do maior número de alunos possível, para criar uma conexão e um clima de confiança. Era relativamente fácil em um colégio tão exclusivo, com poucos matriculados, como era a Rubens Paiva.
Milena também lembrava de Davi por ser o único aluno bolsista. Nunca se enturmou muito bem, sempre andando pelos cantos com o seu headphone vermelho gigante. Também era um dos poucos negros do colégio.
— Sente-se, por favor! Em que posso te ajudar?
Ele parecia inseguro, relutante, como se pudesse sair correndo a qualquer momento. Sentou-se e começou a falar olhando para o chão.
— Eu ouvi que você pode ajudar alunos.
— Exatamente! É o meu trabalho.
— Mas... de que tipo de ajuda estamos falando?
Abri um sorriso.
— Qualquer coisa que estiver ao meu alcance.
— Hum... Acho que entendi. Bom... é que eu tenho um lance. É... — Vacilante, tirou a mochila das costas, abriu e tirou um caderno de lá. — Eu escrevo umas coisas desde criança. E eu meio que sempre quis ser escritor. Publicar as minhas coisas e tal... Não sei, talvez você pudesse me ajudar com... Sei lá, me mostrando com quem eu devo falar, dizendo se o texto está uma merda, me ajudando a entrar em contato com alguma editora. Eu meio que não sei nem por onde começar.
Milena pegou o caderno surrado e abriu. Na primeira folha era possível ler o título do livro: "Crônicas do Parque".
— Quer saber? — Ele continuou. — Desculpa te atrapalhar. Acho que você precisa ajudar a galera a passar no vestibular ou algo do tipo. Você não tem nada com a minha vida pessoal. Vou indo nessa!
— Não, não, não — estava determinada a não deixar um aluno interessante sumir assim. — Este é EXATAMENTE o tipo de coisa que eu deveria estar fazendo. Posso ficar com o seu caderno durante uns dias? Eu preciso ler o que você escreveu primeiro.
— Ah, sim, claro — ele respondeu. — Só não tenho certeza se é o tipo de coisa que você gosta de ler.
— Bom, só tem um jeito de saber.
E Milena gostou do que viu. Muito. Tanto que passou o final de semana inteiro vidrada nas páginas daquele caderno surrado. Leu quando o carro parou no sinal vermelho, leu quando foi ao banheiro, leu antes de dormir e leu mais um pouquinho depois de acordar. Foi uma pequena obsessão do final de semana. Leu tanto que a sua esposa ficou até enciumada, "o que esse caderno tem de tão importante que você não passou o dia inteiro sem nem conversar comigo?".
A conselheira enxergou naquele caderno mais do que um livro bom, era a oportunidade perfeita de efetivamente ajudar um aluno com algo nobre, bonito. O tema a animou tanto que virou comum passar a noite acordada pesquisando sobre como funciona o processo de seleção de livros pelas editoras, o que faz um agente, como funciona uma edição, quais eram as opções de carreira do garoto.
— Primeiro temos que digitalizar tudo que você tem escrito aqui — ela disse quando encontrou Davi na outra semana. — Depois, podemos começar a enviar o original para as editoras e torcer para uma aceitar a publicação.
— Entendi.. bom.. — Davi parecia envergonhado. — Eu não sei se vão me deixar usar os computadores da sala de informática da escola. Tem toda uma burocracia envolvida, eu preciso preencher até um formulário provando que só vou fazer atividades relacionadas à escola.
— Não tem como usar o seu computador pessoal?
Milena preferiu ter pensado um pouco antes de soltar a frase, pois a resposta de Davi foi desconcertante:
— Eu não tenho computador pessoal.
Você lembra que o título do livro de Davi era "Crônicas do Parque"? Bom, talvez devamos tirar um segundo para entender o que era o "Parque".
Depois da ponte, existia uma área completamente abandonada. Ninguém sabia exatamente a quem pertencia a região. Talvez fosse da prefeitura, talvez de um milionário cheio de terrenos pelo país que não prestava atenção neste. O fato é que estamos falando de uma região cheia com o mais completo nada.
Um dia, Manoel apareceu e construiu um barraco por lá, sem permissão alguma. Dias depois, a polícia estava na "porta" do seu barraco e o mandou sair de lá, pois o terreno não o pertencia e isso era verdade. Ele saiu.
Um ano depois, Joaquim fez o mesmo. Mas, por alguma razão, a prefeitura não se deu o trabalho dessa vez. Então, outra família fez o mesmo e levantou um barraco ao lado do de Joaquim. A notícia deve ter se espalhado, pois pouquíssimos dias depois diversas famílias estavam fazendo o mesmo, levantando barracos e até mesmo casas de verdade no terreno grátis. Quando as autoridades se deram conta, já existia um bairro com vielas, ruas, vizinhança, água e luz elétrica ilegal.
Ao invés de desapropriar todas aquelas pessoas, o que exigiria um esforço descomunal, a prefeitura conseguiu uma permissão legal para considerar a ocupação um (e essas foram as exatas palavras deles) "experimento social" e o reconheceu como uma espécie de sub-bairro batizado de Parque das Honduras.
Davi nasceu e cresceu no Parque. O seu livro é completamente inspirado em suas próprias experiências por lá.
Milena sorriu e disse:
— Você pode usar o meu computador.
— Sério?
— Claro! Eu não tenho a sala mais movimentada da escola, se ainda não percebeu. Não será problema algum.
— Ah, uau! Obrigado, então!
Eles estabeleceram um dia da semana e a rotina foi estabelecida. Toda segunda, Davi escrevia um pouco do seu livro e aproveitava para alterar trechos e melhorar frases. Muitas vezes, a própria Milena opinava no texto que, de fato, ficava melhor cada vez que era reescrito.
Foi o início de uma maré de sorte, pois outros casos interessantes apareceram na sala de Milena no mesmo período. Maria, uma menina que falava baixinho e queria ajuda para enfrentar a sua timidez e Juliana, que pediu orientação para ter uma conversa séria com os seus pais.
De uma hora para outra, Milena tinha três alunos com os quais ela se importava de verdade e eles se tornaram parte integral da sua rotina e pensamentos.
E ainda surgiu mais um.
Gabriel era um garoto de porte atlético, loiro dos olhos azuis e vivia cercado de amigos. Não parecia alguém buscaria a ajuda de Milena, mas bateu a sua porta segurando o seu boletim do bimestre.
— Hum, entendi — Milena tentava não parecer impressionada com todas aquelas notas vermelhas juntas. Parecia até que o papel foi escrito com sangue. — Então você está tendo problemas com notas?
— Sim, e não é de hoje — o garoto respondeu. — A minha mãe até me levou ao médico para saber se eu tinha algum déficit de atenção, mas está tudo bem comigo.
— Bom, existe mais de uma razão para um aluno ir mal na escola — ela disse. — Você tem algum palpite do que pode ser.
Gabriel suspirou e encarou a janela. Apesar de ser muito mais novo do que Milena, era visivelmente mais alto e robusto do que ela:
— Bom, acho que eu apenas não me INTERESSO pelas coisas que ensinam. Não me vejo usando nada disso na vida real, sabe?
— Sério? Nada?
— Nada! Eu nunca precisei encontrar uma hipotenusa na minha vida! E eu tenho calculadora no iphone, saca? Não preciso fazer cálculos no papel!
— Prossiga.
— Prossiga?
— Continue falando.
— Ah, sim... Então. E história? Todas aquelas já aconteceram, então não faz diferença nenhuma eu saber ou não!
— Gabriel, não é bem assim. Estudar o passado nos impede de cometer os mesmos erros no futuro. A história se repete.
— Então eu estudo história para saber que nunca devo assassinar um arquiduque? Eu não preciso disso! Nada do que ensinam aqui parece prático para as carreiras que eu vou seguir na vida adulta.
— Você já sabe o que fazer depois de formado?
— Sei. Vou ser jogador profissional de futebol.
— Entendi... Você tem algum plano B?
— Sim, virar jogador profissional de LOL!
Milena se esforçou para não parecer surpresa.
— Gabriel, acho que você precisa trabalhar a sua perspectiva de mundo. Enxergando pelas lentes certas, todas as matérias das escolas podem ser muito excitantes!
— Aceito qualquer coisa que ajude a melhorar as minhas notas! — Gabriel disse. — Se eu continuar assim, o meu pai vai me matar!
— Venha aqui uma vez por semana. Eu não posso te ensinar todas essas matérias, mas posso te ajudar a criar interesse por elas. Pode ser?
— Combinado!
E assim a sala de Milena tornou-se movimentada e cheia de vida pela primeira vez. Maria e Juliana apareciam regularmente e conversavam sobre o progresso da semana, Davi mostrava disciplina na construção do seu primeiro livro e Gabriel se esforçava para se interessar pela grade curricular alienígena para ele.
Em uma tarde, Davi saía da sala de Milena quando esbarrou em Gabriel que tentou entrar no mesmo segundo:
— Opa, desculpa, man — Davi disse.
— Ta tranquilo — Gabriel respondeu.
Davi saiu porta afora sem dizer mais nenhuma palavra:
— O garoto novo é quieto, né? — Gabriel disse a Milena.
— Um pouco, mas ele é um doce! — Milena respondeu. — Acabei de lembrar que trouxe uma coisa para você e esqueci no meu carro! Pode esperar um segundinho? Já volto!
— Espero.
Gabriel ficou mexendo no celular durante alguns minutos quando se entediou e começou a fuçar a sala. Contou vinte e seis livros na estante, será que alguém tem tempo para ler vinte e seis livros inteiros na vida? Nenhum deles falava sobre sexo. Abriu as gavetas, encontrou apenas canetas e papéis velhos. O computador estava ligado. Na tela aparecia o título "Crônicas do Parque - por Davi dos Santos".
O garoto novo? Ele era uma espécie de poeta? Gabriel não saberia explicar se lhe explicassem, mas ele achou aquilo muito engraçado, ao ponto de rir em voz alta na sala. Tão engraçado que resolveu logar em seu Facebook e fazer um post a respeito:
Gabriel Bragança
15 min
Galera, acho que temos o mais novo poeta do Brasil na nossa escola. Se liga no texto ~sensível~ que o @Davi dos Santos escreveu. BIAL, CHAMA ELE PARA O SEU PROGRAMA URGENTE:
E postou dois parágrafos inteiros do livro de Davi.
Quando Milena voltou, Gabriel já estava de volta ao seu lugar, como se nunca tivesse saído de lá.
— Isso aqui vai te ajudar — ela disse, mostrando uma série de CDs. — São alguns podcasts sobre a história do Brasil que eu gravei pra você.
— Hum, obrigado, mas... — Gabriel não queria parecer rude. — Mas eu não tenho onde tocar CD.
— Sério?
— Sério!
— Nem no seu notebook?
— Ele não tem entrada para CD.
— Meu Deus, eu não acredito que estou velha!
Aconteceu com o post de Gabriel o que acontece com qualquer post que tenta humilhar alguém: ganhou algumas centenas de likes e dezenas de compartilhamentos. O texto se espalhou logo e até os alunos que não sabiam quem era Davi souberam do texto.
Isso nos leva até a cena do soco na cara.
— SEU PLAYBOY DE MERDA!
O grito veio do outro lado do corredor, onde era possível enxergar um garoto de moletom e calça jeans andando a passos largos, com os punhos cerrados e olhos cheios de raiva. Era o garoto novo. E ele estava muito puto.
Antes que Gabriel conseguisse falar alguma coisa ou reagir, um soco atingiu o seu rosto com força o fazendo cair no chão na frente de dezenas de outros alunos. Foi a primeira vez que Maria via uma agressão de perto e aquilo fez o seu coração disparar.
— QUEM VOCÊ PENSA QUE É? — O garoto perguntou olhando para o chão onde o Gabriel se contorcia tentando entender a dor e o que acabara de acontecer. — Acha que pode fazer o que quiser? Que eu tenho medo de você? Se eu quiser eu quebro a sua cara e a do advogado do seu pai!
— Davi, não que eu ache que o Gabriel não mereceu o que recebeu — Juliana tentou apaziguar a situação. — Mas se você não parar agora o diretor pode aparecer e você pode se f...
Gabriel levantou e pulou em cima de Davi, tentando revidar o soco. A briga ficou feia com os dois se agarrando no chão.
— Ah meu Deus seus homo sapiens de merda! — Juliana exclamou. — Parem com isso!
Ela se colocou entre os dois e tentou separar a briga. Era difícil dizer quem estava brigando com quem naquele tumulto e logo um grupo de curiosos se formou em torno da bagunça. Não demorou para o diretor aparecer.
Davi e Gabriel petrificaram na posição em que estavam, com os punhos em riste. Eles foram pegos da pior maneira possível pela pior pessoa possível.
Eles sabiam que estavam fodidos.
— Eu quero os quatro na minha sala AGORA!
Maria não fez nada de errado, apenas estava próxima demais do tumulto. Mesmo assim, ela não teve coragem de abrir a boca para se justificar e acompanhou os outros jovens até a diretoria em completo silêncio.
Eles levaram um esporro homérico do diretor da escola que fez tudo para lembrá-los que estavam em uma instituição de respeito e que eles mancharam a sua imagem ao agirem como trogloditas.
Ninguém sentia mais medo do que Davi. Ele era o único ali que não rendia uma pequena fortuna ao colégio todos os anos e, pela sua lógica, era o que tinha mais chances de ser expulso. O garoto tentou não tremer tanto quanto Maria, que sentava ao seu lado e segurava o choro.
As coisas só pioraram quando Milena entrou na sala. Ela sempre foi o tipo de mulher que transmite uma calma contagiante, passando a impressão de que era incapaz de cometer atos de fúria. As aparências enganam. A orientadora estava com o rosto vermelho, andava de um lado para o outro sem parar e praticamente gritava com os encrenqueiros:
— Vocês sabiam que são praticamente OS QUATRO ÚNICOS ALUNOS que frequentam a minha sala regularmente? — Ela disse. — O quatro únicos! E logo vocês foram pegos brigando pelos corredores! Eu devo ser péssima, mesmo!
— Milena, desculpa, mas eu estava só tentando ajudar! — Juliana disse. — Estes dois é que estavam se atracando! — apontou para Davi e Gabriel.
— Ninguém pediu para você ajudar! — Davi retrucou.
— É isso aí! — Gabriel endossou. — Se não fosse você eu teria quebrado a cara desse moleque!
— O que você está falando? — Davi disse. — Você estava apanhando!
— Nisso eu sou obrigada a concordar com o Davi — Juliana disse. — Você tem quase dois metros, como é que pode brigar tão mal?
— Calados! — Milena interrompeu. — Eu não aguento ouvir a voz de vocês agora! Eu estou muito, muito, muito decepcionada! Eu não estou interessada em saber quais são as desavenças de vocês, o que importa é que terão a noite inteira para resolvê-la.
— O que você quer dizer com isso? — Juliana perguntou apreensiva.
— Os seus pais já estão avisados. Vão passar a noite em detenção, aqui na escola.
— Tipo... sem dormir? Sem comer? — Juliana franziu o cenho.
— Vocês terão o que comer e podem dormir, ou não dormir, não me importa. O que importa é que precisam saber que os seus atos possuem consequências!
— Vocês podem fazer isso? Tipo, por lei?
— Podemos e vamos te provar por oito horas seguidas.
Se você perguntar a qualquer um deles sobre a noite da detenção, todos irão te dizer que a pior parte, de longe, foi terem confiscado os seus celulares.
Os quatro permaneceram em silêncio por longos minutos que pareciam intermináveis naquela sala que não tinha nada mais do que quatro cadeiras. Ninguém sentia real vontade de interagir, mas o tédio os consumia de dentro para fora. A luz do luar entrava pela janela e não era possível ouvir mais nada além dos ocasionais passos dos guardas que cuidavam da escola durante a noite.
Gabriel foi o primeiro a ceder:
— Aaaa, isso é uma merda! — Exclamou antes de completar a primeira hora de detenção. — Seria melhor ter sido suspenso por três dias ou pagar uma multa!
Maria sentia como se perder aula fosse o pior dos castigos, mas preferiu manter-se calada.
— Cara, você é a última pessoa que pode reclamar aqui — Juliana disse, mal-humorada. — TODOS nós estamos aqui por SUA causa!
— Minha causa? Foi esse esquisitão que me deu um soco na cara!
— Eu te soquei porque você mereceu! — Davi falou. — Mano, eu nem SABIA quem você era antes de querer me zoar na internet! Que tipo de babaca você é?
— Você não sabia quem eu era porque é um pé-no-saco que não fala com NINGUÉM!
— Eu não sabia que precisava ser seu amiguinho para estudar aqui!
— Viu? É por isso que você não tem amigos! É o maior ignorante!
— Eu não preciso de amigo nenhum para quebrar a sua cadeira.
Davi levantou da cadeira e correu na direção de Gabriel que já tratou de levantar disposto a não ser pego desprevenido novamente.
— Vocês estão de sacanagem com a minha cara, né? — Juliana disse. — Estamos aqui por causa de uma briga estúpida e vocês vão gastar o tempo na detenção tendo brigas estúpidas?
Algo no seu tom de voz demonstrou autoridade o suficiente para fazer os dois rapazes se sentarem, tentando controlar a raiva.
O clima ainda estava pesado quando Maria abriu a boca pela primeira vez naquela noite:
— Eu gostei do texto — ela disse baixinho.
Davi quase levou um susto, ele não se lembrava que a garota quieta também estava lá. Demorou alguns segundos analisando a situação e se certificando que ela estava sendo sincera. Era o que parecia:
— Hum, obrigado — respondeu. — A Milena estava me ajudando a escrever o livro, mas agora duvido que ela ainda queira olhar na minha cara.
— Você quer publicar? — Juliana se intrometeu.
— Tipo, profissionalmente?
— Bom... — Davi esfregou os olhos. — Era essa a ideia.
— Para de drama, cara. — Gabriel resmungou. — Ela está brava, mas não vai parar de ajudar você por causa disso. A mulher realmente se importa com a gente. Acho que é a única na escola inteira que se importa de verdade.
— Isso é verdade! — Maria completou. — Eu não conseguia falar nas primeiras três consultas que eu tive com a Milena e ela não perdeu a paciência em nenhum momento. Continuou tentando conversar comigo até o dia em que me abri.
— Sentia falta de pessoas como ela por aqui — Juliana disse.
— Aliás, isso me lembra uma dúvida que eu tenho — Gabriel levantou-se e se aproximou de Juliana. — Que tipo de problema uma perfeitinha que nem você foi resolver na sala da Milena? Você guarda um segredo mortal e vergonhoso? Se tiver, eu não vou cansar até descobri.
— Olha, cara. O meu maior problema é ter curioso tentando tomar conta da minha vida. — que patada. — Fica na sua e acaba tudo bem.
Davi suspirou e olhou para o teto. Ele tinha certeza que os quatro acabariam se matando até o final da noite se continuassem naquele ritmo.
— Cadê o jantar que nos deixaram? — Perguntou na tentativa de mudar o foco da conversa.
— Está aqui — Maria levantou-se e foi até a mesinha onde era possível encontrar quatro pacotes marrons. Entregou na mão de cada um o lanche que era basicamente pão com presunto e queijo.
— Eu não vou aceitar comer essa miséria! — Gabriel disse. — Sempre escondem uns doces na Sala do Simão. Vou lá pegar alguns, quem vem comigo?
— Sala do Simão? — Davi já estava mastigando o seu lanche. Era horrível. — Quem é Simão?
— O Simão não existe — Juliana explicou, passando a mão nos cachos que caíram sobre seus olhos. — É só uma sala abandonada onde os alunos vão para se pegar.
— Não só isso! — Gabriel completou com certo orgulho na voz. — É um reduto da paz! A galera vai para lá sempre que precisa relaxar sem nenhum adulto enchendo o saco e tenho quase certeza que deixaram alguns chocolates por lá!
Eles tinham ordens claras de não saírem da sala durante a detenção e poderiam sofrer outro castigo caso fossem pegos. Ao mesmo tempo, nenhum deles queria comer pão velho e morrer de tédio a noite inteira. Gabriel ainda argumentou que havia grandes chances de encontrarem um videogame por lá. A única que se opôs a ideia foi Maria, completamente paralisada pelo medo. Ela só aceitou ir quando os outros três deixaram claro que ela ficaria sozinha se não fosse.
Eles andaram a passos de gato pelos corredores, espiando em cada esquina, torcendo para não darem de cara com os zeladores ou seguranças. Finalmente chegaram na Sala do Simão, onde era possível enxergar um bilhete na parede que dizia "O professor Simão deixou este lar para nós assim que foi convocado para lecionar Defesa Contra as Artes das Trevas na escola de magia e bruxaria de Hogwarts".
Havia um armário de ferro que Gabriel tentou abrir sem sucesso. Ela estava emperrada.
— Que foi? O atleta precisa de uma mãozinha? — Juliana provocou.
— Esse armário velho não quer abrir! Vem, me ajuda!
Os quatro puxaram a maçaneta e fizeram força ao mesmo tempo. Continuaram assim até que a porta abriu de uma vez e eles caíram no chão ao risos.
Foi como encontrar um baú do tesouro. O armário estava lotado de chocolate, salgadinhos, biscoitos e refrigerante.
— O único armário melhor do que o de Nárnia! — Davi brincou.
— E de quem é isso tudo? — Maria perguntou.
— Quem se importa? — Juliana já abriu um pacote tamanho gigante de Cheetos e se jogou no sofá coberto de poeira. — Ninguém sabe que estamos aqui!
— Um brinde, cambada! — Gabriel distribuiu uma garrafa de Coca-Cola Litros para cada um. Eles brindaram batendo uma pet na outra e beberam direto do gargalo.
Foi a primeira vez que esqueceram as suas desavenças e conversaram de verdade. Por horas. Contaram histórias e um pouco sobre a suas vidas. Não o escritor, o esportista, a perfeita e a tímida, mas apenas quatro jovens.
Eles ainda não sabiam, caro leitor, mas esse foi o início de uma amizade que não apagaria com o passar dos anos e nem com a chegada da vida adulta. O primeiro passo de algo forte e sólido, mas ainda tão mágico quanto Simão, o professor de Hogwarts. Eles ainda não sabiam, mas aquela foi a semente que resultaria no Clube dos Jovens Quebrados.
Também não havia como saber, mas horas depois Milena seria expulsa da escola. Não por culpa deles, mas por algo muito maior e mais grave. Algo que uniria aqueles quatro jovens ainda mais. Aliás, imagino que você tenha notado que no começo do texto eu disse que eram cinco amigos, não? Pois é, ele ainda vai aparecer.
Mas, não é hora de falar sobre isso. Estou cansado, não tenho mais tanta energia quanto antigamente, as juntas dos meus dedos estão doloridas e os primeiros raios de sol do dia começaram a bater na minha janela, indicando que passei tempo demais contando histórias, como sempre. Volte daqui alguns dias e leia mais um capítulo, combinado? Por enquanto, fique com essa lição: muita atenção em quem você soca na cara nos próximos dias, esse sujeito pode se tornar o seu novo melhor amigo.
***
Eu escrevo de graça para você, mas considero que os votos e comentários são o meu pagamento. Eles ajudam a aumentar a visibilidade da história dentro do Wattpad. Se você gostou do capítulo, por favor, deixe um voto e comentário.
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