capítulo treze
Tem uma ponte entre o Parque, o bairro onde Davi mora, e o resto da cidade. É uma ponte curta, mas larga. Passa dois ônibus ao mesmo tempo por lá e eles ainda dividem espaço com os pedestres. Já dizia o trecho do rap, "da ponte pra cá é diferente".
Enquanto Davi atravessava a ponte de ônibus Maria ligou cinco vezes. Lembrou tarde demais. Ele não atendeu, não queria ouvir a sua voz, especialmente porque a sua intuição dizia que a única coisa que faria Maria esquecer de um compromisso era aquele garoto estranho da festa. Aparentemente eles se deram bem. São do mesmo lado da ponte.
Davi chegou em casa e encontrou a sua mãe assistindo TV na sala. A cumprimentou com um beijo no rosto, como sempre fazia, mas notou algo de estranho nela.
— O que aconteceu, mãe? — Perguntou. — Você está doente de novo?
A mãe de Davi tinha uma saúde fraca, pegava resfriado a qualquer mudança de tempo e o estômago doía sempre que comia algo diferente.
Antes que ela pudesse responder, a porta do banheiro se abriu e saiu de lá um homem barrigudo, negro, com a barba por fazer, na casa dos cinquenta anos.
— E aí, moleque! — O homem abriu os braços pedindo por um abraço. — Estava com saudade do teu pai?
Davi não estava. O pai dele havia sumido há quatro anos e foram os únicos quatro anos de paz que Davi teve até então.
— O que você está fazendo aqui?
— Isso é jeito de receber o seu pai de volta?
— O que você está fazendo aqui? — Davi perguntou novamente de maneira mais incisiva.
— Bom comportamento, garoto — ele se larga no sofá ao lado da mãe de Davi — Sou um homem livre agora! Não devo nada a ninguém!
— A ninguém? Sério? — Davi disse. — Nem a nós?
— Davi, por favor... — A mãe resmungou tentando evitar atrito entre os dois homens da sala.
— Deixa o moleque, amor — o homem disse. — Ele só tá tentando ser birrento igual os amigos da escola de boy dele. Eu fiquei sabendo, viu? Você já se achava melhor que todo mundo do bairro, agora que está estudando em escola de playboy, deve estar insuportável.
Davi sabia que não deveria responder as provocações do seu pai ou tudo ficaria pior. Ao invé disso, dirigiu-se a sua mãe:
— Como você teve coragem de abrir a porta de casa para ele? — Exasperou-se. — Depois de tudo que ele fez!
— A casa também é dele, filho...
— Pelo amor de Deus, ELE BATEU EM VOCÊ!
— Ei! Olha o jeito que você fala com a sua mãe — o homem interviu. — O que aconteceu entre nós foi resolvido entre nós, como um casal. Você não tem nada a ver com isso.
— Eu vou para o meu quarto.
Davi já estava se retirando quando seu pai provocou:
— Deve estar se achando muito boy agora que tem um quarto só pra você.
Davi não aguentou e voltou.
— Eu tenho um quarto só para mim porque Marcelo, SEU FILHO, morreu com TIROS NAS COSTAS!
O homem se levantou com uma expressão séria.
— Pensa que eu não sei disso, moleque? Pensa que eu também não chorei? Você pelo menos teve a chance de ir ao enterro do seu irmão!
— Você não foi ao enterro do seu filho porque estava na cadeia! E a culpa disso é toda sua!
— Agora ta se achando melhor por nunca ter precisado vender droga na vida, moleque?
— Acho sim!
— Pois o santo do seu irmão também vendia! Se vai me julgar tem que julgar ele também!
Davi ficou quieto. Ele não sabia que o seu irmão estava vendendo drogas, mas tudo se encaixou na sua cabeça. Os tiros. A morte. Entendeu até porque o seu pai voltou. Ele fugiu quando devia ao fornecedor Adauto. Mas agora a dívida estava paga.
— Você sabe quem matou Marcelo? Manoel, você sabe quem matou o Marcelo?
— Não me chame de Manoel. Eu sou seu pai. Chame como tal.
— Manoel — Davi repetiu. — Você sabe quem matou Marcelo?
Manoel olhou para o chão pela primeira vez.
— Desconfio...
— Ele morreu para pagar a sua dívida. Filho da puta, ele morreu para pagar a porra DA SUA DÍVIDA!
— Ele sabia o que estava fazendo quando aceitou trabalhar nisso — Manoel disse. — Ele era um adulto e sabia que na função todo mundo corre risco. Marcelo não era um moleque como você!
Davi não segurou as lágrimas.
— Vai. Embora. Da. Minha. Casa.
Manoel deu um passo à frente e encarou o filho nos olhos.
— Essa casa é minha. Se quiser, vai embora você.
— Vai embora, Manoel. Volte pro bueiro de onde você saiu.
— Olhe em volte, moleque. Ainda estamos no bueiro. Você é tão rato quanto eu!
— Some daqui.
— Não.
— Vamos resolver isso lá fora então!
Manoel coçou a orelha direita e começou a rir. Uma risada seca, feita mais para intimidar do que qualquer outra coisa.
— O que é? Vai me bater agora?
Davi sentia como se fosse explodir a qualquer momento.
— Eu vou quebrar a sua cara e você vai aprender que não deve voltar aqui!
— Olha pra tu, moleque! — Manoel deu dois passos a frente, Davi não se moveu. Os dois ficaram tão próximos que os seus narizes quase se tocaram. — Tu tem físico de menina! Vai quebrar em dois segundos. Não pega bem ficar se fingindo de machão porque tu é favelado com cabeça de boy de apartamento.
— Vocês parem de besteira — a mãe de Davi se colocou entre os dois tentando acalmar a situação como se estivesse numa discussão de irmãos — Ninguém vai brigar nessa casa, ué. Davi, vai pro seu quarto que amanhã você acorda cedo e...
— Vamos resolver isso lá fora — Davi repetiu para o seu pai, ignorando a mãe baixinha entre os dois. — Vamos agora.
— Eu não quero bater em você, menino...
— VAMOS LÁ FORA! — O pouco de racionalidade que restava em Davi só dizia que não poderiam brigar dentro de casa e quebrar algo que a sua mãe trabalhou tanto para comprar. A briga deveria acontecer do lado de fora, na rua, onde ele poderia quebrar aquele bosta na porrada. — Você tá com medo? Vamos lá fora agora! VAMOS LÁ FORA!
Manoel não disse mais nada, contornou os dois e saiu porta afora. O desafio fora aceito.
A mãe de Davi tentou segurar o seu filho em vão. Era possível sentir o sangue bombeando no seu tímpano. Bum. Bum Bum. Não há justiça no mundo a não ser que você o faça com as próprias mãos. Gente como o Manoel continua bem a não ser que gente como o Davi suje as mãos.
— Moleque, você pode deixar isso quieto — Manoel disse. — Escuta a sua velha e vai para o seu quarto... eu esqueço disso se você esquecer também.
Davi não queria esquecer nada. E não conseguiria mesmo se quisesse. Sem pensar, partiu para cima do próprio pai. Colocou toda sua força no braço direito, mas Manoel conseguiu desviar do soco com facilidade. Mais um soco, mais uma esquiva. A frustração só deixava Davi mais bravo, o que comprometia a sua coordenação motora e tornava os desvios ainda mais fáceis.
Davi pulsou de raiva, tentando acertar Manoel. O seu pai fez um movimento rápido e acerta o nariz do garoto em cheio. O mundo girou. por pouco Davi não caiu no chão. Manoel estava acostumado a brigar na cadeia com gente muito pior que o seu filho mauricinho.
— Já chega, né? — Manoel disse.
— Eu ainda não acabei!
Davi correu com tudo para cima do seu pai e de novo não acertou soco algum. Manoel tentou segurá-lo com um mata leão, Davi sentiu o ar indo embora e reagiu com uma cotovelada no rosto do seu rival.
— Moleque!
Irritado, Manoel segurou Davi pelo pescoço e deu três socos fortes na altura do seu olho direito. O garoto caiu no chão, não conseguia mais abrir o olho.
— Manoel! Para com isso! — A mãe de Davi, que assistia tudo da porta de casa, interveio pela primeira vez ao ver o seu filho sujo de sangue e terra. — Chega!
— Foi o seu filho que aprontou isso! — Ele gritou. — Você não educou o moleque direito e ele virou esse mimado babaca!
A mãe abaixou a cabeça e não disse mais nada.
Manoel já estava voltando para dentro de casa quando ouviu um barulho atrás de si. Davi levantou novamente disposto a brigar.
Manoel gargalhou alto.
— Você é teimoso mesmo!
Ninguém tem o que merece a não ser que você faça por conta própria. Davi estava disposto a dar ao Manoel o que ele merece, mesmo que o seu corpo inteira grite por socorro. Avançou, tentou um soco, dois. Não acertou. Manoel aproveitou e desferiu um.
Dois.
Três golpes seguidos no seu nariz.
Davi volta para o chão.
— Por favor, eu estou implorando! — A mãe de Davi diz. — Vocês dois, parem com isso!
Manoel ficou esperando Davi levantar-se novamente. O garoto tentou, mas cambaleou e caiu novamente. O mundo continuava rodando. Ele perdeu a briga.
— Isso é culpa sua — Manoel disse para a esposa enquanto voltava para dentro de casa. — E não vá socorrer ele! O moleque tem que aprender a se virar sozinho.
— Davi... — a mãe disse, baixinho. — Entre, por favor.
Davi não queria voltar para casa, mas estava com o rosto inchado, coberto de sangue e não tinha para onde ir. Juntou energias para se levantar, caiu duas vezes no meio do trajeto. Passou direto pela sua mãe e foi para o quarto. Jogou-se na cama, sentindo o sangue quente descendo até o travesseiro.
Depois de uma hora ou duas a porta do quarto abre e a mãe de Davi aparece com um bife congelado na mão.
— Coloca isso no rosto — ela disse. — Vai ajudar a desinchar.
E sem dizer mais nada, apaga as luzes e vai embora.
Naquela noite, Davi ouviu os seus pais transando. As paredes eram finas demais. O telefone tocou mais uma vez. Era Maria. Ele não atendeu.
***
Por favor, deixe uma estrelinha e/ou um comentário. Isso é importante.
Nota do Sali
Escrever este capítulo foi MUITO pesado para mim. Então vou me resguardar e não comentar nada hoje.
MELHOR RESPOSTA
Toda semana faço uma pergunta no final do capítulo para vocês responderem. A melhor resposta aparece sempre no capítulo seguinte.
Essa foi a melhor resposta para: COM QUAL CELEBRIDADE VOCÊ SHIPPA QUAL MEMBRO DO CLUBE?
A pergunta do capítulo é: QUE CONSELHO VOCÊ DARIA PARA O SEU PAI OU MÃE?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro