Capítulo III: Chiaroscuro
Melhor encarar
E aprender com ela a caminhar
Não vou mais negar. Por todo caminho,
minha sombra está. Eu quero saber me querer
Com toda a beleza e abominação que há em mim
♦ "A Sombra", da Pitty
A CAMINHADA ATÉ o jardim fora silenciosa para os três, enquanto os olhares curiosos das outras crianças os acompanhavam. Sem sombra de dúvida, aquele era um casal peculiar na visão das pequenas órfãs, que viram todos os tipos de pessoas cruzarem o mesmo jardim; um pai e uma mãe, duas mães, dois pais, pessoas simples ou abastadas, negros, brancos ou asiáticos. Ainda assim, o casal Sanderson possuía algo mais. Não pela diferença de idade entre ambos, pois isso também não era difícil de ver no lugar — pelo contrário —, mas pela energia que emanavam. Algo altamente divergente que, ao mesmo tempo, afluía para algo em comum, como luz e sombra que não se mesclavam inteiramente, mas combinavam de uma forma extraordinária e exótica.
Clarice não sabia explicar como isso era possível, ou se era errado ou não, pois por mais incrível que parecesse, sentia-se bem entre Gabriel e Keira como se já os conhecesse há tempos. Até mesmo o silêncio que os acompanhava não era constrangedor, como acontecia frequentemente à presença das freias e outras crianças. O porte dele transmitia uma energia calorosa e amigável; convidativa como um abraço carinhoso. Já o da mulher era firme, um pouco severa talvez, mas repleta de uma proteção implícita voltada ao marido. Clarice conseguia notar essa cumplicidade entre os dois, que ultrapassava os laços matrimoniais como se fossem inseparáveis.
O jardim possuía uma mesa com três cadeiras, um pouco afastadas do local principal onde as crianças costumavam brincar, mas perto o suficiente para as freiras manterem os olhares atentos nas visitas, afinal, todo cuidado era pouco ao se tratar de estranhos. Ali, onde todos os visitantes do orfanato sentavam para conversar com a criança que mais lhes interessava, era conhecido por elas como a "mesinha das esperanças"; esperança para quem sentava em uma das cadeiras e desalento para as que tão-somente observavam. Um pouco cruel, de fato, mas na visão das freiras, isso servia para renovar as expectativas das outras órfãs, como uma mensagem para não desistirem de um futuro próspero ao lado de uma boa família. Infelizmente não era assim tão simples.
Os três se acomodaram, Gabriel com um pouco mais de dificuldade, e Clarice notou que Keira parecia alheia aos dois; olhava para a árvore onde a menina costumava ler seus livros, totalmente dispersa para o mundo ao seu redor e imersa nos próprios pensamentos. Nesse quesito, sentia-se semelhante à mulher, quando se perdia em divagações.
— Lindo lugar — comentou Gabriel, olhando em volta. — Umas reformas talvez pudessem vir a calhar. — Ele permaneceu pensativo por alguns segundos antes de suspirar e voltar seu olhar à menina. — Então, Clarice, conte-me um pouco mais sobre você. Possui muitas amigas aqui?
— Algumas. — "Meus livros contam?", pensou ela, dando de ombros.
Só então lembrou do que a irmã Marie Charity costumava falar sobre "dar de ombros"; que era falta de educação e precisava ser evitado a todo custo pelas menininhas educadas, mas Gabriel não pareceu notar ou, simplesmente, não se importou.
— Isso é muito bom — anuiu ele sorrindo, mas seus olhos diziam que não acreditara. — As amizades são tão essenciais em nossas vidas quanto a própria família, pelo simples fato de ser uma questão de escolha e não imposição. — Clarice assentiu, mesmo não sendo uma pergunta. — Quantos anos têm, pequena?
— Treze — respondeu, sem fazer questão de dizer que era o seu aniversário.
Gabriel abriu um sorriso melancólico por apenas alguns segundos antes de voltar à típica expressão amigável. Não parecia ser o tipo de homem que incentivava a dissimulação de sentimentos verdadeiros, mas que evitava demonstrar as próprias tristeza a fim de evitar magoar alguém, transferindo um pouco de sua angústia ao invés de mantê-la para si.
— Meus treze anos foram cheios de surpresas — comentou com certa amargura. —, mas me diga, sei que pode soar como uma pergunta estapafúrdia, contudo... você deseja muito sair daqui? Ter uma família?
Sim, aquela pergunta era muito estúpida para se dizer o mínimo, do tipo que Clarice responderia com uma boa dose de sarcasmo polvilhada com sua típica rabugice, mas não naquele caso. Entendia que Gabriel deveria ter um bom motivo para fazê-la e não queria soar mal-educada. Ainda assim, era claro que queria sair dali, não só para ter uma família, mas porque acreditava que se fosse embora, seus pesadelos ficariam para trás.
— Sim, muito — respondeu, enfim, secando o suor de suas mãos na saia.
— E para sermos uma família temos que confiar um no outro, correto? — Clarice assentiu, sentindo sua desconfiança aumentar. — Fale-me então sobre seus pesadelos constantes. — Aquele pedido deixou a menina surpresa e notando isso, Gabriel acrescentou. — Entendo que era para ser um segredo, mas a irmã Marie Charity, muito gentil, apenas comentou conosco por estar preocupada com você. Desculpe fazer essa perguntar parecer uma intromissão, mas também nos preocupamos.
— E por que a irmã Marie Charity iria comentar sobre os meus pesadelos com vocês? — perguntou Clarice, dando voz aos seus pensamentos. "E por que vocês se importariam comigo sem ao menos me conhecerem?" — Quero dizer, todo mundo tem pesadelos. As meninas do meu dormitório também têm sonhos ruins. — "Nenhuma já acordou gritando, é claro", mas eles não precisavam saber disso.
— Boa observação — reconheceu ele, olhando para a esposa, que ainda mantinha o olhar distante. — Minha querida Keira perguntou sobre você. Disse que a viu quando estávamos nos dirigindo à sala da irmã e que ficou interessada em saber quem era a mocinha de cabelos revoltos, abraçando um grosso livro de Jane Austen. — A menina enrubesceu, passando as mãos pelos cabelos enquanto encarava o próprio colo. — Não há motivo para se preocupar com sua aparência, minha cara. Meu filho... — Com essas duas palavras, Gabriel ganhou novamente a atenção de Clarice. — Ele tinha cabelos como os seus, em eterno desalinho, mas era parte de quem era. — O sorriso tristonho rondou os lábios do homem, que disfarçou bem melhor dessa vez. — Então, seus pesadelos...
O uso do tempo passado ao se referir ao filho não passou despercebido por Clarice, mas a menina achou melhor não perguntar nada, por enquanto. Se fosse o caso, teria outra oportunidade para sanar suas dúvidas, ao invés de assustá-los com muitas perguntas e acabar parecendo neurótica.
— Não são nada de mais — disse, evitando o contato visual com medo de que seu olhar a entregasse. — Apenas pesadelos.
— E eles parecem reais? — perguntou Keira, falando pela primeira vez. Sua voz aveludada era quase hipnotizante, incentivando-a a continuar.
— Sim, mas todos os pesadelos são assim, certo? — Keira olhou para Gabriel como se dissesse com o olhar que não acreditava em Clarice, nem que todos os pesadelos eram inofensivos com a menina desejava passar.
— E como são esses pesadelos? Caso não queira dividi-los conosco iremos compreender. — Mas o pedido da mulher parecia impossível de ser negado, ainda que a menina não quisesse reviver os momentos de pavor, ainda mais na frente de completos estranhos.
— Eu estou em uma casa... Minha casa, na verdade. — Seu desconforto era visível, mas Keira parecia mais preocupada com o que estava prestes a ouvir. — E tenho irmãos ou amigos, não sei. — Não pôde evitar olhar para a mulher e sentir os pelos da nuca arrepiarem. As semelhanças entre ela e a jovem de seus sonhos, ainda que separadas por alguns anos de idade, eram enormes para não serem comparadas. — E então coisas estranhas acontecem e estou sozinha na casa, sem ninguém para me ajudar ou... — Achou melhor evitar a parte sobre a voz maligna que a assombrava, temendo que os Sanderson fossem achar que estava lidando com uma criança louca. — Toda criança órfã deve ter esse tipo sonho.
E sendo posta para a adoção tão nova, não seria possível que se lembrasse de algo. Ainda assim, na sua frente estava sentada a pessoa que mais chegava perto de uma parente que, um dia, tivera.
— É claro — anuiu Gabriel, mas não houve sorriso compassível dessa vez. — Mas deixemos isso de lado por enquanto — Clarice sentiu como se um peso tivesse saído de suas costas, sem notar o tom de promessa no "por enquanto" do homem. — Conte-me mais sobre aquele belo exemplar de capa dura que estava segurando antes, bem, de nos conhecermos.
Os assuntos seguintes foram mais descontraídos; falaram sobre livros, filmes, música e mais livros. Assuntos que a menina só conseguia conversar com a irmã Marie Charity no seu dia a dia. Clarice até esqueceu, por um momento, o interrogatório sobre seus pesadelos quando Gabriel contou sobre a imensa biblioteca que possuía em casa e as histórias quase mirabolantes sobre as aventuras que tivera que enfrentar para adquirir certas obras raríssimas. Ele era um ótimo contador de histórias, fazendo expressões e modificando a voz de acordo com as situações, arrancando risos da menina ou expressões de surpresa com a forma como narrava e instigando-a a ouvir e descobrir cada vez mais sobre sua vida.
Keira começou a socializar um pouco mais, dando um sorriso tímido vez ou outra quando o marido pegava sua mão ou dizia alguma coisa engraçada. Porém, tudo pareceu supérfluo quando ela, finalmente, tirou os óculos escuros. Clarice não conseguia acreditar no que estava vendo, chegando a ignorar o que Gabriel dizia, ainda que seu coração tivesse certeza do que as lentes negras escondiam antes mesmo de mirá-los. Os olhos de Keira pareciam duas pedras ametistas. "É por isso que usa óculos". Olhos como aqueles chamariam a atenção da pessoa mais dispersa. Nunca conhecera alguém que possuísse íris com aquele matiz tão inumano. Nem sabia que era possível que pessoas tivessem olhos de tal tonalidade.
Clarice desviou o olhar, temendo ficar encantada por eles assim como ficara pela bela voz que Keira possuía. Se antes achava que a mulher era parecida com a menina dos seus sonhos, agora tinha certeza.
— Bem, temo que nossa hora de visitação tenha chegado ao fim — anunciou Gabriel sorrindo. Clarice virou e viu a irmã Marie Charity se aproximando. — Nos vemos em breve, Clarice. — Ele levantou e a menina poderia jurar que sua intenção era lhe dar um abraço, mas acabou retrocedendo no último instante.
A freira fez algumas perguntas corriqueiras, sendo simpática com os visitantes e garantindo à Clarice que tivera uma conversa séria com Tatiana. Enquanto isso, Keira comentou algo com o marido, ao pé do ouvido, e ele respondeu assentindo com seriedade. Ele se despediu com um aceno e puxou conversa com Marie Charity enquanto se afastavam. A Sra. Sanderson ficou para trás, encarando Clarice com certo desconforto e, sem dizer nada, aproximou-se da mesa, tirando algo de dentro do blazer e o colocando sobre a superfície; um aro adornado com uma intricada teia feita de linhas lilás grossas e penas negras lustrosas que, dependendo da posição sob a luz, apresentavam nuances verdes e azuis.
— O nome é apanhador de sonhos — explicou ela, sorrindo e colocando a mão sobre o ombro de Clarice. —, para ajudar com os seus pesadelos. Coloque-o na cabeceira da sua cama para que tenha uma noite tranquila de sono.
A mulher afastou alguns passos, mantendo os olhos fitos na jovem, desviando-os em direção ao carvalho. Por um instante, Clarice achou que ela podia enxergar todas as vezes em que se refugiara sob os galhos e folhas da árvore, fosse para ler ou passar o tempo. De certo via algo que mais ninguém conseguia com aqueles olhos espantosos. Keira abaixou o olhar para os próprios pés e um sorriso se formou em sua face antes de se virar.
— Feliz aniversário, Claire. — Apesar das vozes alteadas das crianças ao redor e do tom de voz baixo, a menina conseguira ouvi-la com clareza.
Dito isso, Keira adiantou seus passos até ficar ao lado do marido, enlaçando seu antebraço ao dele, enquanto uma Clarice boquiaberta encarava suas costas. "Marie Charity... Marie Charity contou", pensou, passando o espanto inicial, mas algo lhe dizia que essa explicação, aparentemente, plausível não era a correta.
Quando os dois sumiram pela porta do orfanato, como se tivesse recebido permissão, voltou sua atenção ao apanhador de sonhos sobre o livro de histórias da Jane Austen. Precisou sentar na cadeira mais uma vez, contemplando o objeto com claro interesse, mas incapaz de segurá-lo entre os dedos, como se fosse um artefato raro e delicado demais para suas mãos. Talvez se desfizesse quando o tocasse, virando poeira ou fumaça assim como em seus pesadelos.
Engoliu em seco, respirando fundo antes de pegá-lo. Era, de fato, delicado, mas não o suficiente para evanescer caso alguém mexesse em sua estrutura. A teia formada pelas linhas parecia ter sido obra de um artesão ou artesã de dedos ágeis e caráter perfeccionista. "Penas de corvo", pensou com admiração. Clarice voltou a olhar a porta do orfanato como se ainda fosse encontrá-los ali, observando-a, mas havia apenas as outras órfãs correndo de um lado ao outro. Apesar das coincidências que envolviam a visita do casal Sanderson, sentia que eles partiram deixando mais que um presente e dúvidas. Partiram deixando um toque de esperança.
Ao saírem do orfanato, após uma conversa extremamente esclarecedora com a irmã Marie Charity, Keira e Gabriel mal sentiam os seixos sob seus pés, mais que satisfeitos com o encontro que tiveram com Clarice. A mulher precisou ajudar o marido a entrar no carro, dada sua dificuldade de locomoção, e guardou a bengala no banco traseiro antes de assumir o volante. Apesar de tudo ter corrido bem, ela sentia toda a tensão, dúvida e melancolia pela qual o homem estava sentindo e passando. Mesmo que a adoção fosse ideia de ambos, sabia que certas memórias viriam à tona e que feridas quase cicatrizadas iriam sangrar mais uma vez.
Inclinado para frente, com os cotovelos sobre as coxas e o rosto escondido entre as mãos que começavam a enrugar, Keira pousou a mão em suas costas, tentando transmitir conforto. Odiava vê-lo sofrer sem poder fazer nada para mudar, a não ser através das palavras que tanto tinha dificuldade em proferir.
— Emmanuel, ficará tudo bem. — Ela era a única que costumava chamar Gabriel pelo segundo nome; a única que ele, de certa forma, permitia.
— E se estiver cometendo um erro? — perguntou ele, pegando para si toda a possível culpa por algo que ainda nem tinha feito.
— Eu teria falado se fosse o caso, mas não é. — Com os olhos marejados, Gabriel segurou a mão de Keira nas suas, sentindo uma energia encorajadora ser transmitida dela para ele e beijando seus dedos finos e delicados. — Podemos fazer dar certo e essa menina terá uma família — continuou ela.
— Estaremos colocando-a em perigo — contrapôs, encarando a esposa com um olhar injetado.
— Não, meu querido, estaremos protegendo-a — Keira tirou sua mão da dele, mantendo o semblante complacente, e deu partida no carro. —, pois em perigo ela já está.
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