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86º Capítulo - Lucy

Como fazê-los não perguntar? Só de pensar no enjoo, sentia-o com mais intensidade. Aquele cheiro de comida gordurosa invadia meus pulmões de forma dez vezes mais agressiva que quando cheguei aqui e isso só dificultava mais minha frágil situação.

Sentia as pernas moles como gelatina. O excesso de pessoas ao meu redor causava tonturas, mas eu tinha que parecer bem. Por mim. Por vovó e vovô. Por aquela velha lembrança.

Mordi o lábio quando chegamos a uma mesa vazia na praça de alimentação. Imediatamente larguei o corpo na cadeira mais próxima e fechei os olhos, implorando mentalmente para esquecer as sensações estranhas de meu organismo.

_ O que quer? – questionou Ícaro, encarando-me, enquanto levava as costas de uma das mãos à minha testa para verificar se estava com febre.

_ Água. – pedi. – E a comida menos gordurosa que encontrar.

Ele assentiu e virou-se para Clara que acomodava-se no acento à minha frente.

_ E você, filha?

_ O mesmo que trouxer para mamãe e um suco de maracujá. – respondeu.

_ Certo. Volto já. – dito isto, retirou-se.

Fechei os olhos novamente e respirei fundo. Em seguida, ignorando a forte tontura que invadia meu sistema nervoso – provavelmente devido a fraqueza que sentia -, ergui as pálpebras e encarei a roda-gigante posicionada bem atrás de Clara.

_ Dá para imaginar que, na primeira vez que visitei este lugar, era mais nova que você? – murmurei. Minha filha sorriu. – Sua bisavó me trouxe aqui para esfriar a cabeça e esquecer os problemas. Estava magoada com Ícaro, enfurecida com ele na verdade, e ainda era próxima a... – de repente, me dei conta e impedi o nome de sair de minha boca.

_ A...? – insistiu Clara, franzindo a testa.

Baixei os olhos e fiz que não com a cabeça.

_ A Jake? – murmurou.

Minha filha era esperta.

Assenti.

_ A batalha estava longe de acontecer, ainda nem conhecia a sede da Luz e mal tinha conhecimento da história por completo. Foi um dia maravilhoso, tirando a visita inesperada que recebemos depois do passeio nos arredores da floresta e... – subitamente, uma lembrança há tempos soterrada invadiu minha memória e me fez arrepiar. – E antes também.

_ O quê? Visita? – indagou minha filha.

_ Que visita? – perguntou Ícaro, chegando à mesa com comida tombando dos braços.

_ Mamãe está contando da primeira vez que veio aqui e lembrou de visitas inesperadas que receberam na casa da bisa nesse dia.

_ Visitas inesperadas? – repetiu meu marido, entregando-me um cachorro-quente.

_ Isso foi o menos gorduroso que encontrou? – perguntei, sentindo o estômago embrulhar.

_ Estamos em um parque de diversões, querida. O que esperava que eu trouxesse? Salada?

Fiz uma careta, mas mordi o alimento mesmo assim. A fome estava me matando. O enjoo que se controlasse sozinho. Com certeza a tontura era pior.

Mastiguei lentamente e, depois de engolir, continuei:

_ Não foram "visitas" propriamente ditas. Aparições? Não há uma palavra que defina bem o que aconteceu no dia ao voltarmos para casa. É só que Andrew estava observando nossa casa às bordas da floresta, e foi visto por vovô.

_ Ah! Disso eu sabia. Você me contou quando já éramos casados. – lembrou Ícaro, abocanhando seu cachorro-quente em seguida. Assenti.

Clara franziu a testa.

_ E antes?

_ O quê? – engoli em seco.

_ Antes de saírem de casa. Você disse que recebeu uma visita antes também.

Meu marido parou de mastigar e me encarou, pasmo. Desviei os olhos, sendo agradecida pelo sopro de uma brisa fresca surgida de repente. A tontura dera uma trégua.

_ Nem lembrava deste fato. Voltou-me a mente apenas hoje, porque fiquei repassando aquele dia na memória. – expliquei. – Na época, decidi soterrar o ocorrido em minha mente, apenas para não estragar o dia que nos esperava aqui, neste mesmo parque.

_ Mas o que aconteceu? – perguntou minha filha, curiosa.

_ Lembro-me de ter esquecido os ingressos em meu quarto. Voltei sozinha para busca-los e acabei vendo um vulto pulando a janela para sair de meu quarto.

Ícaro arregalou os olhos e largou o cachorro-quente na mesa.

_ Lucy, você não contou isso a seus avós?

_ Na época não me parecia importante o suficiente para estragar meu dia!

_ Lucy, um estranho! Em seu quarto!

Clara se encolheu à minha frente.

_ Fique quieto, Ícaro. Não havia ninguém para me alertar do perigo iminente, se bem me recordo. – acusei, também largando meu alimento.

_ O quê? Eu bem que tentei alertá-la do perigo, mas você me deu ouvidos? – ele ficou em silêncio por alguns instantes, aguardando uma resposta, mas não a dei. – Claro que não! Fez drama como em tantas outras vezes. Lembra-se disso? Ou se recorda apenas que te "abandonei"? – enfatizou a última palavra sinalizando aspas com os dedos ao lado da cabeça.

_ Drama? Pelo que me lembro, Ícaro, não fui eu quem escondi toda a verdade de minha protegida e deixei-a nas mãos de Jake, o perigo iminente que provavelmente visitava meu quarto naquele dia sabe-se Deus para que e... – de repente, algo me interrompeu.

Clara subitamente postou-se de pé e começou a caminhar, afastando-se da mesa com a cabeça baixa e as mãos cobrindo os olhos. Encarei meu marido e encontrei suas íris cor de céu mais tempestuosas que nunca, marejadas por lágrimas que ele se forçava bravamente a segurar.

_ Agora diga que fui um péssimo guardião. – murmurou ele, levantando-se para ir atrás de nossa filha.

Empurrei a cadeira com as pernas, tentando ficar rapidamente de pé para segui-los, mas acabei derrubando-a bruscamente, chamando a atenção de diversas pessoas.

Desajeitada, abaixei para levantá-la, mas tão rápido quanto pude erguer as costas novamente, uma terrível pontada arrebatou-me o estômago e eu arquejei.

_ Aaaaaaargh! – urrei, deixando o corpo cair rumo ao chão.

Ícaro e Clara voltaram-se para trás assustados. Depois disso, não enxerguei mais nada. Simplesmente apaguei.

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