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68º Capítulo - Clara

2 horas e 37 minutos se passaram desde o momento em que mamãe deixou meu quarto. Na verdade, para ser mais exata, 2 horas, 37 minutos e 42 segundos. Pouco? Mas este tempo parece se multiplicar mais e mais, tornando-se uma eternidade alucinante, aumentando ainda mais meu sofrimento.

Cada lágrima que escorria por meu rosto era como uma faca cravada em meu peito. Minha alma estava oca e meus pensamentos só conseguiam piorar as coisas, fazendo-me relembrar cada palavra dita por minha mãe, desde Dylan até Jake.

_ Tio... - sussurrei para mim mesma em voz alta. - Jake... Meu tio...

Aqueles termos não pareciam combinar juntos. Soavam como "céu verde"... Não pode! Não tinha como acontecer... Não...

_ Não acredito. - murmurei, focalizando as próprias mãos.

O colchão abaixo de mim parecia querer sugar meu corpo, o fraco brilho do sol que irradiava da janela incomodava meus olhos úmidos e inchados, a brisa fresca que brincava com as cortinas me fazia arrepiar... E as lágrimas continuavam a correr. O que faria agora?

Ergui os olhos e observei a parede. Minha mente estava alheia a tudo aquilo. Para que viver?

Provoquei a morte de duas pessoas, sendo que uma terceira morreu pensando em mim. Duas partiram bem à minha frente e uma delas se foi por meio de minhas próprias mãos. Quem eu mais amei... Fechei os olhos.

Flashes de memória.

"_ Clara, nãããão... - berrou alguém do qual não reconheci a voz.

A espada tocou-lhe a pele e afundou inevitavelmente..."

Levei as mãos à cabeça e as pressionei.

_ Clara, para! - ordenei. - Para de se torturar!

"Uma lâmina ressoou ao entrar em contato com o chão. Mas não minha lâmina... A de Jake. A minha estava cravada em suas costas..."

_ Para, para, para! - implorei a meu subconsciente, apertando os olhos.

"Ainda com as mãos no punho da arma, puxei-a de volta..."

_ Aaaaaargh! - praguejei. - Chega! Para!

Pus-me de pé e comecei a caminhar em círculos pelo quarto. Graças a Deus a máquina anteriormente ligada com fios a meu braço já havia sido desativada e levada embora dali. Ao menos estava livre para me movimentar.

"_ Eu te amo... – sussurrou em tom quase inaudível."

_ Por que me torturar assim? – exclamei ao vento. – Por quê?

"Seus lábios tocaram os meus..."

_ POR QUÊ? – gritei.

"Seu peito parou de se mover..."

_ PARAAAAAAA! – urrei.

"Observei seu rosto inanimado e os olhos fechados, agora para sempre..."

_ NÃÃÃÃÃO!!

_ Clara? – a porta se abriu num estrondo, cessando minha loucura. Abri os olhos que sequer tinha notado que estavam fechados.

Meu corpo todo enrijeceu e eu cambaleei, ameaçando desabar. Tia Ana encarava-me, pasma.

_ Eu não quero mais lembrar... – choraminguei. – Não quero mais!

Completamente cega pelo véu do sofrimento, girei o corpo rapidamente, voltando-me para a parede mais próxima. Sem dó nem piedade, desferi o soco mais forte que pude, mal pensando nas consequências. Em seguida, lancei-me na cama e berrei:

_ QUE DROGA!

As lágrimas não paravam um instante sequer e ardiam ao escorrer por meu rosto.

Minha tia, antes parada em estado de choque ainda na porta, chacoalhou a cabeça e caminhou em minha direção, acomodando-se sentada a meu lado, puxando a carcaça do que restava de mim para seu colo.

_ Ah, meu amor... – sussurrou ela, acariciando meu rosto e segurando a mão que havia esmurrado a parede.

Meus dedos latejavam e uma estranha vermelhidão se espalhava por meu braço. A dor era terrível, mas resumia-se a nada se comparada ao estado de minha alma.

_ Dói tanto, tia... – murmurei, mordendo os lábios. – E não estou falando da mão.

Algo gelado vindo de cima tocou meu rosto quente. Franzi a testa e ergui os olhos.

_ Eu sei... – sussurrou a mulher, apertando os olhos a fim de segurar as lágrimas que começavam a escorrer. Engoli em seco.

_ Tia... – comecei, mas ela me interrompeu.

_ Vim aqui para esclarecer uma coisa, não vou incomodá-la por muito tempo.

Um arrepio percorreu meu corpo. Na verdade, eu queria ser "incomodada" por ela, e por muito tempo. Ficar sozinha daria liberdade a minha mente para lembrar...

_ É sobre Aurora... – sussurrou tia Ana.

Não perdi tempo e me sentei. Enrijeci os músculos e encarei-a, incentivando suas palavras. Sua pele estava pálida e enormes olheiras se insinuavam abaixo de seus belos olhos castanhos. Por quanto tempo ela havia chorado?

_ Eu e Aurora somos... Éramos... – sua expressão demonstrava dor. – Bem, sempre seremos irmãs.

Um calafrio escalou minha espinha lentamente. Baixei a cabeça e meneei-a, pensativa.

_ Ah! Eu sabia... – cochichei a mim mesma.

_ O que disse?

_ Disse que já sabia. – repeti, focando seu rosto. – No dia da batalha, notei a forma como tratavam uma a outra.

Mais flashes de memória.

"_ D-desculpe, Clara... – sua voz soava mais que fraca. Era quase como um suspiro sofrido."

Chacoalhei a cabeça.

"_ Perdão por tudo... Tudo o que fiz você passar... Por favor..."

_ Droga! – exclamei, irritada por conta das lembranças que se insinuavam novamente por minha mente, ainda que contra a minha vontade.

"_ Poupe suas forças, Aurora. Está tudo bem."

_ Clara? – chamou tia Ana, tentando inutilmente me trazer de volta à realidade.

"_ Gostava quando me chamava de tia... Sempre sonhei em ter sobrinhos, mas Ana..."

_ Clara, está tudo bem?

_ "Sempre sonhei em ter sobrinhos, mas Ana..." – repeti meus pensamentos em voz alta, focalizando o olhar novamente, saindo do transe provocado pelas memórias que, impiedosamente, bombardeavam-me. – Tia Aurora disse isso aquele dia... Sobrinhos... Ela queria sobrinhos, mas você...

_ Sim. – assentiu a mulher, esquivando-se do assunto, cortando minhas palavras.

_ Mas por quê? – questionei, estreitando os olhos.

_ Por que o quê? – murmurou confusa, ficando de pé e caminhando rumo à janela.

_ Por que escondiam o fato de serem irmãs? – expliquei.

Os cabelos castanhos de minha tia esvoaçavam com a brisa fresca da tarde que invadia meu quarto. Os fracos raios de sol tocavam sua pele e iluminavam seu rosto, fazendo brilhar cada lágrima que escorria.

Ainda meio de costas para mim, ela começou a esclarecer tudo:

_ Para ser líder, Aurora precisava ser justa, ou seja, tratar a todos de forma igual. Caso eu viesse a me destacar em algo, minha irmã tinha medo de que a explicação que os demais dariam para tal sucesso seria nosso parentesco. – ela suspirou. – Nunca precisei ouvir frases como "só porque é irmã da líder" ou "com você eu não posso mexer, tem a irmã que protege". Era justamente isso que Aurora queria evitar... Sendo assim, sempre fui tratada de forma igual aos outros e nunca tive privilégio algum. Se acabei me destacando na cozinha foi por mérito próprio, e se cheguei onde estou, foi sem ajudas especiais. Minha irmã queria isso...

_ E ela conseguiu... – murmurei, com um nó na garganta.

_ Mas o fantasma de nosso segredo jamais nos deixou em paz... – continuou ela. – Sempre senti como se enganasse a todos.

_ E mesmo assim não contava a ninguém? – exclamei. – Mesmo incomodada?

Nesse instante, tia Ana voltou-se para mim. Mesmo estando distante, pude ver a dor em seu olhar.

_ Aurora sempre foi como uma mãe para mim. Ficamos sozinhas no mundo desde muito novas e... Na verdade, - interrompeu-se. – nossa história parece muito com a de Ícaro e Jake, mas éramos mais novas quando chegamos à Luz.

_ O quê? – exclamei, sentindo a pulsação acelerar.

_ Quando eram crianças, seu pai e Jake também ficaram sozinhos e vieram para a Luz. Seu tio trouxe Ícaro, na verdade... Assim como Aurora trouxe a mim. Ainda que fosse nova na época, consigo me lembrar da chegada dos dois. Foram muito bem acolhidos e...

Apertei os olhos e senti várias lágrimas escorrendo em sequência. Parei de ouvir a voz de minha tia. Apenas uma coisa ressoava em minha mente: "Seu tio trouxe Ícaro, na verdade"... "Seu tio"... Meu tio.

Arrepios iam e vinham por meu corpo. O mundo perdia a cor cada vez mais e meus olhos fechavam lentamente.

Minha respiração era entrecortada. Mais flashes...

"Jake segurava sua espada a milímetros do peito de meu pai."

Coloquei as mãos na cabeça e pressionei-a. Estava ficando tonta.

"Tomei minha lâmina nas mãos e comecei a correr."

_ Tia? – chamei com voz urgente.

"Segurei a espada em punho, aproximando-me cada vez mais."

_ Sim? – perguntou ela.

_ Eu... – comecei, mas perdi a voz.

Abri os olhos e encontrei o mundo girando feito carrossel. Suspirei a tempo de sentir o corpo pesando e despencando rumo ao chão.

Em um segundo, apaguei. 

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