O sussurro do Oceano
"Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente."
Oceano Nox, Antero de Quental
Capítulo 6 – O Sussurro do Oceano
Eric caminhou pela enseada, sentindo a areia ainda molhada pela forte chuva em seus pés. O tempo estava frio e esfregou as mãos nuas uma na outra tentando se aquecer. Notou que haviam poucas casas perto da praia e a maioria, como a que estava, ficava no alto. A casa de Max era uma das poucas edificações perto de onde estava. Era uma construção antiga e sólida, podia a ver ao longe, assim como o forte e o farol.
Assim, longe do porto e sua agitação, tudo mais naquele lado da ilha parecia silencioso.
Depois de arrumar seus poucos pertences na casa, havia tentando consertar sua máquina, mas temia que pudesse ter sido danificada além dessa possibilidade. Iria então falar com Max, para ver a possibilidade de a mandar ao continente, afinal, ela era uma raridade e muito preciosa em seu coração para a perder assim. Essa máquina havia sido um presente de Marina, um dos últimos que havia recebido da sua irmã.
A possibilidade de ver Ariel novamente era também um grande fator no motivo da visita. Por isso, ao ver a cabeça vermelha correndo para o farol pela segunda vez naquele dia, desviou de seu caminho.
O chamou, mas ele já havia sumido dentro da edificação. Não viu mal em o seguir.
Todo o lugar possuía um cheiro de umidade e maresia. Sabia que tanto ele como o forte estavam desativados há algum tempo, por isso não imaginava o que o adolescente poderia estar fazendo ali. Subiu as escadas de pedra estreitas, seguindo um som, que quanto mais se aproximava, mas se tornava nítido. Era música, daquelas que se tocava em rádios antigas. Franziu a testa, parando nos degraus mais altos e colocando a cabeça pela entrada da alcova que se abria no ponto mais alto do farol. No teto, a luz desativada permanecia empoeirada, enquanto todo o restante ao redor parecia ter sido atingido pela chuva vinda da abertura em direção ao mar.
Eric parou aturdido ao ver nas paredes prateleiras como no quarto de Ariel, todas lotadas de quinquilharias, pequenos tesouros, assim como mapas pregados, páginas de livros, fotografias recortadas de revistas, que, pelo o que podia ver dali, eram de vários lugares do mundo. Havia mais algumas coisas no chão, mas pareciam recém organizadas. Imaginou que estivessem ali antes da chuva, por essa razão muita coisa parecia ensopada.
Entrou silencioso na alcova, ficando parado na porta ao ver a fonte da música, agora mais alta: Era um rádio de estação, de madeira, parecendo bem antigo. Ariel estava de olhos fechados, no centro da alcova, movimentando-se ao som da música. E não havia nada de seu jeito desajeitado naquele momento.
Bem ao contrário, ele movia-se graciosamente, um pequeno sorriso no rosto. Havia removido o casaco e o agasalho, estando apenas com jeans e uma camisa que apesar de longa, parecia fina. Ainda assim, ele não aparentava estar com frio, enquanto Eric, mesmo empacotado estava tremendo com a umidade do lugar.
Os pés dele se moviam suavemente pelo chão, descalços na pedra encharcada, as mãos se moviam como se tocasse um instrumento invisível.
Quando o rosto dele, ainda de olhos fechados virou em sua direção, pôde ver que a boca dele se movimentava, como se tentasse cantar com o corpo as palavras que suas cordas vocais não podiam produzir.
Era fascinante de se ver.
Tanto que Eric apenas notou que havia sido pego no flagra quando o corpo parou. Ergueu os olhos que estavam fixos no movimento dos pés de Ariel e fitou o rosto aturdido do garoto. Primeiro viu surpresa e então o rosto dele ficou da cor do cabelo vermelho, os olhos se abriram espantados, ainda mais ridiculamente grandes, a boca aberta de forma horrorizada.
Eric riu e o garoto virou de costas, as mãos no rosto.
"Desculpe por espiar você." Falou ainda com diversão na voz. "Mas isso foi muito...interessante."
Fascinante. Lindo de se ver.
A cabeça do outro o olhou por cima do ombro e novamente viu aquele narizinho franzido. Ele pensava que estava sendo caçoado.
"Sério." Colocou as mãos em defesa de frente ao corpo. "Nunca vi nada igual. E esse lugar..." Mudou de assunto, notando que o outro estava prestes a expulsá-lo dali se não fizesse nada. "É bem fascinante."
Ariel virou hesitante, o rosto ainda encabulado, mas já sorrindo de forma tão aberta que desviou os olhos. Algo no sorriso dele o deixava aturdido.
Seus olhos foram para as imagens na parede, confirmando que eram, de fato, recortes de jornais e revistas, sobre outros lugares do mundo. Alguns desgastados, mas nenhum parecia ter sido destruído pela chuva. Logo notou que isso se devia a posição em que foram colocados. Ariel devia ter perdido alguns antes de ter essa ideia. Parou ao sentir o garoto atrás de si, silencioso. Estavam de frente a um mapa do mundo. Haviam vários pontos marcados com alfinetes, algumas coisas escritas em cada um deles.
"São os lugares que você quer ir." Assumiu, olhando por cima do ombro. Ariel assentiu, também olhando o mapa.
Vários países estavam marcados,
e ao lado deles sempre havia algumas observação como "Neve", "Sakuras", "Muralha". Nome de lugares, coisas a se ver. Parou ao ver que havia um alfinete em Londres agora, assim como em outros lugares da Inglaterra. E apenas uma coisa escrita.
"Casa do Eric."
Sorriu ao ler isso, sentindo uma estranha satisfação no peito. Seu pensamento foi interrompido por uma mão gelada em seu braço. Sobressaltou-se de leve, vendo Ariel remover sua mão com um pedido de desculpas nos olhos. Nunca havia sentido um toque tão gelado, nem mesmo em pacientes sofrendo de hipotermia e no entanto Ariel parecia bem, segurando um livro na mão, o oferecendo. Pegou-o e viu que era um livro sobre libras Australiana.
"Ah sim." Sorriu. Ariel o olhava com expectativa. "Eu prometi, não foi?"
Folheou o livro, desviando os olhos do rosto de Ariel propositalmente. Nunca havia se deparado com alguém que pudesse manter um olhar tão fixo. Era desconcertante.
"No entanto eu sei apenas a britânica." Ouviu um som baixo de decepção e o olhou depressa. No mesmo momento acrescentou. "Mas eu posso ensiná-la a você, assim quando for a Inglaterra, saberá se comunicar. Nesse meio tempo aprendo a australiana, a aprendemos juntos. O que acha disso?"
Mal havia terminado e sentiu os braços de Ariel ao redor do seu peito. Ouviu um som que o deixou surpreso, ainda mais que o abraço: Uma risada. De Ariel.
Seus olhos ficaram arregalados pela surpresa. Não só pela inocência do gesto, de Ariel abraçar praticamente um estranho assim, apenas por ele lhe oferecer algo que lhe pareceu tão pequeno. Mas também porque aquela risada – musical, clara, encantadora – indicava ser cada vez menor a possibilidade de haver um real problema nas cordas vocais dele.
Deixou isso para depois, uma mão sua indo ao cabelo vermelho, o tocando e vendo o quanto estava desalinhado pelo vento e pela maresia.
"Ah."
Os braços de Ariel eram gelados. Tão gelados que seus dentes estavam quase batendo quando ele finalmente se afastou. Encontrou o caleidoscópio de cores o fitando com aquela mesma felicidade e expectativa.
Ariel virou, pegando uma manta de dentro de um baú e a estendendo na parte do chão seco na alcova.
" Se vamos ficar aqui mesmo, se agasalhe." Ariel estava gelado demais. Era preocupante e estranho que o garoto não percebesse isso. Ele pareceu contrariado, mas pegou o casaco mesmo assim, o vestindo e sentando na manta. Eric o seguiu, sentando recostado na parede. Ariel não parecia incomodado ao se aproximar para ver também o livro aberto em sua perna.
"Você ainda está gelado." Tirou o próprio cachecol verde e o colocou ao redor do pescoço do garoto, que o olhou confuso pelo gesto.
Eric também ficou surpreso, mas naquele ponto já havia feito isso tantas vezes com a irmã que devia ser uma segunda natureza querer cuidar de outras pessoas.
Eric fitou o rosto pálido e sardento o fitando de perto sem pudor e notou como a cor do seu cachecol fazia com que os olhos que o encaravam ficassem ainda mais misteriosos. A expressão do garoto suavizou e Eric
desviou os olhos novamente. Era estranho, havia algo estranho em Ariel.
"Tudo bem, Ariel. Vamos começar."
.............................
Max ouviu os passos conhecidos e o barulho da porta se abrindo. Olhou o relógio. Já era perto do anoitecer. Ariel havia passado praticamente o dia inteiro no farol.
Os passos se aproximaram e a cabeça vermelha despontou pelo alçapão no sótão, onde Max lia sentado na poltrona.
O menino sorriu e havia algo diferente no sorriso de Ariel. Algo que não conseguiu entender de todo, pois seu filho já se aproximava se aninhando ao seu lado antes que pudesse o observar melhor. Riu baixo. Não importava o quanto crescesse, Ariel nunca perdia essa mania.
Acariciou os cabelos vermelhos desalinhados, ouvindo um som baixo e contente. Tão logo os segundos passaram, percebeu o quanto a pele dele estava gelada.
"Parece que terei que te levar para nadar hoje, hn?"
Era um momento ruim. Com tantas pessoas na ilha, turistas. Mas era necessário. Havia aprendido da pior forma que Ariel precisava da água do mar, ou ele perderia calor rapidamente. Segundo as anotações de seu avô, os seres da espécie dele necessitavam desse contato ou morreriam.
Ariel precisava do mar, mas ao mesmo tempo o mar também era seu maior inimigo. Havia algo lá embaixo que queria machucá-lo. Que tentara machucá-lo mais de uma vez. Por isso também temia tanto que ele nadasse sozinho além do recife. Não só pela estranha reação do tempo, que tinha certeza que não era coincidência, mas pelas vezes que outras coisas estranhas aconteceram.
Certa vez, quando ele ainda era criança, se não estivesse lá ele teria sido arrastado. Algo havia agarrado Ariel enquanto nadavam juntos e o arrastado para o fundo. Por pouco o recuperou.
A cauda de Ariel, que sempre aparecia em contato com o mar, sangrava sem parar quando o removeu da água. O que quer que tenha feito aquilo, queria machucá-lo. Quando ele o secara, suas pernas estavam feridas também, com arranhões feios que infectaram facilmente. Max havia ficado tão assustado, que o proibiu de entrar no mar. Foi quando descobriu que isso poderia matá-lo, quase matara Ariel sem se dar conta.
Por isso ninguém poderia culpá-lo por ser cuidadoso.
Ariel suspirou, parecendo cansado demais. Aquilo era estranho. Geralmente eram dias sem o mar que o faziam ficar gelado naquele ponto. E se aquela tempestade significava algo, não havia sido mais de um dia que ele havia entrado no mar.
Estava ficando mais rápido. Muito rápido.
E Max tinha medo do que aquilo significava.
..................
Ver a verdadeira forma de Ariel, mesmo depois de todos aqueles anos, nunca deixava de fascinar Max. Nem mesmo se importava com a água gelada, já acostumado com aquele ritual dos dois. Segurava o corpo de Ariel nos braços, em contato com a água e no mesmo instante sentiu o calor vindo dele.
Estavam no lado mais afastado da ilha, que ninguém ia, todos temiam a área devido à lendas estranhas sobre os primeiros povos dali. A única luz que os iluminava era tênue, da lua quase toda recoberta àquela noite. Ficava agradecido por isso.
Mesmo que não visse claramente, ele sabia o que estava acontecendo, por já ter presenciado tantas vezes. As pernas virando uma cauda verde, agora longa e forte. As guelras que nasciam atrás dos ouvidos. As escamas que cresciam nos antebraços, formando uma estrutura como nadadeiras, mas que também já havia pensado que poderia ser um método de defesa da espécie. Eram afiadas, quando Ariel as queria assim. Já provara, por acidente, do que elas eram capazes.
Ariel escapou de seus braços e o soltou, sentindo o movimento da água ao redor. Apesar do frio, riu da animação dele.
De repente a água iluminou-se, como se vaga-lumes piscassem abaixo da superfície. Isso queria dizer que ele estava mesmo muito feliz. Max olhou para baixo, vendo a cauda verde em razão da nova luz. Sabia que parte das lendas nos últimos anos eram por conta disso, mas não conseguia pedir para Ariel parar, não vendo-o tão feliz. E sempre podia culpar plânctons fluorescentes.
Depois de alguns minutos daquele pique-esconde, o garoto emergiu. Os olhos tinham uma luz misteriosa, podendo serem vistos mesmo na escuridão, com sua pupila semelhante a de um réptil a visão se tornava ainda mais bizarra.
"Tab top."
As palavras que saiam da boca de Ariel eram desconhecidas. Uma língua perdida, que no decorrer daqueles anos, tentava decifrar e anotar, para que o próprio Ariel não a perdesse. Sabia que Tab top, como ele o chamava, significava pai. Ou supunha. E que Ariel era seu nome, ou algo parecido com isso, mas Ariel foi o mais próximo que conseguiu falar.
Não entendia várias coisas. Como a razão de Ariel só falar quando estava em contato com o mar. Ele nem mesmo sabia se Ariel era capaz de falar fora do contato da água ou se escolhia não fazer isso.
Max também não entendia o porquê de ele não conseguir falar na língua inglesa, por mais que tivesse tentado o ensinar desde pequenino.
A primeira vez que ouviu a voz de Ariel, quase se afogara de surpresa. E logo depois aquilo o fascinou. Os sons saiam um a um como uma música, desconhecidos, que nunca conseguia repetir, por mais que tentasse. Imaginava que o mesmo era o inglês para Ariel. Eram sons diferentes demais. Consoantes que não existiam para um ou outro, impossíveis de serem repetidas.
Ariel continuava falando, nadando ao seu redor, jogando água nele com um sorriso satisfeito.
A paz dos dois foi atrapalhada por um barulho na água. No mesmo instante seu corpo ficou rígido e Ariel parou de se mover. O barulho ficou mais próximo e em uma rapidez que nunca deixava de surpreende-lo ele estava na sua frente, os braços em pose de defesa, as nadadeiras afiadas.
"Kaber!"
O som que saiu da boca de Ariel não lhe parecia musical agora e mesmo não sabendo o que dizia, era claro que era uma ameaça. O que significava que o que quer que os estivesse espiando não era um animal. Max não conseguia ver nada na escuridão, mas Ariel claramente via.
"Makit.dem adlantis.ag."
A voz que vinha da escuridão era baixa e feminina. Max sentiu cada pelo do seu corpo se arrepiar e seus músculos ficaram paralisados.
Queria se mover e tirar Ariel de lá, mas teria afundado na água se não fosse o garoto que o segurara. Ouviu mais um som vindo dele, alto e mais ameaçador. Os olhos de Ariel estavam, mesmo naquela luz, totalmente vermelhos, de um modo que apenas viu uma vez na vida. E isso significava ira. Ele estava pronto para atacar.
Para algo ainda pior.
A luz abaixo dos pés dos dois ficou mais forte e foi quando finalmente viu o que estava à frente dos dois. Era um rosto humano, o rosto mais belo que já havia visto, parecendo brilhar mesmo na escuridão. Cabelos castanhos, olhos verdes brilhando de forma não natural. Arregalados e surpresos.
E então, em segundos ela não estava mais lá.
Demorou quase um minuto inteiro para Ariel sair da posição em que estava, e Max conseguir se mexer, seu coração agora acelerado. Tocou no ombro dele e os olhos que o fitaram ainda eram alertas e vermelhos, a cor natural aos poucos retornando.
"Ariel."
Ele tremia abaixo de seu toque, a expressão saindo da raiva homicida diante da possível ameaça que pensara que Max sofria, para confusão.
Ariel caiu repentinamente. Max por pouco não o capturou antes que ele afundasse.
Pegou o corpo do filho, tremendo de frio e de medo, e tratou de tirá-lo daquele lugar imediatamente.
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Notas Finais
Língua de Atlântida:
-Tab. Top (pai)
-Kaber (algo como um aviso, uma ameaça)
- Makit.dem adlantis.ag. (o rei de Atlantis)
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