O segredo do Oceano
"O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Eolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Netuno..."
Ricardo Reis (inultilmente parecemos grandes)
Capítulo 9 – O segredo do Oceano
Sam adentrou pelo corredor carregando o último balde.
Linguado estava em seus calcanhares, a criança geralmente tagarela, silenciosa, sabendo que algo muito grave acontecia enquanto o ajudava a despejar a água dentro da banheira.
Apenas a adrenalina o impedia de tremer de frio, ensopado como estava até os ossos. Ouviu Max murmurar algo sobre a água estar diluída por conta da chuva.
Havia sido tudo o que homem falara, enquanto voltava ao quarto e trazia o corpo que havia colocado na cama após remover suas roupas e o enrolar em uma manta seca.
Sam havia sentido a pele gelada da criança, como se tocasse em um cadáver. Agora, sob a luz dos lampiões, ele parecia ainda mais pálido.
Max, no entanto, era quem mais o assustava. Os olhos dele estavam frenéticos enquanto lhes dava ordens. O agarre no corpo do filho era poderoso, como se temesse que alguém ousasse o tirar dele naquele momento.
Sam sabia que havia algo especial em Ariel. Na verdade, sabia que não apenas ele achava o mesmo, mas todos haviam entrado naquele acordo mútuo e não dito de que nada perguntariam. Tentariam manter aquele segredo, por Max e pelo garoto atrapalhado que todos amavam tanto.
Até aquele momento, aquilo havia funcionado.
"Linguado." Max falou, a voz levemente rouca, trêmula. "Preciso que fique na sala, tranque as portas, não deixe ninguém entrar aqui."
"Mas..."
Os azuis fitaram de um para outro, parado na porta, até focarem em Sam, assustados.
"Faça o que ele pediu." Falou com a voz de conforto. "Por Ariel, proteja as portas."
O menino pareceu em dúvida, mas por fim o garotinho assentiu, o rosto determinado, e correu pelo corredor fechando a porta no caminho.
Max olhou para a porta por segundos, para então fitar Sam.
"Eu sei." Falou, sem que o outro precisasse pedir. "Não vou contar nada, você sabe."
Ele sabia que ele estava em dúvida, mas não tinha tempo para reconsiderar. Mais do que depressa ele estava ajoelhado perto da banheira que haviam preenchido com água do mar e abaixava o corpo do filho, completamente nu, dentro da água gelada. De início nada aconteceu, enquanto Max continuava ajoelhado no chão, os olhos focados no garoto.
Sam continuava de pé, sem saber o que fazer.
"Por favor." Ouviu o sussurro desesperado, enquanto ele jogava água no rosto do garoto. "Ariel, por favor."
Nada acontecia.
"Max..."
"Por favor, meu pequeno..Por favor..."
O corpo do outro ficou tenso e viu em um susto quando o homem afundou a cabeça da criança na água de uma vez, a segurando lá.
Por segundos Sam não reagiu, muito chocado com a cena para se mover. Até que ela se registrou em sua mente e suas pernas voltaram a trabalhar.
"Max! Pare!"
Correu tentando empurrar Max de perto do menino, trazê-lo para a superfície. O puxou para trás, conseguindo que ele o soltasse, prendendo-o pelos braços por trás.
Sam escorregou no chão molhado caindo com o outro e quando se deu conta uma dor lancinante tomou seu rosto. Max havia o socado para que ele o soltasse.
Em segundos ele estava lá, novamente afogado o filho. E aquilo era surreal. Max amava Ariel mais que tudo, ele sabia disso, todos sabiam disso, então o que diabos...
"Max! Você vai matá-lo! Vai matar seu filho!" Gritou agarrando-o pelos ombros.
Max se debateu em seu agarre com uma força descomunal, os olhos desesperados, ainda segurando o garoto debaixo da água.
Quando parecia que nada aconteceria, um barulho dentro da banheira fez com que paralisasse. Max tirou as mãos de dentro da água e a cabeça de Ariel emergiu de supetão, com um respiração alta por ar, os olhos verdes muito arregalados.
"Ariel!" Max suspirou em puro alívio.
Antes que Sam pudesse dizer algo, uma luz esverdeada tomou conta do banheiro, o cegando momentaneamente, varrendo o local e indo por debaixo da porta. Quando conseguiu abrir os olhos, ele viu.
"Que diabos..."
"Sam..."
Max falou com cautela e percebeu que havia dado um passo para frente. O viu erguer-se devagar do lado do garoto, se postando de frente a banheira de forma protetora.
Na frente de Ariel.
Dentro da banheira, no lugar das pernas do garoto havia uma cauda verde e escamosa, começando de sua quadril, mergulhando abaixo da superfície para sair do lado de fora da banheira pequena. E os braços dele possuíam escamas. E Guelras no pescoço.
"Ariel é uma sereia." Murmurou.
"Tritão." Max corrigiu automaticamente, os olhos indo do filho ao amigo, como se esperasse qualquer reação possível. Desde um ataque, até ele sair correndo.
Só não esperava que Sam desse aquela risada. Tendo que se recostar na porta tentando controlar as gargalhadas nervosas. Ariel fitou o pai, os olhos desfocados e confusos na cena.
E os olhos de Ariel...
A cor estava diferente, como se mudasse à cada segundo. As pupilas estavam verticais, como de um réptil.
Sacudiu a cabeça, desviando os olhos de volta para a cauda.
"Desculpe, tritão." Sam falou, recebendo um erguer de sobrancelhas em resposta. E como Max e Ariel faziam aquilo tão parecidos ele não sabia. Porque obviamente, eles não eram pai e filho de verdade, a não ser...
"Você dormiu com uma sereia!" Aquilo saiu antes que pudesse controlar e foi quando Max finalmente relaxou, balançando a cabeça.
"E depois de tudo, é nisso que você pensa."
Um som de dor os fez voltar a atenção para a banheira. Max mais do que depressa ajoelhou-se novamente no chão. Ariel segurava o braço com uma expressão dolorida.
Quando Max tentou pegar nele, o garoto se afastou depressa, água vazando da banheira para o chão, protegendo o membro aparentemente machucado, enquanto de sua garganta saia um som de aviso.
Os dentes dele estavam trincados à mostra como um animal acuado, Sam também podia jurar que por instantes os olhos dele haviam ficado vermelhos.
Max não pareceu nada surpreso, apenas afastou as mãos, as colocando na frente do corpo de forma pacífica.
"Shhh, sou eu, Ariel. Sou eu, vai ficar tudo bem."
Aos poucos o garoto relaxou, os olhos focando no rosto do pai. Então algo mais aconteceu para o surpreender naquela noite.
"Tab top."
Ariel falou
"O que diabos...Max!"
O homem o ignorou, os olhos fixos no filho.
"Deixa o pai ver, Ariel." Sua voz era suave, mas decidida. Quando voltou a alcançar o menino ele veio mansamente, aproximando-se, murmurando mais palavras que Sam não entendia. "O ombro está deslocado."
"O quê?"
"O ombro dele, está fora do lugar. Como eu não percebi antes!" A voz de Max saiu angustiada. "O que aconteceu, Ariel?"
Os olhos do garoto desviaram do pai para a água, o rosto pálido. Havia algo ali. Sam sentiu seu próprio corpo tenso. Se fosse apenas uma queda, ele não teria aquela reação. Ariel sempre deixava Max saber de tudo.
Com o movimento, podia ver com clareza as Guelras, abrindo e fechando conforme a respiração. Balançou a cabeça.
"Ariel..."
O garoto negou com a cabeça, murmurando mais daquelas palavras estranhas. Max continuou olhando o ombro, o corpo tenso. A voz baixa.
"Quem fez isso?"
Aproximou-se mais, para ver do que o outro falava. Haviam...marcas nos braços pálidos. De mãos. Sam reconhecia aquele tipo de marca, era como se...como se alguém o tivesse segurando com força em um lugar. Trocou um olhar com Max e sabia que ele havia chegado a mesma conclusão.
Alguém havia machucado Ariel. Realmente o agredido.
"Ariel." A voz de Max saiu mais alta do que ele pretendia, medo claro em seus olhos. Isso Sam poderia entender.
Como resposta o garoto puxou o braço de volta, o protegendo com o corpo. E agora eles viam que havia outra mancha parecida, logo onde começava sua cauda. No quadril.
"Max..." Sam murmurou, engolindo em seco. Ariel apenas encarava o pai, os olhos atordoados, um brilho vermelho entre eles.
"Desculpe..." Ele suspirou. "Desculpe, Ariel."
Seja o que for que o garoto viu nos olhos do pai ele voltou a se aproximar, como um animalzinho, um som baixo e piedoso saindo de sua garganta. Sam teria sorrido se não fosse toda a situação absurda.
"Vai ficar tudo bem, shhh. O pai vai ajudar. Sam." Olhou-o, desviando da cena para o rosto cansado e angustiado. "Venha, temos que colocar o ombro dele no lugar."
Assentiu, engolindo em seco.
..................
Eric sentia o vento forte em seu rosto. Olhou para baixo e podia ver dali as ondas arrebentando nas pedras. A chuva que caía era agora fraca, mas constante, o ensopando até os ossos. Chegou perto da beirada, olhando para baixo.
"Acha que chega a 10 metros?"
A seu lado, a alucinação de Marina apenas o olhava através da chuva.
Saia da beirada, Eric.
Quando Marina morreu, era uma tarde de sábado. Caia um temporal, o oceano furioso. O nome dela significava aquela que vem do mar.
Marina retornou ao mar.
Quando Marina morreu, a vida de Eric acabou. Ele havia perdido seu propósito de estar vivo, sua última família, alguém que via mais como filha do que irmã muitas vezes. Fruto de pais ausentes e depois mortos, tios que nunca apareciam. Sempre havia sido apenas os dois. De repente era só ele.
Quando Marina morreu, Eric passou a odiar o mar. O mar havia levado Marina, ainda assim sentia uma conexão estranha com ele, como se tivesse que ver o mar. Que retornar ao assassino de sua irmã.
Três meses depois ele tomou a decisão de retornar, não resistindo ao chamado estranho, também pronto para acabar com sua vida nele. Não havia mais propósito para Eric. Ele apenas queria que aquela dor acabasse.
A dor não acabou.
Eric nem mesmo tinha certeza do que aconteceu naquele dia. Ele entrou na água pronto para morrer. Horas depois estava pegando um avião para Austrália.
Talvez o propósito fosse esse no fim. Talvez por isso se sentia tão estranho nessa ilha. No fim, ele havia apenas trocado o local por outro, o mar era o mesmo assassino.
Eric!
Riu sem humor, afastando-se dois passos e voltando a olhar o mar abaixo, o horizonte havia sumido, a chuva tomando tudo. Como naquele dia.
Não sabia que horas eram e infelizmente estava mais lúcido com o banho gelado da chuva. Sentia falta do torpor. De não sentir nada. Se pudesse ficaria assim todo o tempo.
Talvez tivesse mesmo problemas com a bebida.
Não conseguia se importar com isso nesse momento.
Você não deveria ter voltado para esse lugar, irmão.
"Mas você sempre amou essa ilha, Marina. Eu prometi que iria te trazer aqui de novo."
Olhou para o rosto da irmã na chuva, o vento forte ameaçando o jogar para frente, mas apenas conseguia rir.
"E eu não teria conhecido Ariel. Ele é um mistério, Marina."
Ela o encarava com pena e desviou o olhar, voltando a se aproximar da beirada. A cor do mar na tempestade era tão bonita. O assassino perigoso e tão belo.
Os olhos de Ariel eram da mesma cor.
"Acho que ele é nosso anjo, Marina. O anjo que nos salvou. Eles tem os mesmos olhos."
Afaste-se da beirada, Eric!
"Ele parecia tão assustado naquela hora. Eu o machuquei, Marina."
Você não queria.
"Eu teria continuado. Teria o quebrado. Como quebro tudo em que eu ponho minha mão. Eu vou quebrar Ariel, Marina, e o pior de tudo, não consigo impedir isso."
Se ele morresse, Ariel ficaria seguro dele.
Eric, ele precisa de você. Tem que lembrar, ele precisa de você.
Fez um som confuso com isso. Lembrar de quê?
Estava perto agora, muito perto. O vento uivava ao seu redor, foi quando algo capturou seus olhos. Um ponto na água abaixo de si. Um ponto brilhante, ao longe.
A alucinação de Marina continuava ao seu lado.
Não, Eric. Não olhe para ela.
O ponto lá embaixo parecia uma pessoa. Uma pessoa em meio as pedras na tempestade. Que o olhava agora diretamente.
Deu um passo para frente sem perceber, como se enfeitiçado.
Nesse momento se desiquilibrou, seu pé escorregando na beirada.
Eric!!
Por segundos segurou uma galho, sentindo seus pés balançando abaixo no oceano. Foi de encontro as pedras, a pancada o roubando o ar, quase o fazendo soltar a única coisa que impedia sua queda livre.
Em um momento claro de lucidez, olhou para baixo. A queda não o mataria se caísse na água ali, mas o mais provável é que bateria nas pedras abaixo.
"Marina!"
Eu não posso te ajudar, Eric.
Fitou os olhos azuis acima de si no aclive, a mão dela estendida em vão, apesar das suas palavras.
Eric não queria acabar assim, apesar de tudo. Talvez ele não quisesse tanto morrer como havia pensando.
"Por favor, Marina!"
Desculpe irmão, mas não posso! Estou morta, Eric, sou apenas uma alucinação.
Nesse momento o galho quebrou e ele caiu.
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