A cor do Oceano
"Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente. "
(O homem e o mar, Charles Baudelaire)
Capítulo 4 – A cor do oceano.
12 anos atrás, ilha de Stradbrooke, Austrália
Max podia acreditar que tudo havia sido apenas um sonho. Principalmente agora, vendo onde antes havia a cauda agitada pernas pequenas. A outrora figura mística havia repentinamente se metamorfoseado em apenas uma criança encolhida na cama, que havia chorado até dormir durante o caminho até sua casa.
Max poderia acreditar que tudo havia sido apenas uma ilusão, se não fossem as guelras no pescoço, logo abaixo das orelhas cobertas pelo cabelo vermelho. Passou o dedo nelas hesitante e sentiu algo como uma respiração o tocar. Isso o deixava tão fascinado quanto receoso. Principalmente ao notar que assim como a cauda, elas também começavam a desaparecer.
Seu avô havia morrido tido como apenas um lunático, por ter dito que criaturas assim existiam sua vida inteira. E agora aquilo.
Suspirou e passou a mão no rosto. Lá fora a chuva continuava, ele não sabia a que horas da madrugada já estava. O mar voltara a rugir furioso na costa.
E Max ainda não fazia ideia do que iria fazer.
Ele sabia que se o conhecimento sobre o pequeno tritão chegasse a outras pessoas, sua vida viraria um inferno e não demoraria dois dias para o pequeno estar em um tubo. Isso tornava falar com qualquer pessoa sobre isso algo fora de cogitação.
Parte sua queria apenas deixar o pequeno no mar e esquecer que isso havia acontecido. Porém, ele não podia. Talvez alguém viesse buscá-lo. Jogá-lo de volta, assim, sozinho e assustado não parecia certo.
O pequenino mexeu-se na cama e o olhou, os olhos abertos o fitavam, curiosos e assustados. Ele era tão pequeno, que havia o trazido escondido dentro do casaco por toda a enseada. Foi apenas quando chegou em casa, que percebeu que a cauda havia desaparecido. Talvez a ausência da água salgada...ele não tinha certeza. Pensaria depois. Tinha certeza que os livros de seu avô ainda estavam no porão. Deveria ter algo lá. Algo que o ajudasse nisso tudo.
"Ei, pequeno."
Os olhos continuavam piscando sonolentos para Max, ele nem mesmo havia saído da posição, encolhido como uma bola na cama. Seus olhos eram tão grandes, vividos e inocentes que sorriu mais.
"Eu não sei o que aconteceu, mas vai ficar tudo bem." Falou, também para si mesmo. "Vamos dar um jeito."
Aqueles olhos continuavam nos seus. Lendo sua alma. E seja o que tivesse visto em Max, o fez responder o sorriso com outro, pequeno e curioso. O tritão se desenrolou, notou como os olhos se arregalaram ao ver as pernas, um som surpreso saindo da boca da criança.
Max não conseguiu segurar a risada ao o ver as mexer, completamente fascinado.
Repentinamente ele tentou erguer-se na cama e antes que Max pudesse impedir, acabou virando e caindo dela, com um "tump" no chão de madeira. Um segundo de silêncio se fez antes dos soluços.
"Ei, ei, calminha." Sem pensar Max o pegou nos braços mais do que depressa, dessa vez ele veio docilmente. Havia um machucado no queixo onde ele havia batido, mas de resto ele parecia bem. O balançou, ao ouvir os sons sentidos, até que aos poucos ele foi acalmando-se novamente.
Quando Max sentiu os braços em seu pescoço, o coração batendo perto do seu, soube que havia feito a escolha certa.
......
Max colocou seu filho na cama e olhou os pés sujos com um suspiro resignado. Mais de uma década e Ariel ainda não se acostumava a usar sapatos.
Ouviu um resmungo. Ele devia acordá-lo e lhe passar um sermão merecido por o desobedecer mais uma vez, mas não conseguia.
Ele sabia o quanto Ariel sentia falta do oceano. Sabia que os limites da Baía não eram o suficiente para ele, que antes tinha todo o mar. Mas também sabia que se alguém o visse, o visse de verdade, o levariam embora.
E ele também, mesmo depois de tanto tempo, ainda temia que ele simplesmente sumisse se entrasse no mar. Por muito tempo ele apenas esperou que alguém viesse busca-lo, batendo em sua porta, mas nunca ninguém veio, mesmo quando Ariel começou a nadar na baía e se aventurar mais longe do outro lado da ilha.
Doze anos haviam se passado, ele não era mais pequenino e fraco. Max ainda lembrava de quando o levara para casa naquela noite, como o protegeu dentro do casaco. Como o ensinou a andar, quando sua cauda sumiu longe do mar. Como o ensinou a ler e viver naquele mundo estranho.
Ariel era o seu filho.
O ajeitou na cama, o cobrindo e apagou o lampião, deitando ao seu lado, ouvindo o som da respiração inquieta. A chuva sempre o deixava inquieto. E sempre que Ariel nadava no alto-mar, caia uma tempestade. Eles não sabiam a razão. Era como se o mar ficasse enfurecido.
Algo mais o preocupava: Eric Prince. Pressentia algo sobre aquele homem. Ainda não sabia se bom ou ruim, mas o interesse dele em Ariel com certeza era perigoso. Max havia conseguido esconder aquele segredo durante anos apenas porque ninguém nunca perguntava nada. Todos sabiam que havia algo diferente sobre Ariel, mas ninguém perguntava. Apenas resolveram acreditar na história da mãe dele sendo uma turista, que ele não sabia da existência do filho até ela o deixar com ele e ir embora novamente. Max havia o criado com ajuda de todos da vila. Ariel cresceu em meio aquelas pessoas. Um estranho ali, poderia colocar em perigo sobre quem ele era.
Seus pensamentos foram interrompidos quando levou um chute, uma mão batendo em sua cara. Suspirou, removendo a mão do garoto de seu rosto, só para levar outro chute nas costelas, que quase lhe tirou o ar.
Sentou na cama.
Era bem mais fácil quando ele era pequeno. Os chutes não doíam tanto. Desconfiava que Ariel nunca havia se acostumado de fato com as pernas. Por isso vivia caindo.
Outro chute.
Seria uma longa noite.
....................................
Eric acordou com uma comoção, confuso, sem saber aonde estava ou como fora parar ali. Ficou um longo tempo com os olhos fechados, situando-se, recordando aos poucos do dia anterior. Havia barulho de vozes no andar de baixo, risadas e alguns palavrões.
Franziu a testa e abriu os olhos, apenas para encontrar outro par de olhos grandes o fitado bem acima da sua cabeça.
Gritou assustado, erguendo-se de uma vez, sua testa indo de encontro a do outro, seu coração batendo acelerado. Com o movimento brusco o invasor acabou rolando para um chão e ouviu um gemido dolorido.
Piscou atordoado, olhando para o chão onde o invasor havia caído e encontrando um Ariel massageando a testa vermelha, o olhando ressentido. Eles se mediram por segundos, Eric focando no cabelo bagunçado do outro, de quem havia acordado naquele momento, uma calça dobrado de pano e uma blusa grande demais, provavelmente roupas de Max. Ariel estava o olhando com os olhos marejados.
Ele parecia ridículo.
Eric estranhou a própria risada. Em um momento estava assustado, no outro estava com os olhos marejados de rir, enquanto o garoto o encarava de um jeito venenoso, novamente aquele nariz sardento franzido, tentando ignorá-lo enquanto erguia-se do chão.
Apenas para tropeçar na barra da calça longa demais e quase cair novamente, gerando mais uma onda de risos de Eric. Há anos ele não acordava rindo daquela forma.
"Você é mesmo um desastre." O outro cruzou os braços, de pé no meio do quarto, o olhando de modo feio.
Eric olhou o quarto em que estava. Na noite anterior não teve como ver o ambiente. Era um quarto simples. As paredes eram pintadas de um azul desbotado, uma cama de casal no centro do quarto. As janelas eram arredondadas, como as de um navio e havia prateleiras com dezenas de objetos que Eric não fazia ideia de porque estavam ali. Haviam conchas, e pedaços pequenos de metais, objetos quebrados, coisas que poderiam ser consideras lixo, se não estivessem tão organizadas. Ariel seguiu seu olhar e sorriu.
O jovem escritor surpreendeu-se quando ele correu até uma das prateleiras e pegou um dos objetos, aproximando-se da cama e pegando sua mão, o colocando na sua palma. Era um soldadinho de chumbo, do tipo que Eric tinha vários quando criança. Estava descascado e parecia ter passado um bom tempo dentro do mar. Franziu a testa olhando para outro, que o encarava em expectativa.
"É para mim?"
O outro assentiu empolgado.
"Hum...obrigado."
Seus olhos caíram nos livros na mesinha da cabeceira. Eram dois volumes grossos, olhou Ariel que assentiu em permissão. Eric sentou-se, os pés tocando o chão frio e pegou os volumes. Um era de Júlio Verne, um de seus autores favoritos na infância, o outro era um manual de biologia marinha, que parecia desgastado.
"Você gosta de ler então." Voltou os olhos por outro, que estava de costas para colocando algo nas prateleiras. Eric ergueu-se por trás, para o espionar e viu que era uma caixa de louça, quebrada. Uma caixinha de música. O garoto a abriu, mas nenhum som saiu. Ele a fechou, com a testa franzida e quando virou-se de repente, Eric estava bem à suas costas, o assustando.
O escritor o segurou pelos braços antes que ele batesse na prateleira ao recuar com o susto.
"Desculpe."
Ariel assentiu, os olhos estranhamente bonitos piscando, o encarando de baixo. E novamente, Eric sentiu aquele senso de familiaridade, vendo uma breve emoção passar no semblante do garoto. Foi tão rápido que se perguntou se realmente viu alguma coisa.
Ariel sorriu e Eric sentiu seu rosto esquentar. O soltou devagar, apenas para ter a mão segurada e ser arrastado para fora do quarto. O chão estava gelado, mas ao contrário de si Ariel não parecia se importar. A mão era muito menor que a sua, como de uma criança. Foi arrastado pelo corredor até uma escada menor. Um sótão. Ariel o soltou e correu na sua frente, fazendo sinal para que o seguisse enquanto sumia pela escada de corda.
Eric suspirou, olhando para trás. Tinha o sentimento que Max não o queria sozinho com o garoto. Ainda assim ele subiu a escada de corda, olhando o ambiente escuro ao redor.
"Ariel?"
A luz veio de repente. Uma cortina foi aberta e piscou vendo uma grande janela de vidro com uma visão para uma colina com o farol e parte da praia.
Olhou ao redor, para as estantes de livros por todas as paredes e mais prateleiras cheias daqueles objetos quebrados. Havia duas poltronas perto da janela e uma mesinha com um objeto coberto por um pano. Ariel estava sentado em uma delas, com um livro na mão e já parecia esquecido da sua presença. Se perguntava se o garoto conseguia manter a atenção em algo por mais de alguns minutos, começava a duvidar que fosse possível.
Eric colocou o soldado de chumbo no bolso e olhou ao redor com curiosidade. Ele havia crescido em uma capaz com uma biblioteca imensa, então podia apreciar o ambiente. A maioria dos volumes eram desgastados, velhos, mas havia de tudo o que podia imaginar. Parou em um das estantes. Eram livros mitológicos. Abriu um deles e percebeu como o livro era desgastado, mostrando o uso contínuo. As páginas estavam sublinhadas e haviam anotações nos rodapés. Era sobre sereias.
Eric deu uma pequena risada.
Marina com certeza iria amar esse lugar.
Pegou o livro e foi para a outra poltrona, notando como o garoto parecia concentrado, encolhido na poltrona, os cabelos vibrantes bagunçados ao redor do rosto. Esquecido da sua presença, dando pouca ou nenhuma importância ao mundo. Franziu a testa e sorriu ao notar que era um enciclopédia. Começou a ler também e o tempo pareceu voar.
Estava curioso sobre as anotações. O livro estava repletos de fatos que se diziam científicos, testemunhos e supostas fotografias. Eric balançou a cabeça e riu da situação. As anotações pareciam muita antigas para serem de Ariel, mas haviam algumas novas. Notou que em uma delas haviam nomes de pratos, tipos de peixes.
Ergueu os olhos quando sua manga foi puxada. Ariel estava na sua frente, os olhos grandes o encarando com expectativa, o livro na mão. Ele o abriu no peito, apontada para um mapa da Inglaterra, e então para Eric de forma curiosa.
"Sim, é minha casa."
O outro sorriu, assentindo.
"Seu pai lhe contou?"
Ele negou e colocou os dedos na própria boca.
"Meu sotaque?"
Outro balançar de cabeça. O garoto apontou para o texto e para Eric, que demorou para entender que ele queria que ele falasse sobre a Inglaterra.
Coçou a cabeça, mas começou a falar o que podia, olhando as reações do outro com deleite cada vez que mencionava algo que ele não conhecia. Ao fim, estava com fome, já era tarde, mas sorriu ao ver o olhar sonhador de Ariel pela janela.
"Você nunca saiu da ilha?"
O garoto negou devagar, parecendo triste.
Ele parecia solitário. Eric imaginava Ariel crescendo em meio aos livros, sua única porta para fora da ilha. Colecionando coisas velhas, talvez para descobrir mais sobre o mundo que queria conhecer. Contra o ar avoado que havia notado de imediato, Ariel na verdade parecia bem inteligente. Mesmo no pouco tempo que havia o conhecido, ele podia jurar que em alguns momentos a expressão dele mudava completamente do ar infantil e inocente para algo mais afiado e analítico. O ver cercado de livros apenas alimentava mais essa noção, que havia algo a mais sobre ele.
Eric raramente errava sobre uma pessoa, mas Ariel o deixava completamente confuso.
Eric quis oferecer, em uma urgência estranha, para que Ariel o visitasse na Inglaterra, para que visse o mundo além daqueles livros. O que saiu de sua boca, felizmente, foi algo menos comprometedor:
"Eu poderia ensinar linguagem de sinais para você."
Ariel o olhou curioso e Eric sorriu, disfarçando o nervosismo que sentia: "Vai ajudar você a se comunicar. Posso falar com seu pai, vou passar um bom tempo na ilha, sem nada para fazer."
Resolveu acrescentar, como se não fosse nada. Como se não sentisse essa necessidade estranha de estar perto daquele garoto. Saber o que aquela família tanto escondia.
Ariel assentiu depressa, sorrindo largo.
Eric sorriu de volta. Quem sabe assim não estaria aumentando as chances dele até sair daquela ilha? Contra sua vontade, ele começava a pensar nisso mais e mais a cada segundo. Eric conseguia imaginar Ariel em sua biblioteca, enrolado na sua poltrona em uma noite chuvosa. Ou nas ruas de Londres, caminhando pelos cafés, com aquela sua animação e pressa.
O sorriso dele ficou mais triste, como se soubesse exatamente o que Eric estava pensando. E fácil assim, Eric novamente viu esse outro lado de Ariel e se sentiu mais curioso.
"Ariel."
Os dois viraram-se, desviando o olhar e encontrando a cabeça de Max no alçapão. O homem olhou de um para outro, a expressão estranhamente neutra. Como se Eric não percebesse o quanto ver ele e o filho sozinho havia o desagradado.
"Sam trouxe algumas coisas do continente para você, não quer olhar?"
E fácil assim, Ariel novamente mudou de forma completa. O garoto estava de pé antes que pudesse piscar os olhos, um som de deleite saindo dele, como o de uma criança na manhã de natal, passando pelo pai depressa e deixando Eric para trás.
"Devagar Ariel."
Max advertiu, mas era tarde demais. Eric fechou os olhos ao ouvir o som da queda e então passos rápidos pelo corredor. De repente as vozes que ouvira na cozinha ficaram mais altas e ouviu risadas.
Max balançou a cabeça parecendo cansado. O olhar do homem voltou para o jovem escritor, e Eric notou uma leve mudança na sua expressão quando viu o livro, tão rápido que imaginava se havia realmente acontecido.
"Falei com Sam sobre seu problema. Ele disse que há uma casa a ser alugada, não muito longe do porto, mas longe o bastante para ter tranquilidade. Ele quer falar com você."
Eric assentiu, em agradecimento, embora não perdesse a impressão que o homem queria livrar-se dele o mais rápido possível.
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