Capítulo 7 - Caos
Lynx estava posicionado na frente de Alec, e toda vez que ele se movia, Lynx copiava o movimento como um imã, como se não quisesse permitir que o invasor sequer olhasse para ele. Por cima de seu ombro, Alec conseguiu ter uma visão clara do homem parado perto da janela. Ele era bem alto, ombros largos, vestia um terno branco e seu cabelo grisalho era levemente cacheado roçando em seus ombros. Ele tinha uma expressão serena, e até gentil, a primeira vista não parecia ameaçador, até você reparar em seus olhos. Tinham um tom de cinza pálido quase metálico, como duas moedas grudadas em seu rosto, e exibiam um brilho sinistro. O lábio do estranho se curvou no canto quando ele assimilou a cena. Lynx se impondo de modo protetor na frente do humano, lançando a ele um olhar assassino.
—Parece que Amarantha não deu meu recado a você. — A voz de Lynx alarmou um pouco Alec, pela frieza e fúria no tom. Ao dizer isso, mais anjos saíram das sombras do apartamento. —Mas já que estão aqui, podem servir de exemplo.
Eles estavam cercados.
—Lynx, é um prazer revê-lo. — A voz do anjo de olhos prateados era suave como o deslizar de uma cobra. Ele uniu as sobrancelhas. —Você parece um pouco abatido, está tudo bem? Estou preocupado, soube que seus poderes angelicais estão se esvaindo.
—Pra mim não é nem um pouco prazeroso ver sua cara, Azazel. — Retrucou Lynx. —Prazer seria nunca mais te ver de novo. E por favor, pare de agir assim como se você tivesse empatia, é muito nojento.
—Ora, assim você fere meus sentimentos. — Azazel fez uma falsa expressão de chateação.
Um dos anjos avançou na direção deles.
Num piscar de olhos, a foice de Lynx surgiu em sua mão livre. A mão tatuada dele segurava a haste com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos. O anjo que vinha na direção deles sacou uma faca longa. Ainda protegendo Alec atrás de si, Lynx fez um movimento ágil e o sangue espirrou no tapete quando a foice deslizou sobre a garganta do inimigo. O anjo caiu no chão com um barulho pesado e o sangue começou a formar uma poça ao redor dele. Aquela mancha não ia sair nunca mais, pensou Alec.
Ele estava estranhamente calmo, mas não sabia se era calma mesmo ou se estava paralisado pelo choque. A segunda opção era mais provável.
—Perdoe meu amigo. — Disse Azazel olhando com nojo para o anjo no chão. —Ele andava meio estressado esses dias. Sabe como é, a Cidade Fluorescente não oferece muitos estímulos para nós.
—O próximo a ser estimulado vai ser você se chegar perto do Alec.
—Tsc. — Azazel revirou os olhos. —Não dificulte as coisas, Lynx. Pensei que éramos bons amigos.
—Sério? Que estranho você pensar isso, sempre deixei claro que nunca fui com a sua cara. — Rebateu Lynx. A voz dele não tinha emoção ao falar com Azazel, como se não valesse o esforço gastar energia com ele. —Seria menos desgastante pra todos nós se você parasse com a encenação e fosse direto ao ponto.
— Que ponto? Estou apenas visitando um velho amigo e convidando ele a dar um passeio lá em cima. — Ele balançou a cabeça dramaticamente e suspirou. —Talvez eu esteja perdendo o jeito em julgar o caráter alheio.
Azazel agia como se estivesse em uma peça de teatro. Porém, Alec percebeu que sua atuação superficial era só um modo de esconder a obscuridade nos olhos prateados. Ele continuou:
—Preciso escolher melhor quem chamo de amigo.
—Ou talvez devesse parar de ser tão carente e maníaco, aí assim você teria amigos de fato. — Lynx sugeriu soando entediado.
—Oh. — Azazel fez uma expressão teatral de choque. —Parece que você se esqueceu de toda minha gentileza em guiá-lo quando chegou ao céu.
—Se você está esperando um obrigado, é melhor se sentar.
Os olhos de Azazel escureceram um pouco.
—Como quiser então, sem falsas gentilezas. Prendam eles. — Ordenou aos outros anjos com a voz mais fria.
Aparentemente, o anjo havia cansado de atuar e trocar farpas. Mas ele também não parecia com raiva, ele estava despreocupado, dando ordens aos capangas como se não valesse o esforço ele próprio se envolver na luta. Azazel era frio, mas de um jeito diferente de Amarantha, se Lynx dissesse a Alec que ele era um demônio, ele acreditaria. Azazel exibia uma fachada de cordialidade cheia de frases montadas e uma expressão gentil, mas era mais uma piada, deboche puro. Talvez ele até conseguisse enganar alguém se quisesse, mas um olhar mais atento certamente notaria brilho macabro em seus olhos, famintos por uma diversão cruel.
Azazel ordenou que os outros anjos atacassem, mas dessa vez vieram todos de uma vez para cima de Lynx. Eram três anjos além de Azazel, eles sacaram armas esquisitas que fez Alec franzir o rosto como se já tivesse visto aquilo antes, era um tipo de faca longa de três lados, mais como uma pequena lança. Lynx era habilidoso, e conseguia bloquear os ataques com eficiência, mas eles estavam em maior número e se defender era o máximo que Lynx podia fazer naquelas circunstâncias. O apartamento era pequeno e Alec ficou sem reação diante de suas coisas sendo destruídas. A televisão que Lynx tanto adorava, já era.
De repente, a foice de Lynx sumiu, Alec achou que havia sido intencionalmente e se perguntou o que ele pretendia guardando a arma bem no auge da luta. No entanto, notou algo errado assim que olhou para o rosto pálido de seu anjo. Os poderes angelicais dele estavam cada vez mais fracos. Lynx teve um espasmo de tosse e quando limpou a boca ela ficou levemente manchada de vermelho. Alec foi tirado do estado de choque dormente e sentiu algo: pânico.
—Lynx?! — Ele se inclinou para o anjo de cabelo platinado que estava meio curvado, sua mão agarrou o ombro dele enquanto a outra levantava seu rosto para que ele pudesse vê-lo melhor. Ele não parecia muito bem.
A risada grave de Azazel preencheu o ar.
—Parem. — Ele comandou aos anjos que estavam se preparando para outro round. —Nosso querido Lynx não está em suas melhores condições. Não será uma luta justa, do contrário ele já teria aniquilado todos vocês.
—Seu desgraçado! — Lynx xingou, ele emanava uma aura assassina apesar de tudo, mas Alec percebeu que não sentia medo dele.
—Você ainda pode reverter isso. — Disse Azazel com uma faísca maliciosa no olhar. —Mate Alec na minha frente, e você poderá voltar ao céu com dignidade. Seu deslize será esquecido.
A resposta de Lynx foi cuspir sangue nos sapatos brancos impecáveis de Azazel, cujo anjo não esboçou reação.
—Muito bem então. — Azazel suspirou. Ele se aproximou de Lynx em um milésimo de segundo e desferiu um soco em sua mandíbula. Lynx cambaleou, mas não caiu. Quando ele ergueu o rosto, estava sorrindo, seus dentes manchados de sangue.
—Esse é seu melhor soco? Não senti nada. — Ele cuspiu mais sangue. —Talvez você esteja perdendo o jeito com isso também.
A expressão de Azazel se transformou, indo de zombaria calma para uma de raiva contida. Ele ergueu a mão novamente.
—Não! Para com isso! — Alec entrou no meio do golpe. O punho de Azazel parou a milímetros de seu rosto, a expressão dele agora era de nojo.
—Não se meta, seu lixo. — Com o braço ainda erguido, ele usou as costas da mão para golpear o rosto de Alec. Ele sentiu como se sua cabeça tivesse sido arremessada longe, um gosto metálico encheu sua boca quando ele caiu violentamente contra o chão.
—Não toque nele! Eu vou te matar, Azazel! Eu vou despedaçar você! — Lynx gritou a voz coberta de ira. Alec queria olhar para ele, mas sua cabeça girava muito, sua visão estava embaçada e logo ele foi engolido pela inconsciência.
***
Antes mesmo de abrir os olhos, Alec sabia que estava deitado no chão. Isso era porque seu rosto e suas costelas estavam pressionados dolorosamente contra o piso frio. Sua cabeça pulsava com uma dor nauseante e sua boca tinha gosto de ferro. Quando abriu os olhos, não se surpreendeu por não reconhecer onde estava. Paredes cinzas e um cubículo parcialmente iluminado o encararam de volta. A luz fraca vinha de uma pequena janela com grades no alto do quarto. Cela. Alec parecia estar em uma cela. Ele resmungou quando se mexeu e sentou-se no chão gelado. Um barulho veio de algum lugar através da parede ao lado. Ao olhar para frente, ele viu onde deveria haver mais uma parede e talvez uma porta, na verdade tinha barras de ferro.
Era de fato, uma cela.
—Alec? — Chamou a voz familiar de Lynx, produzindo eco. Alec não conseguia vê-lo, mas pela direção de sua voz parecia que ele estava na cela ao lado.
—Estou aqui. — A voz saiu rouca e Alec limpou a garganta. —Aqui. Estamos em uma prisão? Pensei que se um dia eu fosse parar na cadeia seria por baixar filmes em site pirata e não sequestrado por um anjo maligno. O que eu fiz, afinal?
—Estamos na prisão da Cidade Fluorescente. — Esclareceu Lynx, sua voz estava estranha, e tinha uma pontada de derrota. —Mais especificamente, na Torre de Prata Celestial.
—Vocês são péssimos com nomes.
—Azazel nos trouxe pra cá, mas não sei exatamente o que ele planeja. — A voz do anjo realmente carregava incerteza.
—Imagino que não seja uma festa de boas-vindas. — Ironizou Alec.
Lynx não riu.
—Como você consegue ficar tão calmo? — Perguntou alheio aos sentimentos do outro.
Alec não estava calmo. Quem ficaria calmo estando detido em uma prisão no céu por anjos que certamente pretendiam matá-lo? Nem mesmo a personalidade resiliente de Alec era capaz de lidar tranquilamente com algo dessa magnitude.
Mas ele era bom em fingir calma até se acalmar de fato, pois sabia que se desesperar não ajudaria em nada. Então ele respirou fundo várias vezes e começou a pensar positivo.
—Gritar e chorar implorando por misericórdia vai tirar a gente dessa situação? — Alec perguntou retoricamente. Ele se levantou meio tonto e se apoiou nas grades da cela. —Não estou calmo, estou apavorado, mas eu sei que você vai tirar a gente daqui.
—Eu sou quase um inútil agora, você não deveria me dar tanto crédito. — Alec queria bater nele por falar assim, o auto desprezo era nítido em sua voz. —A culpa é toda minha... Alec, me perdoe.
Alec suspirou. Ver Lynx assim tão para baixo, autodepreciativo, deixava ele próprio se sentindo muito mal.
—Quase inútil você disse, não é completamente inútil, então vou te dar crédito sim. — Teimou Alec. —Além disso, você não está sozinho, sou apenas um humano, mas acho que juntos temos uma chance se aparecer a oportunidade certa. Vamos esperar, uma hora eles vão ter que nos tirar daqui.
—Você... Eu queria muito te abraçar agora. — Isso pegou Alec meio de surpresa, ele deu um sorriso na escuridão, grato por não estarem cara a cara, pois isso lhe deu um pouco de coragem para responder:
—Se sairmos vivos daqui eu te dou um abraço.
Lynx riu, uma risada que já era familiar para Alec, o som foi reconfortante.
—Me sinto bem mais motivado agora.
—Mas então — Alec pigarreou. —Esse lugar tem alguma saída? Quero dizer, imagino que tenha, mas o quão difícil é chegar até ela?
—Bem difícil. — Pelos sons de passos, Lynx andava de um lado para o outro na cela. —Mas já fugi daqui uma vez antes, decorei toda a planta do prédio, então sei exatamente onde fica.
—Viu, isso faz de você definitivamente útil, um mapa ambulante. — Falou Alec em tom animador. O som de passos na cela ao lado parou. —Você estava só sendo dramático.
—Se você continuar me elogiando assim vou ficar convencido.
Alec riu.
—Não foi um elogio. — Mas ele ainda sorria quando fechou os olhos e encostou a testa no ferro frio da barra da cela. —Será que podemos falar sério agora? Estamos meio que presos em uma cidade celestial e nosso destino provavelmente é a morte.
—Tudo bem, podemos guardar os elogios pra quando você for me dar meu abraço, mais tarde.
Com isso Alec se endireitou, mas ficou em silêncio. Esse anjo... Ele só se fazia de bobo ou era porque conversar sem olhar nos olhos um do outro, em uma cela escura, dava a ambos coragem para dizer coisas que não diriam em plena luz?
—Quando você fugiu daqui? E como?
—Uns três meses atrás, quando fui banido. Me prenderam aqui, mas quando estavam me levando pra torre de julgamento, eu escapei. Manchei todas essas paredes brancas de vermelho. — Lynx contou alegremente, e a cena mental que Alec criou em sua cabeça foi espetacular.
—Se você conseguiu uma vez, então podemos conseguir agora. — Alec estava tentando ser otimista, pois era tudo que eles tinham naquele momento.
—Justamente por isso que talvez não seja tão fácil dessa vez, Azazel com certeza vai reforçar a segurança.
—Esse Azazel... Bem simpático ele, né?
—Azazel comanda a Cidade Fluorescente, ele é um tirano, nem mesmo os outros anjos no mesmo nível dele reconhecem sua existência, pelo menos é o que parece já que eles nunca deram as caras aqui. — O nojo de Lynx ao falar de Azazel era evidente. —Ele defende as leis do céu, mas sempre acha um jeito de usar elas a seu favor pra fazer coisas bem duvidosas. Diz amar a humanidade, mas na verdade os despreza, vê os humanos como formigas que ele pode pisar quando está entediado. Ninguém consegue entender o que se passa na cabeça dele. Mas pra mim ele apenas age como uma criança ressentida. Acho que ele não queria liderar essa cidade, queria um posto melhor, então desconta sua raiva e frustração em todos ao seu redor.
Alec achou irônico que um anjo do nível de Azazel tivesse emoções e ambições tão humanas, na sua cabeça anjos estavam além de tudo isso. No entanto, quanto mais ele sabia sobre o mundo sobrenatural, mais ele descobria que estava errado.
—Ele lembra um pouco meu pai, mas sem todo teatrinho. — Alec estremeceu ao lembrar de seu velho. —Tipo, esse lance de ser ambicioso e querer sempre mais. Só que meu pai não conhece tantas expressões faciais assim, nem sabe usar sarcasmo.
—Você não gosta do seu pai?
—Não o odeio, mas... É complicado. — Alec se arrependeu de ter colocado o pai no meio da conversa, não queria falar dele agora. —Sabe como é né, família em si é uma coisa complicada.
—Na verdade, não sei. — Respondeu Lynx sem deixar nada transparecer em sua voz. —Não conheci meus pais.
—Ah... Sinto muito.
—Não tem importância, faz muito tempo. — Alec praticamente pôde ver ele dando de ombros.
Antes que Alec pudesse pensar em uma resposta reconfortante, Lynx falou de novo, havia tensão e ansiedade em sua voz.
—Alec, eles estão vindo. — Alertou. —Tem uma caminhada considerável até o salão, vou nocautear eles nesse meio tempo e aí corremos para a saída. Pode ter alguns guardas no caminho, mas consigo lidar com eles, apenas fique perto de mim.
—Foi essa sua tática da outra vez? Bater e correr? — Alec riu, mas não estava repreendendo ele, só achou engraçado porque isso era a cara de Lynx. Caos e gritaria.
—Bem, funcionou daquela vez. Não sou bom com estratégias elaboradas, sou bom em cortar coisas. — O tom dele era apologético. —Desculpa, é meu melhor plano.
—Melhor do que plano nenhum.
Logo dois anjos se aproximaram da cela. Vestiam ternos brancos e seus rostos eram perfeitos, mas suas expressões vazias. Como bonecos de cera, ou robôs.
—Anjos criados no céu. — Murmurou Lynx quando as celas foram abertas.
Os anjos não disseram nada, mas não foram gentis quando pegaram Alec e prenderam seus pulsos atrás das costas com um fio brilhante. Parecia uma corda envolvida por eletricidade, e apesar da cor fria esbranquiçada, ela queimava a pele. Eles apertaram a corda estranha dolorosamente, Alec começou a sentir dormência nas mãos.
Fizeram o mesmo com Lynx, prendendo ele com mais brutalidade do que Alec achou necessário, ele rangeu os dentes vendo a cena. Quando Lynx ficou de frente para ele, Alec finalmente pode ver seu rosto na luz escassa do corredor. Ele estava com um hematoma roxo esverdeado feio em uma das bochechas, e o lábio inferior inchado e cortado, havia sangue seco em seu pescoço. Alec imaginou que ele próprio não deveria estar muito melhor, já que seu rosto doía toda vez que ele falava.
Ao pensar na situação atual deles, Alec teve um mau pressentimento.
—Da outra vez que te prenderem, — Ele perguntou com desalento. — algemaram você assim também?
—Eu sabia que Azazel ia fazer alguma coisa, mas não esperava por essa. — Admitiu Lynx. —Quero dizer, pra que iriam algemar com corda divina um anjo quase sem poderes e um humano sem poder nenhum? Esse tipo de contenção é pra anjos muito fortes.
—Talvez sua fuga da outra vez tenha deixado uma impressão em Azazel. Sua reputação deve ser incrível no céu.
Lynx riu com deboche.
Os anjos começaram a arrastar os dois pelo corredor dando empurrões em Alec que estava dificultando a caminhada de propósito fingindo estar mancando, para tentar ganhar algum tempo para eles.
—Ei! Meu pé está doendo! Dá um tempo. — Ele apoiou a testa no ombro de Lynx fingindo descansar o tornozelo supostamente dolorido. Ele sussurrou: —Espero que tenha um plano B.
Lynx sorriu.
—Eu sempre tenho. Confie em mim.
Em silêncio eles se deixaram levar pelos anjos. Alec imaginou vários cenários possíveis sobre qual era o destino final além daquele corredor. E todos eles eram terríveis. O caminho parecia interminável, se estendendo até uma luz no fim do corredor que parecia se distanciar quanto mais eles tentavam alcançá-la. Celas cercavam ambos os lados. Depois do que pareceu uma hora, eles avistaram uma porta aparecendo entre a luz. Ela se abriu sozinha. Havia outro corredor, mas esse era aberto, em vez de cinza e escuro, era branco e muito iluminado. As varandas de mármore se abriam para a vista da cidade.
O queixo de Alec caiu.
Cidade Fluorescente fazia jus ao nome. Haviam vários pontos brilhantes lá embaixo, notou Alec, eram reflexos. O céu era apenas um clarão branco, sem sol ou nuvens, como se um holofote gigantesco tivesse sido aceso sobre a cidade. As construções se espalhavam entre ruas e avenidas, igual uma cidade humana, mas não parecia haver movimento.
Não que fosse possível ver qualquer coisa com clareza ali de cima. Eles estavam muito, muito alto. Alec conseguia ver toda a cidade, mas era uma visão superficial, casas e mais casas esbranquiçadas e metalizadas. Um verde tímido ao longe. Ele entendeu imediatamente o que Lynx quis dizer com bela, mas vazia. Alec sentia como se estivesse dentro de um daqueles globos de neve, uma paisagem de plástico e vidro inabitada, porém, linda.
—Agora eu entendo porque você acha esse lugar tão deprimente. — Alec disse com empatia olhando para Lynx, o anjo olhava a paisagem com os lábios curvados para baixo.
—Pensei que nunca mais veria essa cidade. — Ele desviou o rosto da paisagem. —Antes eu não podia sentir dor, mas agora, olhar pra isso realmente faz minha cabeça latejar.
—Feche os olhos então. — Foi uma sugestão séria, mas Lynx olhou para ele com um brilho travesso nos olhos e disse:
—Prefiro olhar pra você.
Alec bufou uma risada, Lynx curvou os lábios. Nesses momentos, ele não sabia como interpretar Lynx, então ele não levava as coisas que ele dizia muito a sério.
Muitas curvas e corredores depois, eles chegaram em novas portas duplas, essa bem maior e mais sofisticada que a anterior. Eram brancas com vários entalhes em forma de espirais prateadas e havia um olho azul cravado no material de cada lado, eles se moviam, observando os recém chegados. Elas abriram sozinhas também, revelando um enorme pátio semi aberto. O chão era de mármore branco, e o teto em formato de cúpula era sustentado por pilastras de gesso da grossura da roda de um ônibus. Na outra extremidade do espaço havia um trono ornamentado com prata, e sentado nele estava Azazel. Uma de suas mãos descansava no braço do trono e o dedo indicador batia pausadamente na ponta.
Os anjos diminuíram o passo e guiaram Alec e Lynx parando uns três metros de onde Azazel estava. Ele os observava, pomposo e com um sorriso traiçoeiro nos lábios.
—Amigos. — Ele abriu os braços como se estivesse recepcionando queridos convidados. —O que acharam de suas acomodações?
—Uma merda. — Respondeu Alec. —Deve ser por isso que não tem nenhum hospede, e também porque o gerente é um babaca.
O sorriso de Azazel se alargou.
—Humanos são tão corajosos. Eu amo ver a forma como vocês se impõem e lidam com suas dificuldades, tão bonitinhos. A maioria de vocês é realmente admirável, mesmo quando estão rastejando no sofrimento. — O rosto dele escureceu um pouco. —Mas você, faz parte da escória que não deveria estar vivo.
Alec tentou esconder o choque pela forma como estava sendo insultado tão odiosamente de graça.
—Se você não dobrar essa língua pra falar do Alec — Ameaçou Lynx que estava quieto até então. — eu vou arrancá-la.
—Ah! Por favor meninos, vamos deixar as ameaças de morte e ofensas pra depois. — Azazel fez um gesto com a mão e os anjos que estavam ali deixaram o recinto, sobrando só os três. —Vamos nos divertir um pouco primeiro. O que vocês acham?
A luz sombria em seu olhar causou um tremor em Alec.
Azazel se levantou vagarosamente. Seus sapatos limpos ecoavam no piso conforme ele se aproximava. Quando estava a menos de um metro dos dois, ele fez um floreio com o braço, uma espécie de véu azulado cobriu as paredes e o teto. O ar ficou abafado, como se eles estivessem tampando os ouvidos com as mãos.
—O que você está planejando? — Lynx tentou mascarar a raiva, agindo com mais cautela. —Pra quê o bloqueio?
—Eu tenho quase certeza de que ele vai nos torturar. — Alec sussurrou engolindo em seco. —Meu palpite é de que colocou essa coisa pra ninguém ouvir a gente gritando.
Azazel sorriu para ele.
—Bom palpite. 50 pontos. — Ele apontou para cima. —Mas isso aqui é só uma precaução caso Lynx tente alguma gracinha.
—Nos torturar? — Lynx estava se segurando, dava para notar. Ele forçava o fio brilhante em seus pulsos tentando partir eles, mas só resultou em feridas sangrentas na pele.
—É o plano. — Azazel respondeu seriamente juntando as mãos.
Lynx soltou uma risada fria.
—Eu sabia que nunca seria julgado de maneira justa aqui.
—Meu filho, tão ingênuo. — Azazel balançou a cabeça como um pai desapontado. —Como você acha que anjos pecadores são julgados?
Lynx parecia cada vez mais alterado.
—Eu, eu até entendo, mas o que Alec fez? Deixe-o ir! — Ele gritou. —Ele não tem nada a ver com isso.
—Alexander — Azazel exibiu os dentes tal qual um animal raivoso, mas em seguida se conteve. —Tem tudo a ver com isso, você se esqueceu? Ele não deveria estar vivo. Ele não deveria existir mais, você falhou, então ele tem que pagar também. Você mexeu com a ordem natural, ela precisa ser restaurada.
—Você só está distorcendo as coisas pra usar a lei a seu favor, porque você é um psicopata que gosta de torturar qualquer coisa viva. — Lynx cuspiu as palavras. —Não entendo por que o céu não interfere...
Azazel deu um sorriso largo.
—Interferir no quê? Estou apenas cumprindo meu dever.
—Seu dever é forjar desculpas pra torturar anjos e humanos? — Lynx tinha um sorriso de descaso. —Todos sabem das suas atividades. Você se encaixaria melhor no inferno, não aqui.
Azazel travou o maxilar, fechou os olhos e respirando fundo se recompôs.
—Isso está perdendo a graça. — Falou virando as costas.
—Ninguém estava rindo desde o começo, a única pessoa que se acha engraçado é você mesmo. — Alec disse com sarcasmo. Foi a coisa errada a se fazer.
Azazel se virou bruscamente para eles, seus olhos eram duas lascas de prata afiada, e sua expressão distorcida de raiva finalmente desabando a fachada de cordialidade debochada. Com um movimento da mão dele, Alec se curvou caindo de joelhos, sentindo como se tivesse levado um chute na barriga. Ele tossiu cuspindo saliva enquanto a dor espalhava por seu abdômen. Azazel se aproximou e chutou Alec de verdade dessa vez. Várias vezes. Ele soltou um gemido de dor abafado quando o anjo de olhos prateados pressionou seu rosto contra o chão usando o pé.
—Se eu fosse você ficaria quietinho. Não abuse da minha boa vontade, por mim você já teria sumido da terra a muito tempo. — Sibilou afundando o pé com mais força no rosto de Alec. —Teste minha paciência e a brincadeira vai acabar cedo demais.
Lynx com sangue nos olhos, tinha tentado avançar contra Azazel assim que Alec foi atacado a primeira vez, mas ao dar um passo a frente, ele caiu de joelhos também, cuspindo sangue.
Azazel olhou para ele.
—Lynx... Ah, é realmente uma pena. — Uma daquelas facas estranhas deslizou para fora da manga de seu paletó. Ele se aproximou de Lynx, e se abaixou ficando no mesmo nível que ele. —Você tinha tanto potencial, mas jogou tudo no lixo se afeiçoando a essa coisa humana.
Lynx soltou um ruído engasgado, se negando a gritar quando Azazel usou a ponta de sua arma para furar o ombro dele. Ele afundou a faca e girou. A visão de Lynx sendo machucado fez Alec querer picar o outro anjo em vários pedacinhos. Uma fúria gelada começou a se espalhar por seu corpo, seus pulsos gritaram dolorosamente quando ele forçou as amarradas divinas tentando quebrá-las. Era impossível, ele sequer conseguia se levantar do chão na posição humilhante em que estava. Porém, o ódio que ele sentiu naquele momento era digno de um deus vingador, cujo ódio foi amplificado pela impotência de ver Azazel furar e rasgar o corpo de Lynx repetidamente e ele não poder fazer nada. Lynx começou a ficar pálido pela perda de sangue, mas Alec também se lembrou dele dizendo que seria perigoso se ele fosse ferido por alguma arma celestial nesse estado.
Alec começou a se desesperar. Se Lynx tinha um plano B, aquele era o momento perfeito. O que ele estava esperando? Qual era o plano?
—Pare com isso, seu filha da puta! — Alec gritou com tanta ferocidade que sua garganta doeu. Azazel olhou para ele como se tivesse se esquecido que estava ali debruçado no chão. Lynx parecia perto de desmaiar, sangue vazava de várias feridas em seu corpo.
—Claro, claro. — Azazel usava sua faca angelical para gesticular exageradamente. —Não posso matar Lynx antes de ele ver você sofrer.
Azazel estalou os dedos, e os anjos de antes retornaram pela porta.
—Abra as asas. — Azazel ordenou a Lynx.
Lynx apenas o encarou, sem forças para falar, mas com ódio cintilando nos olhos de gato. Sua dor era nítida em sua expressão, cuja expressão estava sorridente não muito tempo atrás e agora só havia agonia. Alec pensou neles na loja de música, era como se aquilo tivesse sido um sonho distante e agora eles estavam despertos na realidade cruel.
—Se não abrir, cortarei a garganta do seu humano antes que você consiga piscar.
Rangendo os dentes, Lynx abriu as asas. Eram tão lindas, pretas e brilhosas, Alec sabia o quanto eram macias. Ele percebeu que o seu anjo evitava olhar para ele. Lynx parecia culpado, com raiva e envergonhado. Os anjos robôs pegaram as asas de Lynx, um de cada lado, e puxaram. Lynx gemeu de dor e fechou os olhos. Alec queria chorar, mas se conteve. Por que tudo aquilo estava acontecendo? Nenhum deles merecia aquilo. As belas asas de Lynx seriam arrancadas e eles seriam mortos.
—Agora — Azazel se voltou para Alec. —Vou cortar todos os seus membros, e fazer Lynx assistir enquanto você grita em agonia, depois vou arrancar as asas dele antes que você morra. Parece bom pra vocês?
—Como você pode ser chamado de anjo? Você não devia ser uma criatura boa? Mas você é cruel. Por que está fazendo isso? — Alec perguntou sentindo nada além de incredulidade diante de tudo aquilo. Onde estava a justiça nisso? Isso era realmente o céu?
Azazel olhou para Alec parecendo pensar sobre suas palavras por um momento, por fim respondeu:
—Vocês tem uma imagem equivocada de nós. — Então mais rápido que os olhos podiam ver, Azazel atacou Alec.
O anjo cruel agarrou seus cabelos com força, seu couro cabeludo parecia estar sendo arrancado quando Azazel o ergueu violentamente pelos cabelos forçando-o em uma posição ajoelhada. Alec sentiu a faca afundar em sua coxa, perfurando sua carne e causando uma dor excruciante. Ele tentou não gritar, mas isso resultou em um som engasgado quase como um guincho. Lynx soltou um ruído de desespero e tentou ir até ele, mas foi contido pelos anjos agarrando suas asas.
Azazel se inclinou para Alec sussurrando em seu ouvido.
—Por que estou fazendo isso, você pergunta... — Ele riu. —Porque eu posso.
O anjo torturando Alec puxou a faca de volta e observou o sangue dele escorrer, com nojo na expressão, então a faca desceu novamente, dessa vez na outra perna e com mais força. Alec não conseguiu conter o grito dessa vez. Lynx não parava de se debater e xingar Azazel.
—Agora entendo melhor porque Lynx odeia esse lugar, além de ter um nome sem graça, o chefe é um sádico. — Alec queria ter algo pior para dizer, mas não era bom em xingar as pessoas. Ou anjos, por mais malignos que fossem. Azazel manteve a faca cravada na coxa de Alec, porém, se levantou e sentou de volta em seu trono.
Seria uma longa sessão de tortura.
Sentado em seu trono como um rei tirano, Azazel tinha uma expressão mista em seu rosto perfeito, parte diversão, parte ironia, parte euforia maligna. Ele olhou para Lynx.
—Lynx... Lynx... — Azazel girou o dedo no ar lentamente e a faca na coxa de Alec começou a girar junto, o sangue escorria e pingava no chão branco. Ele continuou como se não estivesse causando uma dor insuportável em Alec: —Setecentos anos depois e você não aprendeu a lição. Olhe o quão patético você está agora, sempre cometendo erros estúpidos. — Sua voz era cheia de um falso tom pesar. —Onde está seu bom senso?
—Nossa, mas você gosta de se ouvir falar, né? — Alec arquejou e sentiu o suor escorrer pela testa tamanha era sua dor. —Se vai nos matar, faça logo. Ninguém tá afim de assistir seu show, não me importo se você é um velho solitário precisando de atenção. Acabe logo com isso.
—Seu humano escória não sabe de nada, não é? — Disse Azazel ignorando completamente Alec, como se ele fosse uma barata no canto da parede.
Seus olhos de prata deslizaram para Alec e de volta para Lynx. Ele tinha um olhar entretido.
—Ele não faz ideia, não é mesmo? Seu bichinho de estimação, não faz ideia do quanto você é sujo, de quanto sangue tem nas suas mãos. — Azazel riu e levou o indicador até o queixo, fazendo uma expressão exagerada de contemplação. —Talvez devêssemos esclarecer as coisas aqui e agora, vocês vão morrer mesmo. Veremos se ele vai continuar tão tolerante e amistoso com você depois que descobrir sobre seu passado imundo...
—Cale a boca! — Lynx gritou completamente descontrolado, ele se debatia, e claramente sentia dor nas asas com os puxões provocados pelos anjos atrás dele. Azazel o ignorou voltando seu olhar para Alec.
—Sabe Alec, nem sempre Lynx teve essa aparência bonitinha. Nem sempre esteve em uma posição de poder, acima dos fracos que ele subjuga. Ele me critica, mas é apenas o sujo falando do mal lavado. — Começou Azazel como se estivesse prestes a contar uma história engraçada, seu tom era leve e despreocupado. —Ele era uma criança bem suja, miserável, dormindo nas ruas e tendo que lutar por um pedaço de pão velho. Realmente lamentável.
—Azazel... — Lynx emanava tanto ódio que seria capaz de preencher todo aquele prédio. —Se existe alguma justiça de verdade nesse mundo, eu ainda vou ver você cair desse pedestal. Ou serei aquele a derrubá-lo. Eu prometo.
Azazel soltou uma gargalhada.
— Certo, certo. Lynx parece com pressa de ter suas asas arrancadas então vou resumir. — Ele parecia animado em falar sobre aquilo. —Sabe qual é o maior arrependimento dele? Vou lhe contar, Lynx se odeia porque...
Mas Alec não saberia o resto, porque uma sirene estridente preencheu o ar, atravessando aquelas barreiras azuis translúcidas. Uma sirene tão ensurdecedora que Alec sentiu que seus tímpanos estavam sendo perfurados pela faca cravada em sua perna. E então uma explosão. As grandes portas duplas do salão foram arrancadas das dobradiças e as lascas de madeira e ferro voaram para dentro. Os olhos entalhados na porta caíram no chão sangrando e produzindo um barulho molhado e nojento. Alec virou o rosto tentando se proteger dos detritos, mas algumas farpas arranharam sua face. Uma nuvem de fumaça cobriu o recinto, limitando a visão.
Alec não conseguia ver nada, mas ouvia os sons de luta. Logo alguém chegou por trás dele. Ele se esquivou com as mãos ainda atadas, mas logo viu Lynx em seu campo de visão. Ele se acalmou ao ver que era ele.
—Nosso plano B atrasou um pouco, eu sinto muito, Alec. — A expressão dele era de pura angústia e remorso. —Você está tão machucado... Eu sinto muito.
Cuidadosamente, ele tirou a faca cravada na perna de Alec, e a usou para cortar o fio mágico que prendia suas mãos. Depois de solto, Alec esfregou as feridas avermelhadas ao redor dos pulso.
—Desculpa. — Lynx subitamente pegou suas mãos deixando um beijo rápido em cada pulso ferido. Alec não conseguiu reagir, por causa do gesto carinhoso inesperado e a urgência da situação. Lynx ajudou ele a se levantar, mas as pernas de Alec doíam demais, ele mal conseguia se manter em pé e sentia o sangue escorrendo até os tornozelos por dentro da calça. Os anjos ainda lutavam com as figuras encapuzadas que tinham invadido o prédio, Alec estava confuso, mas certamente depois Lynx explicaria tudo.
No meio do caos, Alec avistou Azazel, olhando para a bagunça com uma mistura de espanto e ódio. Seus olhos percorriam o espaço em busca dele e de Lynx. Todos os sentimentos começaram a se acumular dentro de Alec formando um furacão raivoso. Ele pegou a faca angelical da mão de Lynx e sem pensar, arremessou. O objeto fez uma linha certeira até o ombro de Azazel, cravando na carne, uma mancha escura crescente se espalhou pelo seu terno impecável manchando o branco de vermelho, como uma flor desabrochando na neve.
Azazel olhou para a faca despontando de seu ombro como se nunca tivesse visto o próprio sangue, e talvez fosse o caso. Ele estava perplexo, e cambaleou um pouco, o véu azulado de bloqueio que ele tinha colocado ao redor do lugar enfraqueceu e sumiu como uma luz de apagando. Azazel arrancou a faca de si e a jogou violentamente no chão. Então avançou na direção deles com os olhos queimando de cólera.
—Desculpa. — Lynx repetiu.
Antes que Alec entendesse o que estava acontecendo, sentiu suas pernas serem arrancadas do chão. Ele sibilou de dor. Quando assimilou a situação, Lynx tinha pegado ele no colo, e começou a correr em direção a ponta do pátio, a queda livre os esperando logo a frente, então Alec entendeu.
—Não me deixe cair. — Ele pediu se agarrando a camiseta do anjo, e enfiando o rosto na curva do pescoço dele. Lynx tinha cheiro de sangue, noite e algo calmante.
—Nunca. — Prometeu Lynx com ferocidade.
Então Lynx pulou do edifício, suas asas se abriram dolorosamente, mas não falharam enquanto eles voavam pela Cidade Fluorescente.
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