Capítulo 43 - De Um Inferno Para Outro
A espada afiada de Angela reluzia sob a garganta de Amarantha, seu olho escuro brilhava com a fúria de mil sóis. Todos os presentes tinham parado para observar, e havia murmúrios na multidão. Alec estava ficando preocupado com o desenrolar daquilo, mais preocupado ainda com Luce desacordada nos braços da outra. Pelo menos, estava viva, ele notou com alívio, a respiração fraca, mas insistente. Lynx parou ao lado dele, observando também, com a expressão séria. Beatrix ainda estava no colo de Alec, ele a colocou gentilmente no chão e olhou para Lynx, se comunicando silenciosamente. Lynx pegou a menina pela mão, levando-a para longe daquela cena, já tinha presenciado violência demais por uma noite. Por uma vida inteira.
-Tem três segundos para soltar Luce e se explicar, dependendo do que eu ouvir, sua garganta vai vazar pelo chão. - Angela ameaçou, mas Amarantha só sabia gaguejar e chorar, o que a deixou ainda mais irritada.
Amarantha finalmente colocou Luce no chão com delicadeza, afastando-se dela.
-Azazel... Ele... - ela tentou falar, mas foi interrompida por uma tosse brusca onde sua mão voltou cheia de sangue. Angela não abaixou a espada. -Azazel me envenenou. Faz meses que não me sinto bem, mas eu não fazia ideia, não sei como ele fez isso. Mas Luce percebeu.
-Mas se Azazel envenenou você, por que é Luce quem está desmaiada? - perguntou Cain.
-Luce foi afetada quando... - o rosto de Amarantha ficou vermelho.
Angela imediatamente entendeu.
-Você... beijou ela a força? - gritou, e sua espada mal se mexeu, mas fez um corte superficial no pescoço de Amarantha. -Você a envenenou e causou a queda das barreiras! Eu vou matar você!
-Não! Não foi a força! Eu não planejei nada disso. - ela começou a chorar de novo. -Mas não vou culpá-la se me matar, de certa maneira, não sou inocente. Mas eu nunca quis machucar Luce e nem vocês... Eu sinto muito.
Era chocante ver Amarantha tão miserável. Alec sentia um pouco de pena dela. Ele acreditava que ela não tinha planejado aquilo, ela era apenas uma ferramenta de Azazel. Agora o comportamento dela de antes fazia tanto sentido, ela agia como um robô porque tinha tido seu livre arbítrio roubado pelo Príncipe do Inferno. Alec não conhecia a verdadeira Amarantha, mas não dava para negar o quanto as emoções dela eram intensas e genuínas quando se tratava de Luce.
Angela praguejou e parecia querer, de fato, estrangular Amarantha, mas Cain logo se pôs ao seu lado, acalmando-a. Aquilo não era nada bom. Luce era o pilar da cidade, todos depositavam sua fé nela, e acreditavam que ela os salvaria. No entanto, o pânico já começava a se instalar no recinto tornando aqueles rostos vulneráveis ainda mais apavorados, pois eles estavam diante de sua líder completamente incapaz e indefesa.
-Prendam Amarantha. - Angela ordenou aos guardas, fazendo um esforço visível para se acalmar. -Ela é perigosa. Mas não a machuquem... - então mais baixo: -Luce não ia gostar disso.
Amarantha não ofereceu resistência quando os guardas a levaram de volta para a masmorra.
-Acha que ela está dizendo a verdade? - Levi perguntou para ninguém em particular.
-Odeio admitir, mas acho que sim, e Luce sabia. - Angela respondeu. -Sabia dos riscos de mantê-la viva, e se achasse que realmente tinha má intenções, teria matado ela, amando-a ou não.
-Devia tê-la matado de qualquer jeito então. - Levi respondeu friamente. -Se o resultado seria o mesmo.
-Você mataria se fosse eu? - perguntou Gabriel, demonstrando compaixão por Amarantha. -Não sei muito sobre o que aconteceu entre elas, mas Luce a ama, simples assim. Amarantha foi usada por Azazel, quem sabe que tipo de coisas ela passou nas mãos dele.
Lynx retornou sozinho, e Alec que apenas ouvia a conversa dos amigos, olhou para ele.
-Onde está Beatrix? - perguntou.
-Acho que fez um novo amigo. - Lynx apontou para um canto, onde a garotinha estava sentada ao lado de um menininho da idade dela. O menino tentava puxar conversa, mas ela olhava fixamente para o chão. A margarida que Lynx lhe dera, estava no cabelo agora. Um sentimento avassalador de proteção surgiu em Alec. Ele queria proteger aquela menina de todo mal do mundo, e se sentia horrível por não ter chego mais cedo naquela noite. Naquele momento, decidiu que cuidaria dela, e não queria falhar de novo como falhou com a menina da praça que morreu diante de seus olhos.
-Ela vai ficar bem. - Lynx acariciou o braço dele, sentindo seu conflito interno, ele lhe deu um olhar significativo que reconfortou Alec um pouco.
-Quais são as ordens agora? - Cain perguntou a sua capitã. Um vice pedindo instruções, para quem assistia de fora, mas entre o círculo de Luce eles sabiam que a pergunta tinha outro significado. O que faremos agora sem nossa líder aqui para nos motivar e guiar? O grupo se entreolhou e a resposta surgiu entre eles. Lutaremos por ela, e para protegê-la também.
Agora que sua raiva havia abrandando um pouco, Angela parecia perdida e preocupada com Luce, ela não respondeu.
-Vamos nos reorganizar e nos preparar o próximo ataque. - Lynx tomou a frente da situação. -Deixaremos uma tropa responsável pela segurança do castelo, enquanto o restante do esquadrão vai para as ruas.
-Cadu foi até a central de segurança, - Gabriel disse. - para ver se mesmo sem Luce é possível criar uma barreira temporária.
-Devíamos chamar alguém para cuidar dela. - Alec se pronunciou. -Se foi envenenada, não vai se curar sozinha. Só não entendo como isso foi possível exatamente. Luce é forte, e se Amarantha foi envenenada também, por que ainda não morreu?
-Acho que é parecido com aquela técnica que os humanos usavam antigamente que poderia tornar uma pessoa imune a venenos. - Angela falou saindo daquele torpor. -Sei um pouco, porque foi parecido com o que fizeram comigo. Amarantha foi envenenada aos poucos de modo que só ficou um pouco doente, mas Luce foi pega desprevenida. Ela também não vai morrer, mas é estranho que um veneno mundano tenha causado esse estrago logo de cara.
-Talvez Azazel tenha modificado ele para ser mais eficaz em anjos. - ponderou Cain.
-Amigo! - Rebeca surgiu da multidão e se jogou em Alec abraçando-o forte. -Que bom que está bem!
Sua aparição repentina quebrou a bolha de tensão entre os capitães, mas cada um deles já sabia bem o que fazer. Luce não estava ali, mas era justamente por isso que não podiam se desesperar andando por ai como galinhas sem cabeça. Precisavam manter a calma e seguir com os planos.
-Fique segura aqui, viu? - Alec disse a ela com preocupação. -Não saia por nada.
-Não vou.
Alec puxou um pouco ela de canto.
-Quero pediu um favor. - ele olhou para Beatrix. -Fica de olho naquela menina para mim?
Rebeca olhou curiosa para a menininha sentada do outro lado do recinto.
-Os pais delas estão mortos.
Os olhos de Rebeca se encheram de lágrimas.
-Vou cuidar dela. Não se preocupe, Alec.
Cadu então surgiu abraçando Rebeca tão forte que Alec foi praticamente jogado para fora do caminho.
-Você demorou. - ela disse a ele, chorando. Cadu estava um pouco machucado, ele olhou para o grupo que se reuniu ao redor dele, a expressão do vice de Levi era cuidadosamente neutra.
-A central foi destruída também. - disse sem emoção, mantendo a voz baixa. -Estão todos mortos.
Nenhum deles reagiu. Não podiam mais reagir, demonstrar desespero, medo ou raiva. A queda de Luce já havia abalado todo o clima dentro e fora do salão, e agora eles tinham que se esforçar para não piorar ainda mais. As pessoas estavam assistindo eles, e depois de verem Luce naquele estado, a multidão ficou extremamente insegura e assustada. E ai, se os capitães se descontrolassem, então o que seria deles? Por isso, precisavam manter uma frente firme, mesmo que estivessem desmoronando por dentro.
Alec odiava aquele clima tenso. Parecia uma despedida. Como se eles não fossem ver um ao outro de novo E talvez não fossem. A possibilidade de que um deles, ou todos, morressem, era grande.
-Então quer dizer que estamos sem nossa líder e a central de segurança foi completamente destruída? - a voz irritante falou propositalmente alto, para que todos pudessem ouvir, ele fingia um falso tom de preocupação. Primeiro houve silêncio, e depois sussurros nervosos ecoando pelo salão. -Espero que nossos capitães tenham tudo sob controle. Se não...
-Temos tudo sob controle, Gus. - Angela se colocou na frente dele, imponente, fazendo-o parecer minúsculo. -Ficará tudo bem, principalmente se você calar a boca. Todos aqui já conhecem a natureza da sua índole, mas agora não é o momento de você reforçar sua reputação de merda.
-Estão vendo isso? - sua expressão de indignação era extremamente fingida. -A capitã da primeira divisão, ofendendo um soldado que está apenas preocupado com a situação, assim como todos aqui.
O cara tinha perdido completamente a cabeça. Todos sempre souberam que ele era um idiota, mas aquela cena ultrapassava todos os limites.
-Qual é o seu problema? - Alec perguntou se enchendo de raiva. -Olhe em volta. Olhe a situação delicada em que estamos para você querer incitar o caos sem motivo nenhum. Você realmente fica feliz em ver as pessoas piores do que já estão não, é? Eu odeio gente como você, que parece que se alimenta da infelicidade alheia por que você próprio é infeliz. Precisa de minions o tempo todo atrás de você puxando seu saco porque não consegue ter nenhuma satisfação consigo mesmo sem precisar da aprovação dos outros. Você me dá nojo.
Gus estava vermelho de vergonha e raiva.
-Você se acha muito, não é? - vociferou. -Espero que seja o primeiro a morrer nessa guerra.
Lynx deu um passo a frente, as veias em suas mãos saltaram quando ele as fechou em punhos prontos para acertarem a cara de Gus, mas Alec o conteve.
-Além disso, eu só disse a verdade. - Gus falou. -Sem Luce, todos nós vamos morrer!
-Não vamos! - Alec gritou. -Ninguém vai morrer porque não vamos deixar. Luce pode não estar aqui, mas também não está morta. Ela criou essa cidade e a protegeu durante séculos, mas não foi sozinha. Ela tem seus capitães, os quais são inteiramente leais a ela e acreditam em sua força, e também tem uma ligação muito forte com o povo. A mera menção ao nome dela é o suficiente para que tenhamos força para lutar por ela e salvar o que ela lutou para proteger. E não vai ser as palavras de um imbecil como você que vai mudar isso.
As pessoas que tinham ficado com medo diante das palavras de Gus, mudaram de ideia, começando a concordar com Alec. Inteiramente humanos, ou não, os seres vivos agiam da mesma forma em tempos difíceis. Suas mentes eram frágeis e facilmente moldadas, e as palavras tinham poder. Diga a todos que eles morreriam, e eles acreditariam, diga que eles iam viver e uma chama de esperança se acendia em seus corações.
-O que você sabe sobre isso? Você chegou aqui ontem! - veias saltavam no rosto de Gus e ele cuspia enquanto gritava.
-Tem razão. - Alec Sorriu. -Mas eu tenho empatia, integridade e noção, coisas que você não tem e não é capaz de entender, portanto, são coisas que nunca terá. E são com essas coisas que conquistamos a lealdade das pessoas.
Gus não parecia ter mais o que dizer, então ele simplesmente partiu para a violência, indo para cima de Alec. Contudo, uma pessoa encapuzada surgiu atrás dele e lhe deu um golpe na cabeça, fazendo-o cair desacordado. Tales tirou o capuz e sorriu para eles.
-Eu não aguentava mais ouvir a voz desse babaca. Sério, como uma pessoa consegue falar tanta merda de uma vez só?
Angela cutucou Gus com a ponta da bota, sua expressão era divertida.
-Joguem ele na masmorra. - disse aos guardas. -Quando acordar eu conto a notícia de que ele finalmente conseguiu ser expulso do esquadrão. Da cidade.
-Finalmente! - Tales comemorou. Então ele olhou para Alec e Lynx e se aproximou mais, encarando Lynx de frente.
-Senhor, eu sei que fui imprudente na minha última missão e que desobedeci suas ordens. Sei que ainda estou suspenso, mas não estou aqui para discutir, apenas peço permissão para lutar na guerra, pois não aguento ficar parado sem fazer nada enquanto meu povo sofre.
Todo mundo olhou para Lynx, que tinha uma expressão neutra no rosto. O clima ficou tenso enquanto esperavam pela resposta dele. Ele e Tales se encararam por um bom tempo.
-Eu seria um idiota se negasse um pedido desse em meio a uma guerra. - Lynx falou começando a sorrir. -Permissão concedida.
-Obrigado, Senhor. - Tales sorriu de volta.
-Só tem uma coisa. - Lynx ficou sério. -Se, de repente, aparecer um demônio de três metros de altura com uma foice enorme e eu disser, eu cuido disso... Eu cuido disso.
Tales tossiu para disfarçar uma risada.
-Entendido. - Tales sorriu para eles e sumiu em meio as pessoas.
A tropa de segurança foi organizada ao redor do castelo. No momento seguinte, os capitães e o esquadrão se preparavam para a luta nas ruas, as divisões posicionadas estrategicamente. O que sobrara da cidade pareciam ruínas de uma civilização antiga e esquecida. Alec não sabia o que era maior, sua tristeza ou seu ódio. De repente, ele teve uma breve visão, como um deja vu ou um flashback. Uma civilização antiga e destruída, em outro tempo, outra era. Outra civilização. Ele balançou a cabeça para espantar a visão confusa.
-Está tudo bem? - Lynx, ao lado dele, perguntou.
-Vai ficar. - Alec dispensou a preocupação dele, mas o anjo caído ainda o olhou por um momento, porém, não pressionou.
Não tiveram muito tempo para conversar, porque foi em meio aos destroços da cidade que o segundo ataque chegou. De uma forma inesperada, vários portais se abriram no céu, despejando demônios como um vespas saindo de vespeiro. O enxame de criaturas demoníacas invadiu a cidade pela segunda vez. Alguns eram demônios voadores, mas outros eram coisas que tinham formas humanoides, porém, deformadas e com membros grandes e desproporcionais. Eles caiam em pé, afundando no concreto já destruído. Nada do que Alec já tenha visto na ficção se comparava aquilo. Não era organizado como nos filmes, cada exercito de um lado, avançando aos poucos um contra o outro. Era caótico e desesperador.
Os capitães deram as ordens as suas divisões e avançaram. Alguns soldados menos dotados de habilidades morriam antes de conseguir dar o primeiro golpe. Tudo acontecendo em milésimos de segundos, para que fosse possível fazer qualquer coisa. Pela primeira vez, Alec pode ver os líderes do esquadrão lutando para valer. Angela era como uma amazona, despejando sua raiva no campo de batalha, cortando cabeças com sua espada como se fatiasse grama. Cain alternava entre usar a espada e as próprias mãos, a cor de seus olhos havia mudado também, para aquele vermelho sangue que engolia as iris e pupilas. Alec o viu em seu canto esquerdo, segurar um demônio pela garganta e incinerá-lo até não restar nada além de cinzas escorrendo pelos dedos. Levi abria caminho deixando demônios mortos para trás, e Gabriel dava cobertura a ele, com seu arco e flecha, com disparos triplos que acertavam os inimigos direto na garganta. Cadu era pura força bruta, seus socos faziam demônios saírem voando como sacolas de lixo no vento, a espada dele também era um borrão prateado no ar.
Ao mesmo tempo que mal havia brecha para reagir a alguns ataques, Alec também fosse capaz de captar partes da luta como se elas acontecessem câmera lenta. Era estranho, mas talvez fosse alguma peculiaridade de seus poderes. Ele pôde prestar atenção em tudo isso, enquanto ele próprio investia contra os demônios com Defensora em punho. E estava bem ciente de Lynx lutando muito próximo dele, mas sabia que nesse caso não precisava usar nenhum poder ou sexto sentido. De repente, um grupo de sete demônios cercou Alec separando-o de Lynx, que lutava com mais meia dúzia.
Existiam muitas espécies de demônios, e Alec havia estudado sobre um bocado delas em seu tempo recluso na biblioteca, mas muitos dos demônios presentes eram alguns que ele nunca tinha visto antes. Como os que o atacava agora. Pareciam demônios movidos a eletricidade. Seus corpos esqueléticos disparavam correntes elétricas azuis, e eles se moviam mais rápido que os olhos conseguiam ver. Borrões azuis disparando pela noite. Alec fez um círculo lento observando as criaturas que agora o rodeavam, analisando o oponente. Um deles avançou na direção de Alec, seguido pelos outros. Enquanto eles atacavam, Alec sentia como se estivesse levando uma série de chicotadas, o choque atravessava seu corpo, mas eles se moviam rápido demais. Movido pela fúria de se sentir impotente contra eles, e pelo todo resto que já estava acontecendo aquela noite, Alec tentou reunir seu poder.
Mas nada aconteceu.
Ele não sabia o motivo, mas certamente tinha a ver com algum bloqueio mental causado pelo choque emocional dos eventos. Ele se concentrou, enquanto as criaturas ainda o atacavam. Ouviu Lynx gritar seu nome, mas era como se ele estivesse em baixo d'água. Fechou os olhos e sentiu o tempo desacelerar. Uma miríade de imagens começou a piscar atrás de suas pálpebras. O céu perfeito da cidade coberto de fogos, e então a barreira rachando. Demônios invadindo aos montes. Pessoas correndo e gritando. Cadáveres por todo o lado. O povo assustado e com medo. A Cidade dos Mestiços destruída. Luce indefesa.
O último rosto que piscou em sua mente foi o de Azazel sorrindo zombeteiramente. Azazel o príncipe da ira, rei das armas, cujo anjo caiu por cobiçar as mulheres humanas. Alec tinha lido muito sobre ele, conhecendo o inimigo. O inimigo que ele tanto odiava e queria matar com as próprias mãos. Ele finalmente sentia que tinha um propósito na vida, e sentiu que aquele lugar era exatamente onde tinha de estar, com aquelas pessoas. E não deixaria um anjo caído lunático e um demônio patético estragarem nada disso.
Alec abriu os olhos e o mundo explodiu em branco.
Ele tinha uma vaga noção de Defensora ardendo em sua mão, mas ao redor, ele não enxergava mais nada além de luz incandescente e ondas de fogo branco disparando em círculos para fora de seu corpo. O poder tinha se libertado dele em toda sua glória e estava queimando. Alec queria que queimasse. Tudo. Ele queria incendiar o mundo até restar nada além de cinzas. Naquele momento ele não tinha consciência. Ele era o próprio fogo celestial. Foi então que outro rosto piscou em sua mente. Cabelos pálidos e olhos dourados, o sorriso mais bonito do mundo. Alec não podia queimá-lo. Também não podia queimar outras pessoas que lhe eram muito importantes. Não podia queimar inocentes.
Alec caiu de joelhos, a luz que saia dele agora não era mortal. Era como um banho de sol morno em uma tarde de outono. Mas, ainda assim, Alec não conseguia controlá-lo, não conseguia retrair seu poder. Ele apoiou a testa no cabo de Defensora por um momento, e depois encarou a lâmina, era a única coisa que conseguia enxergar. Ela brilhou como se piscasse para ele, e Alec entendeu o que precisava fazer. Ajoelhado, ele segurou o cabo com as duas mãos e se concentrou. Defensora era parte dele agora, ele era seu mestre. Pensou na espada como um ímã, e assim ela se tornou um, atraindo todo aquele poder exposto para si. Não estava roubando ele de Alec, mas agindo como um condutor. Uma guardiã. Uma chave.
Aos poucos, a noite iluminada pelo poder de Alec foi se apagando. Quando acabou, o silêncio no ar era estupefato. Alec suspirou aliviado e ergueu a cabeça. Um mar de rostos encaravam ele com um misto de deslumbramento e perplexidade.
-O que houve? - ele se levantou.
-Você matou todos eles. - respondeu Angela surpresa. -Queimou os demônios, aparentemente, todos os demônios.
Era verdade. Não havia um demônio sequer nos arreadores, nem sinal de mais deles se aproximando. Apenas o esquadrão estava ali. Os soldados ao redor pareciam petrificados pelo que acabaram de testemunhar.
-Alguém se machucou? - Alec olhou em volta preocupado.
-Não. - respondeu Cain. -Você queimou só os demônios.
-Acabou? - indagou Cadu meio confuso.
-Isso está longe de acabar. - Levi disse sombriamente, ele franziu o rosto. -Cadê o Gabriel? Ele estava aqui...
Alec olhou em volta, mas não estava buscando Gabriel e sim o primeiro que ele procurava em qualquer situação. O primeiro que também sempre vinha até ele, e não veio. Um momento atrás ele estava aquecido, agora se sentia congelado da cabeça aos pés.
-Cadê o Lynx? - perguntou ouvindo o desespero na própria voz. Alec perambulou pelos destroços da luta procurando ele. -Lynx!
-Alec. - Gabriel surgiu atrás deles, vindo de uma das ruelas apertadas. -Ele foi levado. Lynx foi levado pelos demônios. Tentei impedir, mas fui ferido no caminho.
Ele arrastava uma de suas pernas, que estava gravemente ferida, ao caminhar. De repente, desabou no chão cuspindo sangue, ele também segurava o lado do corpo que vazava sangue na região das costelas.
-Gabs! - Levi correu até ele, segurando-o em seu colo. -Calma, está tudo bem.
Levi pareceu ter dito isso mais para si mesmo, como se ele precisasse se acalmar.
-Que demônios? Para onde? - Alec tentou manter a voz controlada. Tentando também não ser indelicado, pois Gabriel estava ferido, mas ele só conseguia pensar em Lynx.
-Demônios alados pegaram ele. - respondeu Gabriel com o rosto pálido. -Tentei derrubá-los com flechas, mas um demônio saiu do beco e me atacou.
-Que direção? - Lynx tinha sido raptado. Por demônios. Como? A visão de Alec ficou meio turva enquanto ele tentava não surtar.
-Norte. - disse Gabriel. -Para a floresta.
Ele saiu andando, sem se preocupar com os protestos dos amigos.
Lynx tinha sido levado sabe se lá para onde. Estava sozinho. Por mais que Alec não duvidasse das capacidades dele, tinha um péssimo pressentimento. Lynx provavelmente tinha sido capturado já ferido ou desacordado, pois um demônio medíocre jamais teria conseguido capturá-lo consciente.
Ouviu vagamente Angela dizendo que precisavam reagrupar e montar um plano de resgate, mas não havia tempo. Alec correu até não conseguir mais ouvi-los. Era como se ele estivesse em piloto automático. Mal se lembrava de como tinha chegado até as bordas da floresta, só sabia que poucos minutos depois já estava lá. Não havia nenhum sinal de demônios ou portais. Alec abafou as emoções tentando pensar logicamente, para não se desesperar ainda mais, mas a angustia crescia abafando sua racionalidade.
Ele cravou as próprias mãos nos cabelos puxando-os em um momento de descontrole. Com a respiração ofegante ele abaixou aos mãos e olhou ao redor. A floresta era pacifica sob o brilho das luas. As árvores se moviam preguiçosamente com a brisa, e o barulho dos grilos preenchia o ar. O cenário alheio a batalha avassaladora que havia ocorrido a pouco. Foi no meio daquela calmaria absurda que Alec sentiu uma corrente de ar. Um redemoinho preto translúcido se formando a sua frente, trazendo consigo duas figuras.
Os Irmãos Sombras.
Alec imediatamente sacou Defensora, pronto para atacar. Os gêmeos permaneceram inabalados, sem qualquer menção de se defenderem. Seus rostos bizarramente idênticos encaravam Alec, sem expressões.
-Viemos ajudar. - disseram ao mesmo tempo.
-Ah, sim. - Alec cuspiu com sarcasmo. -E eu vim aqui meditar sob o brilho da lua.
Alec atacou. Uma série de movimentos ágeis que só fez com que se irritasse. Lutar com os gêmeos era como lutar com o ar. Eles sumiam e reapareciam se misturando as sombras dos galhos das árvores. Ele parou depois de um momento, sem sequer ofegar, encarando-os em um impasse.
-Não viemos lutar, Alec. - disse o que poderia ser Kevin ou Kaius. Não importava.
-Onde. Está. Lynx? - a voz de Alec era como farpas de gelo.
-No inferno. - respondeu um deles. -Levado sob as ordens do Ladrão de Almas.
Considerando a aparição repentina deles, Alec já esperava essa resposta. Mas os gêmeos sabiam que sua pergunta tinha outro significado. Me leve até ele agora.
-Viemos aqui para levá-lo até Lynx. - disse o outro gêmeo. -Só você pode salvá-lo.
-Sei, como se eu fosse confiar em vocês. - Alec rebateu. -Depois de traírem Luce. Depois dessa destruição. Olhe bem para a cidade! Muitos híbridos morreram! A culpa é de vocês também!
Pela primeira vez, os irmãos expressaram alguma emoção. Seus rostos vazios se transformaram em ódio e tristeza simultaneamente. Alec franziu o rosto, confuso e com raiva.
-Esses ataques não foram coisa do Ladrão de Almas. - disse um irmão. -Ele não tem interesse na cidade. Só está interessado em você e Lynx.
Alec se endireitou, e embora fosse inútil, sua espada ainda estava estendida.
-Do que você está falando? Azazel e o Ladrão não trabalham juntos?
-Descobrimos que todos os ataques demoníacos são obra apenas de Azazel. - eles se aproximaram mais de Alec, andando tão suavemente sobre a grama que seus pés mal pareciam tocar o chão. -Só que o Ladrão de Almas sabe dos planos dele até certo ponto, e então se aproveitou dessa oportunidade para pegar Lynx.
-Vocês traíram Luce... Por que estão me contando isso? Por que eu deveria acreditar que querem ajudar?
Os irmãos se entreolharam.
-Não traímos Luce. - disseram. -Fingimos a traição para saber os planos do demônio. Fingimos nos aliar a Lilith, e assim conseguimos acesso ao inferno. Achávamos que os ataques demoníacos era coisa dele, mas nunca foi.
-E por que não contaram isso antes?
-Porque nosso novo objetivo passou ser descobrir para que ele queria você. Então continuamos fingindo para tentar descobrir. Ele também sabe coisas sobre o Azazel, e estávamos tentando pegar essas informações.
-Mas ele não diz. Só fala que é um acerto de contas.
Alec tentou pensar em todos os motivos pelo qual eles poderiam estar mentindo, mas não conseguiu encontrar nenhum que fizesse sentido.
-Onde está Lilith? - ele perguntou com suspeita.
Um dos irmãos deu de ombros desdenhosamente.
-Matamos ela e dissemos que foi morta por Luce.
Alec ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. Se fosse verdade, era um final medíocre para uma vilã medíocre. Bem merecido.
-Me levem até Lynx. - foi praticamente uma ordem, mas os gêmeos assentiram. -Suponho que o melhor jeito seja fingir que me capturaram também.
-Não será preciso. O demônio sabe que você ira atrás de Lynx, estamos aqui justamente para guiá-lo.
Alec analisou os dois. Mesmo se estivessem mentido, ele não tinha escolha. Os gêmeos eram a única forma de chegar até Lynx. Caso as coisas ficassem complicadas, Alec pensaria nisso depois.
-Como chegamos lá? - quis saber.
-Por temos a confiança dele, temos acesso a um dos portais. - os irmãos estenderam a mão para Alec. -Se abrira de boa vontade para nós.
Alec se aproximou desconfortavelmente dos dois, segurou a mão assustadoramente fria de cada um deles, e o que aconteceu a seguir foi aquele redemoinho de sombras engolindo ele. A sensação era claustrofóbica. Imaginou que estar dentro de uma centrífuga seria assim. Alec fechou os olhos e lutou conta a sensação de estar dentro de um daqueles brinquedos de parque que ficam girando sem parar. Quando a tontura finalmente passou, e ele sentiu o chão firme sob os pés, abriu os olhos e assimilou o cenário.
O inferno era exatamente como o inferno deveria se parecer na visão dele. Mas, ao mesmo tempo, era assustadoramente parecido com o mundo mortal. Ele estava diante de uma paisagem morta. Uma planície de areia se estendia além do que os olhos podiam ver. Haviam árvores carbonizadas aqui e ali, e o céu tinha cor de ferrugem. O ar era pesado, com cheiro pútrido de lixo e outras coisas apodrecendo. Não muito longe haviam montanhas enegrecidas se erguendo contra o céu vermelho aguado.
-Isso é o inferno? - Alec perguntou meio decepcionado. Apesar de ser horrível, ele achou que faltava um pouco de rios de lava ou talvez o lamento dos condenados, mas era estranhamente silencioso.
-Uma parte dele. - respondeu o gêmeo que estava a esquerda de Alec. -O inferno tem muitos níveis.
-Aqui é o mais vazio. - complementou o da direita. -Entediante, se quer minha opinião.
Alec ainda não sabia diferenciá-los, mas notou que um deles sempre tinha um leve desdém na expressão e nas palavras.
-Ali é o território dele. - apontou Kevin?
-As montanhas? - Alec encarou o conjunto de montanhas ao longe, afiadas como cacos de vidro escuro, enfiados na terra.
-Sim. - eles começaram a andar e Alec foi atrás, com os pés afundando desconfortavelmente na areia.
-Por que estão me ajudando? Mesmo que não tenham traído Luce, nem me conhecem.
Eles olharam para Alec como se a resposta fosse obvia.
-É verdade que não nos conhecemos muito, - um dos irmãos falou. - mas a partir do momento que se juntou a Cidade dos Mestiços e ao círculo de Luce, nossa lealdade se estendeu a você também.
Alec ficou encabulado e confuso. A relação dos integrantes do círculo de Luce era algo que ele nunca tinha presenciado. A familiaridade, cumplicidade, o afeto e esse nível de lealdade. Ainda era meio estranho para ele. Mais estranho ainda que ele fosse parte disso, sem ter feito nada para merecer.
-Sou Kevin, a propósito. - o da direita falou. O mais sarcástico. -Ele é Kaius.
-Sem querer ofender, mas eu não vou conseguir identificar vocês a menos que usem roupas diferentes ou um crachá, com os nomes.
Surpreendentemente, eles riram. Alec não estava falando sério mesmo, agora sabia que o com cara de deboche era Kevin e o mais reservado era Kaius.
-Está pronto? - perguntou Kaius. Eles tinham andado por quase meia hora, e pararam diante das montanhas que eram ainda maiores do que pareciam.
-Sim. - Alec assentiu, e seguiu os gêmeos.
Eles passaram por uma fissura na pedra da montanha e Alec se viu em um corredor longo e estreito. Aparentemente, o lar doce lar do Ladrão de Almas, era esculpido na própria pedra da montanha. Ele ficou atento no caminho e aos irmãos. Apesar de tudo, não confiava cem por cento neles. E se fosse outra armadilha? Para ser sincero, não confiava mais nem na própria sombra. Ele sentia-se tenso, como se cada nervo do corpo estivesse esticado ao limite.
A sensação térmica naquele espaço limitado era ainda mais abafada do que do lado de fora, como se estivesse dentro de uma sauna. Os barulhos dos próprios sapatos ecoavam no chão úmido e irregular, mas os passos dos irmãos eram silenciosos. Havia um barulho de goteira, e ao longe vozes falavam baixo, mas dava para sentir tensão e conflito nas palavras. O coração de Alec saltou, ele reconheceu o timbre de Lynx vindo do final do corredor e a vontade de simplesmente sair correndo foi grande, mas ele se conteve.
Logo o corredor se abriu para um grande espaço circular. O chão ali era de um material liso e polido, refletindo as formas da caverna e dos presentes de um jeito distorcido, como sombras na água. Haviam pilares grossos de pedra e correntes nas paredes. E a primeira coisa que Alec viu, foi Lynx acorrentado a um dos pilares. Ao vê-lo, o anjo caído se debateu e arregalou os olhos, balançando a cabeça com pesar. Alec sorriu tristemente para ele.
E então A segunda coisa que Alec assimilou, virou seu mundo de cabeça para baixo. Foi como se ele estivesse passando pelo portal novamente, girando e nauseado. Amarrados em outras duas pilastras, estavam seus pais. Sujos, feridos e desacordados, com mordaças na boca. Ele parou abruptamente no meio do caminho.
Contudo, algo que está ruim, sempre pode piorar.
-Ora, finalmente nos encontramos de novo, querido Alec. - disse uma voz que fez Alec congelar até o último fio de cabelo.
De frente para a entrada por onde viera com os irmãos, havia um trono de ferro retorcido decorado com espinhos, e a figura familiar de um homem se sentava despreocupadamente nele, examinando as próprias unhas.
-Você? - Alec estava completamente pasmo.
O demônio sorriu.
-Por essa você não esperava, não é?
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