Capítulo 42 - Beijo Venenoso
Luce gostava de observar o movimento da cidade escondida nas sombras. Sempre foi assim, uma criadora observando sua criação. Não era que não gostasse de se juntar ao próprio povo, mas preferia não interferir. Apenas olhar os rostos sorridentes, era o suficiente para fazê-la feliz. Luce também era um pouco introvertida, então sua bateria social durava muito pouco. Tendo sua cota de inteiração naquela noite, resolveu retornar para o castelo e deixar a cidade comemorar em paz.
Uma vez no castelo, ela foi para os próprios aposentos, em vez de a sala de reuniões. O seu quarto, na verdade era um apartamento adaptado no último andar do castelo. Um pouco diferente do resto. Havia uma sala de estar, banheiros e um quarto com uma cama, embora ela se perguntasse as vezes porque tinha se dado ao trabalho de escolher até a cor das paredes, visto que não precisava de nada daquilo. As vezes, ela se sentia ridícula. Tinha caído por desejar ser humana, tentava viver como uma, mas jamais seria um deles. Sempre seria esse ser imutável, inumano, independentemente de suas emoções não serem diferentes das de uma pessoa comum. Mas no final, era tudo que importava, não é? Como ela se sentia. Só que ultimamente, ela não gostava da forma como vinha se sentindo. Principalmente quando olhava para Amarantha. Se sentia tola e fraca. Porque era isso que o amor fazia com as pessoas.
-Você devia ter ficado mais. - Amarantha disse.
-Já fiquei o suficiente. - geralmente, Luce não respondia, mas tinha se cansado de ignorá-la. -E sua presença também está deixando todo mundo meio desconfortável. Todos sabem que você trabalha para ele.
-Não intencionalmente, fui forçada. - ela soou meio petulante e Luce lhe deu um olhar.
-Supondo que seja verdade, o que espera que eu faça? - ela perguntou com um certo desespero. -Me diz, Amarantha, o que devo fazer?
-Eu não sei. - Amarantha respondeu. -Não sei o que eu devo fazer para que acredite em mim.
Amarantha parou o lado dela na sacada, sem se preocupar com o fato de que Luce podia simplesmente jogá-la do último andar. Não parecia se importar mais com qualquer coisa que acontecesse a ela.
-O problema - começou Luce olhando-a nos olhos. - é que acredito. Exatamente por isso, não sei como lidar. Passei anos odiando você e agora... Não sei mais quem devo odiar. Azazel?
Amarantha ficou surpresa com o rumo da conversa, e tentou esconder o rosto virando-se para encarar o céu.
-Deve me odiar ainda. - falou. -Não trabalhei para Azazel intencionalmente, mas se eu não tivesse sido tão burra, não teria caído nas mãos dele para começar. Nada disso teria acontecido.
-Bem, - Luce imitou a posição dela, apoiando os cotovelos no parapeito. - isso é verdade.
Amarantha soltou um ruído contido. Era uma risada.
-E agora? O que fazemos então?
-Não podemos mesmo começar de novo? - Amarantha olhou para ela de lado. -Temos tempo e dessa vez não planejo ir a lugar nenhum.
Luce tinha tanto medo de se entregar. Simplesmente recomeçar não era tão fácil quanto parecia, e no fundo, Luce sabia que não tinha acabado, algo estava por vir. No entanto, tinha mantido Amarantha ao seu lado durante dias. E durante dias elas conversavam a mesma ladainha. Talvez Amarantha estivesse convencendo ela pelo simples cansaço de repetir as mesmas coisas todos os dias, e Luce percebeu que a fonte de sua raiva não era porque não acreditava nela e justamente o oposto. Como podia confiar tão facilmente assim? Era uma idiota? Todos aqueles sentimentos enterrados a séculos atrás, sentimentos que ela quis arrancar do peito com as próprias garras, acabou descobrindo que estavam todos lá, enterrados profundamente embaixo de camadas de ódio, cujas camadas derreteram assim que ela viu Amarantha machucada naquele dia na floresta.
Quando ela se virou, Amarantha já estava de frente para ela. O rosto oval esperançoso como a cor de seus olhos verdes. O cabelo ruivo brilhava a luz do luar, a pele negra estava estranhamente pálida, com sombras escuras sob os olhos, mas, mesmo assim, era tão suave ao olhar quanto Luce sabia que seria ao toque. Ela esticou a mão quase num reflexo e a encostou no rosto de Amarantha, amparando sua bochecha com a palma, ela fechou os olhos e respirou fundo. Ao abri-los, encarou Luce de cima.
-Você é muito baixinha.
Luce piscou como se de todas as coisas, aquilo fosse a última coisa que esperasse que ela fosse dizer. Então o canto de seus lábios tremeram, e ela mudou de forma. Os ossos se alongando, e a pele se esticando sobre suas formas, até que ela ficasse na mesma altura de Amarantha.
-Melhorou? - perguntou para a mulher a sua frente.
-Você fica bem de qualquer forma.
Luce se aproximou, erguendo a outra mão e segurando o rosto dela, e então a beijou delicadamente. Os lábios dela eram macios como Luce sempre achou que seriam. Ela puxou Amarantha ainda mais para perto, e aprofundou o beijo. As mãos de Amarantha envolveram sua cintura, e uma espécie de choque percorreu o corpo das duas quando os corpos se tocaram, mesmo através das roupas. Luce não pode evitar a semente de felicidade que começou a brotar em seu peito naquele momento, mesmo tentando lutar contra isso. Tentando afogar as esperanças que lutavam contra o medo de se machucar de novo.
Talvez fosse a noite calma e alegre que a estivesse fazendo agir tão levianamente, mas Luce não se importava. Amarantha se derreteu em seus braços, movendo as mãos para abraçar Luce e acariciar seus cabelos pretos macios como seda. Era o primeiro beijo delas. No céu, não ousaram fazer tal coisa, e depois que Luce caiu, era tarde demais. No entanto, agora eram livres. Luce era rancorosa, mas se esforçaria para deixar o passado para trás, até mesmo porque parte da culpa não era de Amarantha. Elas se entregaram ao beijo, explorando essa experiência humana como sempre desejaram fazer. Luce sequer sabia se estavam fazendo certo, mas parecia certo porque era com Amarantha.
Foi então que ela sentiu um gosto amargo na boca, e o momento se estilhaçou em milhares de cacos afiados perfurando seu coração. Ela sabia que gosto era aquele. Se afastou abruptamente de Amarantha, embora soubesse que era tarde demais.
-Luce... - ela franziu o rosto em confusão.
A expressão de Luce de repente, se tornou pesarosa, deixando Amarantha ainda mais confusa.
-Eu acredito em você, Amarantha. - disse. -Mas eu sei porque você está aqui. Querendo ou não, você é uma armadilha dele.
-Eu não...
-Está tudo bem. - Luce disse. -Vou cuidar... vou cuidar disso.
De repente, Luce cambaleou para trás, se apoiando no parapeito da sacada.
-Luce!? - Amarantha amparou ela pelos ombros, chamando seu nome, mas Luce a ouvia como se estivesse muito longe.
Luce acreditava que Azazel tinha usado Amarantha, porque ele continuava usando. O gosto amargo que Luce sentiu era familiar porque ela o conhecia muito bem. Nos primeiros anos como caída, Luce tentara acabar com a própria vida de diversas formas. Uma delas foi o envenenamento, não tinha sido nada efetivo, mas toda vez que ela tentava um veneno diferente, passava mal durante dias.
Amarantha tinha esse gosto agora, de veneno. E o ódio queimou em Luce. Não por ter sido envenenada, mas porque isso significava que Amarantha também estava doente, embora não pudesse morrer. Dava para notar em seu rosto abatido, e nas sombras sob os olhos. Amarantha só não tinha sucumbido ainda por causa do veneno, porque se feito da forma correta, era uma técnica que tornava a pessoa venenosa, sem que ela fosse muito afetada.
E Azazel tinha pensado em tudo, preparado tudo para esse exato momento. Vinha envenenando Amarantha durante sabe se lá quanto tempo, assim como tinha envenenado o relacionamento delas lá no começo.
Luce tentou resistir, mas a tontura era muito forte. O gosto desse veneno, no entanto, embora familiar, era muito mais forte. Luce não podia morrer, mas seu sistema não estava preparado para isso, e Azazel certamente tinha alterado esse veneno para ser mais efetivo em anjos. A forma como ela sentia a fraqueza dominar seu corpo deixava isso bem claro. Ela começou a sentir náuseas, e a cabeça parecia que ia cair do pescoço. Tinha uma vaga noção de que estava no chão com Amarantha desesperada segurando-a, mas não tinha forças para reagir. Usou todas as forças que lhe restava para dizer:
-Veneno.
Dar ao menos uma dica do que estava acontecendo, mesmo sabendo que não seria muito útil. Tudo ficou ainda pior quanto Luce ouviu os barulhos. Reconheceu os dos fogos de artifícios, mas em seguida veio o pior barulho que poderia ouvir. O mesmo barulho que ouviu setecentos anos atrás.
O barulho das barreiras caindo. Não precisava ver para saber como era, pois conseguia sentir fundo dentro do próprio ser. Como se sua alma estivesse rachando. Depois disso, a escuridão finalmente a reivindicou.
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