3° Capítulo: Dois dias atrás
Como eu me arrependo do dia em que saí para caçar.
Era uma tarde ensolarada de inverno, algo raro de acontecer. Eu estava apenas caçando um veado para o jantar naquele tranquilo domingo quando, de repente, em questão de minutos, ou horas, confesso que talvez a adrenalina na caça tenha me feito perder a noção do tempo, percebi que as nuvens já estavam completamente densas e carregadas. Logo começou a nevar, e em grande volume. Como pude ser tão tolo e não imaginar que isso poderia acontecer? Tive que ser rápido e encontrar um local para me esconder, pelo menos até essa nevasca passar.
Ao olhar por entre as árvores, avistei uma luz, ou melhor, parecia uma pequena chama de lamparina, uma esperança em meio ao perigo que me encontrava. Fui me aproximando aos poucos, sentindo como se não tivesse muita saída. Conforme me aproximava, notei o quão velha era aquela residência: uma cabana com palhas nas telhas e frestas nas paredes. Minha primeira reação foi de alívio, mas logo senti um calafrio ao pensar em quem, ou o que, poderia estar lá dentro.
Sem muitas opções, bati na porta, mas ninguém respondeu. Empurrei-a levemente e, para minha surpresa, estava destrancada. Entrei cautelosamente, iluminando o caminho com a luz fraca de minha lanterna. O interior estava tão desgastado quanto o exterior, com móveis antigos e poeira cobrindo tudo.
Eu fui forçado a pernoitar lá dentro, pois a neve que caía incessantemente não dava trégua, e se tentasse voltar para minha casa, provavelmente me afundaria nos 30 centímetros que já se acumulavam no chão.
Naquela noite, fui assombrado por sonhos estranhos, a maioria deles se dissolvendo na névoa do meu esquecimento ao despertar. Exceto por um. Este sonho permaneceu vívido, gravado na minha memória com uma clareza perturbadora. Eu estava andando naquela mesma floresta, mas algo estava errado, tudo parecia deslocado, antigo, como se eu tivesse sido transportado para um tempo muito anterior.
Enquanto caminhava, avistei um prédio ao longe, suas linhas sombrias e janelas estreitas se destacando na penumbra. Era um orfanato. Não sei como, mas a certeza me atingiu como um golpe, e fui fatalmente atraído para ele. As árvores pareciam se fechar ao meu redor, empurrando-me em direção àquela construção apavorante. Quando finalmente alcancei a entrada, uma força invisível me lançou contra uma placa informativa enferrujada. As letras, gastas pelo tempo, ainda eram legíveis: "Orfanato News House".
A realidade do sonho era esmagadora, cada detalhe estava absurdamente claro. A madeira podre das portas, o som distante de crianças chorando, e a sensação opressiva de estar sendo observado. Um calafrio percorreu minha espinha. Só de recordar essa cena, engulo seco, sentindo novamente a angústia e o terror que me envolveram naquele momento.
A porta do orfanato se abriu com um ranger arrepiante, convidando-me a entrar na escuridão. O interior estava mergulhado em sombras, mas uma luz fraca, quase etérea, emanava de algum lugar dentro, chamando-me. Cada passo ecoava sinistramente pelo corredor vazio, e a sensação de estar sendo seguido nunca me abandonava. Foi então que vi, no fundo do corredor, a figura de um homem. Ele estava imóvel, virado de costas para mim, mas eu sabia, instintivamente, que era ele, o mesmo homem do poço.
A presença dele emanava uma maldade palpável, e eu sentia meu coração bater descontroladamente. Ele se virou lentamente, revelando um rosto marcado por cicatrizes e olhos que pareciam brilhar com uma luz malévola. Seu pescoço estava envolto por uma corda, ou melhor, uma forca, tão apertada que parecia impossível ele estar vivo.
— Preciso que você faça algo por mim — ele disse, a voz rouca e sussurrante reverberando pelo corredor, como se as paredes estivessem ouvindo. — Quando você acordar, encontrará uma caixa ao lado da porta. Deve levá-la para dentro do orfanato.
Senti um nó na garganta, as palavras que eu queria gritar ficaram presas, sufocadas pelo terror.
— Ah, mas não tente se opor, seria tão... desastroso. Se você não cumprir, bem, vamos apenas dizer que a morte não será um conforto para você. — Ele fixou os olhos em mim, e um frio percorreu minha espinha. — Terei um prazer imenso em tornar sua vida um verdadeiro pesadelo. Você tem até amanhã à meia-noite. E, acredite, eu sou incrivelmente paciente.
Ele falou de maneira tão direta e, ao mesmo tempo, sarcástica, que naquele instante percebi que não havia escapatória. Estava, sem dúvida, diante de uma entidade totalmente obscura e maligna, sem opções, apenas um caminho à frente, envolto em medo e calafrios.
Acordei com um sobressalto, o coração disparado e a respiração ofegante. A luz do dia filtrava-se pela janela, oferecendo um alívio temporário, mas o pânico ainda pulsava em minhas veias. Ao olhar para a porta, lá estava ela: a caixa que ele mencionara, pequena e sinistra, como um presságio de maldição. O terror do sonho ainda me mantinha preso, como se garras invisíveis me segurassem, lembrando que não havia outra escolha a não ser cumprir a vontade daquele homem ou enfrentar as consequências de desafiá-lo. Mas a dúvida me consumia: como algo que parecia tão irreal poderia se materializar diante de mim? Era um sonho? Ou a realidade já havia se desfeito, mergulhando em um abismo de insanidade?
A tempestade finalmente havia dado uma trégua, mas o peso da noite ainda pairava sobre mim. Com esforço, consegui voltar para casa. Sther, minha esposa, ainda estava em um sono profundo, alheia ao pesadelo que me consumia. Com um impulso quase involuntário, escondi a caixa no porão, um ato que me deixou com um gosto amargo na boca. Precisava de um banho para apagar a imundície da cabana e, quem sabe, da alma.
Ao sair do banho, a umidade no ar parecia opressiva, como se estivesse carregada de segredos não revelados. Encontrei Sther já acordada na cozinha, e seu olhar curioso rapidamente se transformou em um interrogatório implacável sobre onde eu havia passado a noite. A intensidade de suas perguntas parecia penetrar na minha alma, tornando cada resposta uma luta contra a verdade que eu tentava omitir. Com palavras trêmulas, consegui acalmá-la, e compartilhamos um café que parecia mais uma cerimônia fúnebre do que um momento de aconchego.
Depois do café, declarei que precisava resolver algumas questões no porão e pedi que não me incomodasse. Assim que a porta se fechou, a solidão se abateu sobre mim como um manto pesado. Passei uma hora inteira lutando contra aquela maldita caixa. Embora fosse feita de papelão, sua solidez parecia sobrenatural, como se escondesse algo terrível. A fita adesiva que a selava era tão resistente que desafiava qualquer lâmina, e minha faca, mesmo afiada, não parecia fazer diferença alguma. Desesperado, chutei a caixa para longe.
Quando abri os olhos, o homem do meu sonho estava ali, ao lado da caixa, como uma sombra que havia cruzado a tênue linha entre os mundos.
— V-você é o homem do meu sonho. Mas como isso é possível? Como entrou aqui? — eu estava aterrorizado.
— Isso não importa, meu caro. Você quer realmente falhar em cumprir o que pedi. Se não lembra posso clarear as coisas para você — seus olhos brilhavam com uma malevolência insaciável.
— Mas veja bem, não vou perder meu tempo, e o seu também... — Uma risada cortou pausa dramática que o mesmo havia dado, inicialmente baixa e rouca, como o raspar de unhas em um quadro-negro. Gradualmente, ela foi crescendo em intensidade, reverberando pelas paredes e ecoando como um trovão distante. Era uma risada cheia de fria e psicótica, gotejando sarcasmo e desprezo, cada gargalhada prolongando-se mais do que a anterior, como se alguém estivesse saboreando cada momento de terror que provocava. Aquela risada se infiltrava na mente, corroendo a sanidade e deixando um rastro de pavor inexplicável.
— Até amanhã à meia-noite, essa caixa deve estar dentro do orfanato, ou você pode dizendo adeus a sua vidinha medíocre.
Depois dessas palavras, ele desapareceu, deixando um silêncio no ar. Eu pisquei, e de repente, não estava mais no porão. Acordei com um sobressalto, encontrando-me deitado na minha cama, o cobertor pesado sobre mim. Não conseguia lembrar como havia saído do porão, nem como tinha adormecido. Tudo que acontecera parecia um pesadelo interminável, um terror iniciado naquela maldita cabana. Pensando bem, teria sido melhor morrer soterrado na neve.
O dia foi passando, e não parava de pensar naquela loucura, duvidando de minha própria sanidade, e aterrorizado com a possibilidade daquele espírito sombrio cumprir o que prometeu. Fiquei pensando em um modo de entrar no orfanato sem ser visto e onde deixaria a caixa sem gerar dúvidas. Lembrei-me de um dia que fui chamado para consertar uma das camas das crianças e me recordei de que havia um sótão onde eu poderia esconder a mesma.
No dia seguinte, acordei antes do sol nascer, peguei a caixa no porão, que ainda estava intacta, nem mesmo o pó a atingia. Carreguei-a pelas ruas escuras e desertas da vila. Ao chegar ao estabelecimento, encontrei o portão aberto, que também dava ao cemitério, sobre o qual tenho péssimas experiências que prefiro nem adentrar nos detalhes. Foi muito fácil entrar, pois tudo estava inexplicavelmente destrancado, menos a porta do sótão. Tive que pensar rápido numa solução. Escondi-me no banheiro e esperei as crianças saírem. Depois de a última sair, analisei o quarto e peguei meu pé de cabra, que havia levado por debaixo da jaqueta térmica. Não parei para pensar no motivo de ele estar lá, apenas o peguei e arrombei a porta do sótão. Após cinco pancadas, ela abriu, e lá escondi a caixa. Depois disso, saí da construção correndo e comecei a sentir pena de quem fosse encontrá-la.
No entanto, mesmo após cumprir o que o espírito ordenara, o tormento não cessou. A entidade continuou a atormentá-lo incessantemente, deixando um rastro de agonia. Ninguém sabia em detalhes as atrocidades que ele ainda enfrentava. Sentia a presença maligna em cada canto, em cada sombra, sua sanidade esvaindo-se lentamente, transformando cada dia em um martírio insuportável. Acho que era exatamente disso que aquela coisa se alimentava. Por quê? Isso ainda é um mistério.
Dias depois, soube que ele mesmo foi encontrado morto na floresta, enforcado. As investigações rapidamente concluíram que se tratava de um suicídio, mas de fato, poucos sabem o que de verdade aconteceu.
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