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Aquele que veio das marés

— Andem rápido! Se quiserem que a morte de vocês seja ligeira e frívola. Façam o trabalho de esticarem as pernas! — o comando doloroso acompanhava o açoite de chicote nas costas maltratadas dos escravos.

Ele esbanjava ira a cada vociferar contra os maltratados, mesmo que a voz não representasse a maior das patentes. Pelo contrário. Não passava de um soldado comum em meio ao pelotão enlameado. Nas laterais, filas de escravos eram arrastadas pelo trote dos cavalos sujos. Sangue e terra misturavam nas vestimentas, armamento, e na crina dos alazões.

Este pelotão, na companhia de duzentos homens, compunha a mais trágica — e cômica — interpretação da guerra. Pessoas à beira da morte se sentiam superiores por carregarem escravos ao abismo. Ali não existem almas. Tão pouco justos ou honrosos. O general, que tinha clara consciência da condecoração póstuma a vitória nas terras de Gales, não sorria diante o desastre.

Os soldados encaravam os escravos como a si mesmos. Amedrontados, enojados, enraivecidos. Sem salvação.

— General! — um deles, com barba crespa e entranhada de lama, o clamou.

O general mal deu atenção a seu homem. Cortejava o plaino das montanhas longínquas a leste. Observava o correr das nuvens. Uma rolinha parou no topo da crina do alazão. Olhava o homem, como se o admirasse.

Em meio ao pós-guerra. Ele se sentiu aliviado em saber que um pássaro tímido não se intimidava com a calma dele.

— É bom ser uma presa? — o cabelo louro estava bagunçado. — Saber que constantemente está em perigo. — o general tirou do bolso um pedaço de pão. Ofereceu ao animal. Ele sorriu assim que o pássaro pegou a comida — Deve ser bom viver com medo.

— General! — o berro afoito foi ressoado. Estressou o momento pacífico do oficial.

Ele se virou com desgosto para o pelotão. Afunilou a vista para o soldado que o chamava. O baderneiro, sem elmo, apoiava a mão nos corpos ósseos e fracos dos escravos. Comparados a animais acorrentados. Ele apontou oeste. Direcionava a visão de alguns homens para o litoral paisagístico. Levava o oficial a vislumbrar, dentre as ondas do mar, o rastejar de um garoto com algo nas costas — um corpo.

O jovem não permitiu que o corpo desacordado tocasse a areia. O cabelo loiro era pincelado pelo toque da deusa Áine. Não combinava com a violência das íris negras. Consumidas pela amargura que só veteranos de guerra conseguiam passar.

Quando o general o encarou conseguiu perceber que o moçoilo não estva ali sem motivação aparente. Na beira do mar havia uma pequena embarcação virada. Usada por ele para atravessar o mar.

"Ele remou sozinho até aqui?" O oficial ficou surpreso...

O garoto sentiu estar a ver deuses. Como um panteão. Carregavam almas a Odin. O cansaço o invalidava de precaução. Apenas continuou a rastejar os pés nus sob os cascalhos que rasgavam a sola do pé. A dor era expressada no ranger dos dentes.

— De onde vêm espírito sem rumo? — o baderneiro tagarelou ao garoto. — Tem belas mechas, gostaria de ir para cama por duas moedas de ouro?

Alguns soldados gargalhavam das insinuações feitas pelo ruivo. As risadas aumentavam de uma maneira irritante perante o silêncio da natureza.

— Cale a boca Ivarr! — o oficial silenciou o desrespeito dos demais. Contrário a eles, sentiu uma ligeira honra das atitudes do estrangeiro. — O que carrega consigo garoto? Um amigo de guerra?

— Ela... — a fala saiu exausta. — Quero enterrá-la no seu lar.

— Qual é a morada da sua mulher?

Nada saiu da boca do moribundo. Apenas soou um "tsc!" com a boca devido à inquietação do pelotão. O general nada falou. Respeitava o silêncio dele. Bufava em desagrado.

O oficial, infeliz, sentiu olhar para outro pássaro inocente, que almejava uma mísera migalha de pão para que pudesse sobreviver.

Este pequeno pássaro ansiava matar a fome no amontoado de corvos.

— Não ajudarei estrangeiros. Ache o seu próprio caminho caso não queira servir de escravo. — Ao concluir, o general voltou a trotar o alazão. Deixou de lado a cena romântica.

— Um cavalo! — o estrangeiro conclamava para o pelotão. — Não conseguirei levá-la até onde desejo no estado em que me encontro, ceda-me apenas um cavalo.

De novo, riem dele. O pedido soou um insulto cômico ao grupo de soldados que trilhavam o caminho pecaminoso do retorno para casa. Poucos eram os que tinham o privilégio de cavalgar.

— Lhe cedo a minha potranca por uma batalha garoto, almejas? — Ivarr atiçou o moçoilo. Ele desceu sorrateiro na areia em sua direção.

— Ivarr, temos que chegar logo a cidadela, o rei aguarda notícias — O oficial constatou, entediado.

— Só uma batalha Oskar! — bradou em retorno. — caminhar cansa! Se ele me ceder o desejo de entrar em Valhalla posso, com honra, ofertá-lo a minha égua.

O garoto olhava o avanço do baderneiro. Cauteloso. À medida que o ruivo ia em direção. Ele recuava. O barulho do aço da lâmina que saia da bainha lhe gelava a espinha. Era para valer. Agora o ato de pedir um cavalo podia conceder-lhe à morte.

— O que foi garoto? Não lhe pedi para dançar. — Ivarr continuava a andar na direção dele. Logo parou com uma cara de surpresa, como se percebesse algo óbvio. — Como pude ser tão burro. Não percebi que estava sem espada. — Ivarr voltou à cabeça aos companheiros — Cedam-lhe uma! — Os soldados gritavam em apoio ao estrangeiro. Jogaram uma espada na ponta do pé dele. — Agora não há desculpas para recuar, certo estrangeiro?

Ivarr alavancou uma estocada voraz. Alçou, com o erguimento das botas de metal, todo o sedimento. O estrangeiro subiu a espada. Utilizou dos dedos dos pés, e com destreza absorveu o impacto com a chapa da espada. Ele ainda segurava o corpo da mulher.

O cerrar dos dentes, e tremer dos pulsos, expunham a dificuldade que possuía em fazer as duas coisas. Ele havia segurado mal a espada. O peso do baderneiro o engolia. Portanto, direcionou o ataque do adversário para a areia. Conseguiu deslocar o corpo para o lado.

— Solte esse defunto, não vim para lutar contra dois corpos mortos. — Ivarr ajeitou o umbral — Ou farei questão de jogar ambos ao mar.

— Não vou soltá-la. — a faceta era como um Cão raivoso na proteção de um dono decrépito. Surrado e à beira da morte. Evitava ceder as forças ao carregá-la.

Os braços tremulavam. A respiração além das costas arqueadas o faziam parecer um combatente morto. Ele usava da espada como apoio para evitar o desmaio por exaustão.

— Insulta o nosso combate rapaz? Julga que me pode derrotar com este defunto nas costas? — Ivarr se via irritado com as fraquezas do adversário.

O baderneiro voltava a atacar o esfarrapado. Girava a espada em sequência. O baluarte da lâmina fazia o estrangeiro desequilibrar. Ivarr não almejava matá-lo. Visto que apenas forçava os golpes contra a lâmina do oponente. — Solte-a ou morrerá! Ordeno-lhe! — Ivarr se enfureceu.

— Vá à merda, velho! — Gritou o rapaz. Os soldados riram do baderneiro.

"Ouviu o garoto Ivarr! Está velho até para matar um marinheiro perdido!"

Gargalhadas eram ressoadas. O ruivo não era um oficial, mas a falta de respeito o irritava no âmago. Toda a raiva era direcionada a quem o subjugava. O desrespeitoso de lâmina fincada ao solo.

— Garoto, virar a sua espada de ponta cabeça... — Ivarr o afrontou sério. — É mais desrespeitoso do que as risadas.

O estrangeiro nada respondeu. Deixava o veterano raivoso.

O baderneiro ergueu a espada acima da cabeça. A fez se banhar no sol, e a desceu com brutalidade contra a lâmina do estrangeiro. Os gládios se chocaram. O barulho era tão acentuado como o bater das ondas. O garoto não aguentou a força exercida. O joelho cedeu contra os cascalhos. Rasgava a pele. A dor o incomodava.

O rapaz esquivava a lâmina. Usou do contrapeso do mais velho para desequilibrá-lo. Assim que conseguiu a oportunidade, gritou com ira. Girou a espada no ar. Ivarr conseguiu fugir do perecimento. Viu fiapos de barba deslizarem no vento. Contudo, algo se tornou mais importante do que a ruína do baderneiro.

O pano no rosto da moça falecida caiu por causa do movimento bruto do rapaz. Revelava algo que assustava Ivarr.

— Oskar! É uma elfa! — o subalterno bradou sem hesitar — Esse garoto é uma mina de ouro!

— Prendam-no! — Oskar deu o mando aos homens, que de imediato desceram a colina e imobilizaram o estrangeiro. Circundavam as espadas no pescoço — Levem o corpo da elfa na carroça, faremos esse garoto caminhar com os escravos.

— Não! — Ele não conseguiu fazer nada enquanto via a amiga ser retirada da proteção dele. As pontas afiadas o machucavam, mas ele não se importava — Soltem-na! Soltem-na! — Os pedidos beiravam no ódio e euforia.

Usaram algemas no pescoço e calcanhares. O forçaram a andar atrás de um cavalo enquanto via o corpo da elfa ser jogado na carroça. Ele tentou sair da formação de escravos, mas o puxão das correntes fez com que outros homens e mulheres — até mesmo crianças — caíssem perante o desespero dele.

Ivarr foi até o estrangeiro e o socou fundo do estômago. Retirou todo o ar dele. — Quebre a formação de novo, e corto a cabeça da elfa. — a fala o amedrontou. Fez o olhar enraivecido respeitar a impiedade.

O estrangeiro seguiu atrás do cavalo do combatente enquanto olhava para dentro da carroça.

Oskar, melancólico, olhava o estrangeiro uma última vez. Até um barulho o chamar atenção: o brado de apelo dos pássaros. Olhou para leste. Próximo à grama viu as rolinhas serem destroçadas pelos corvos nas sombras das árvores.

— Ser fraco parece um privilégio. Invejo lhe garoto. — Oskar olhou para frente. — Para Flensburg!

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