9. Zumbis, coca-cola e cheetos
𓅯 Capítulo 9 | O Canto dos Pássaros 𓅯
11 de fevereiro de 2022
Sexta-feira, 11: 14 a.m
Lucas parou em frente à porta entreaberta do quarto de Luan. O irmão estava com o rosto colado diante da tela do computador, o headset reluzindo em vermelho e azul. Hesitou por alguns segundos antes de bater com o nó dos dedos na porta.
— O que é? — Luan respondeu sem tirar os olhos do aparelho.
— Sou eu — Lucas disse, enfiando o rosto para dentro do quarto do irmão. Para a sua surpresa, o aposento estava organizado; exceto pelas roupas limpas sobre a cama e o lixo repleto de embalagem de bala.
— O que é? — Luan repetiu e olhou para trás, franzindo o cenho. Lucas não costumava interagir com ele, a não ser que fosse extremamente necessário. Havia um tempo que estavam afastados; e nenhum dos dois saberiam explicar o motivo. A falta de afinidade, talvez, ou a fase rebelde de Luan que nunca parecia passar.
— Poderia me emprestar a sua blusa de The Walking Dead?
Luan franziu o cenho novamente, encarando o irmão mais velho como se ele estivesse ficando louco.
— Mas você nem gosta dessa série — constatou.
— Por favor — Lucas pediu. O irmão deu de ombros, apontando para o guarda-roupa.
— Pega aí — e voltou a se concentrar no jogo. Lucas abriu o guarda-roupa e pegou uma blusa preta. Torceu o nariz, observando a estampa: o nome da tal série de zumbis em cinza, manchada de sangue, com mãos cadavéricas agarrando as letras. Aquilo não tinha nada a ver com ele, porém, achou perfeito para a ocasião.
Lucas estava saindo do quarto quando Luan disse, pausando o jogo e girando a cadeira:
— Você vai à festa hoje?
O olhar de Luan, quase debochado, lembrou-lhe de Alberto em suas brincadeiras para envergonhá-lo.
— Vou — ele falou, ainda incerto. Sua coragem se esvaía vez ou outra, deixando-o indeciso. No entanto, no último debate que teve consigo mesmo, às sete da manhã, o convenceu de que ele não seria o novo Lucas se ele negasse aquele convite. — Como sabe da festa?
— Eu sei de todas as festas — murmurou. — Mas essa não me interessa.
— Mas você adora zumbis.
Luan deu de ombros mais uma vez, voltando-se para a tela do computador. Deixou-o com seu jogo, levando a blusa que cheirava a perfume masculino consigo. Do corredor, Lucas sentiu o cheiro de algo no forno — provavelmente, alguma das tortas de Ben. Quando trocou de roupa e desceu até a cozinha, sem apetite algum, o padrasto já colocava o recipiente fumegante sobre a mesa. Lucas tinha certeza que, caso Ben não seguisse a carreira de músico, seria chefe de cozinha.
— Hoje coloquei cenouras — ele falou. — Torta de frango. Pensei em uma receita vegana, porém, Alfredo estava há dias no congelador sem que ninguém o tocasse.
— Alfredo? — Lucas fitou a torta, tentando despertar a fome.
— O frango — Ben respondeu. — Por favor, chame o seu irmão para almoçar. Sua mãe disse que hoje almoçaria fora, pois tem uma reunião depois do meio-dia. Vai fechar um projeto e ficaremos ricos.
Lucas sentou-se em uma das cadeiras.
— Luan está jogando. Não vou arriscar ser atingido por um mouse voador.
— Essa blusa é de Luan — observou Ben, cortando a torta e inalando o cheiro apetitoso de sua obra-prima gastronômica.
— Sim. Eu vou à festa — o rapaz justificou. — O tema será mortos-vivos. Isso aqui é o máximo que posso fazer.
— Hum. Muito agradável. E o que o fez mudar de ideia? — ele perguntou, olhando-o de esguelha.
Lucas deu de ombros, perguntando-se o mesmo. Ele não sabia exatamente. No fundo, ele queria tentar. Tentar algo diferente. Testar a si mesmo, mesmo que ele seja humilhado pelo próprio ego.
— Pensei no que você disse naquele dia — ele admitiu.
— E posso saber que horas?
— Às três da tarde — falou, alheio ao olhar de Ben sobre ele. O súbito nervosismo o fez jogar o pedaço de torta fora do prato. Ele não queria pensar naquilo, apesar de não ter conseguido fazer absolutamente nada desde que calara a voz medrosa de sua mente e decidira ir.
Ben concordou com a cabeça enquanto mastigava, parecendo feliz por aquela decisão. Lucas alisou a roupa de estampa mórbida, ciente de que era um exagero estar pronto três horas e meia antes de um compromisso. O padrasto parecia se perguntar o mesmo, mas, como sempre, preferiu nada dizer. E ele sabia o motivo. Um dia, Ben lhe contara que ele também era um ansioso. Talvez não tanto quanto Lucas, porém, contou que pegava-se vez ou outra se arrumando duas horas antes de um simples compromisso ou fazendo listas mentais para que a rotina do dia estivesse totalmente sob seu controle.
O rapaz mal conseguiu comer duas garfadas de torta. Pensou em desistir mais uma vez, planejando como mandaria uma mensagem à Laura dizendo que não estava se sentindo bem naquele dia. Pensou em todos os substantivos, artigos e verbos com os quais ele escreveria tal mensagem — mas que nunca chegou a ser mandada, pois temeu ofendê-la de alguma forma. E, se não lhes dessem uma explicação pela sua ausência, seria ainda mais vergonhoso.
Ele estava em um beco sem saída. Por isso, às 14:55 em ponto, Lucas dirigiu-se rumo à casa 10, que ficava a menos de um minuto de sua casa.
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Lucas parou diante da residência vizinha e congelou, o coração saltitando. A casa 10, como a sua, era um pequeno sobrado circundado por um jardim retangular. Pequenos arbustos ladeavam a cerca baixa, cuja madeira cheirava a tinta fresca. Ao contrário da casa de Lucas, que era branca, aquela tinha um tom verde-água e uma rampa larga substituía as escadas que levava à varanda.
Ele viu algo se mexer da janela e ouviu as vozes animadas vindas lá de dentro. Escutou risos e uma música baixa. Sentindo sua respiração falhar de repente, como se tivesse esquecido de como respirar, Lucas deu um passo para trás. O que estou fazendo?, perguntou para si mesmo. Sentia-se um completo idiota com aquela blusa, com aquele cabelo, com aquele par de tênis velho que achara no guarda-roupa. Ouviu mais risadas, e, por um instante, era como se estivessem rindo dele. Sabia que aquilo não era possível, pois ninguém notara a sua presença. Ainda.
Sentindo suas pernas pesadas, como se tivessem presas a bolas de chumbo, ele deu meia-volta; decidido a voltar para casa. Mas, antes que pudesse dar mais dois passos à frente, escutou a voz de Miguel às suas costas:
— Ei, Lucas! Está perdido?
O rapaz parou, girando os calcanhares. Miguel acenava para ele da varanda, as duas mãos movimentando-se no ar como um marinheiro cumprimentando o outro em alto mar. Um marinheiro-zumbi. Miguel usava calças sociais e uma blusa listrada; o que o deixaria um tanto elegante se não tivesse com estranhas manchas vermelhas espalhadas pelo tecido, sobretudo no peito. Um lenço vermelho envolvia seu pescoço em um exagerado nó.
Lucas sorriu-lhe, sem graça. Sem alternativas, ele caminhou em direção ao pequeno portão e adentrou pelo jardim. Ao se aproximar da varanda, notou que Miguel também tinha o canto da boca manchada de vermelho e a pele esverdeada pela maquiagem.
— Vamos, não tenha medo. Somos zumbis vegetarianos — falou, dando-lhe passagem. Lucas subiu pela rampa, as mãos enfiadas no bolso da calça larga e puída que costumava usar para dormir.
Quando entrou na casa, percebeu que Raoni não estava brincando quando disse que todas as suas festas tinham temas. A sala inteira fora transformada em um covil de horror: lençóis brancos com manchas avermelhadas cobriam móveis, paredes e a escada. Papéis higiênicos e balões pretos foram espalhados pelo chão, com pedaços de braços e pernas de bonecas distribuídos por sofás e degraus. Tigelas repletas de cheetos de queijo e outras gulodices estavam dispostas sobre a mesa coberta por um pano verde-musgo. Uma pequena caixa de som tocava uma música com batidas graves.
— O Lucas veio — ele ouviu alguém dizer dos fundos da cozinha. Laura surgiu carregando copos e mais pacotes de cheetos. — Lucas! Que bom que veio. Fique à vontade!
— Aceita uma coca-cola? — uma moça baixa e sorridente surgiu atrás de Laura, carregando garrafas de refrigerante quase congeladas. Lucas a reconheceu de vista, e agora sabia que se tratava de Bianca. Ao lado de Laura, que era a mais alta dos jovens daquela casa, Bianca parecia ainda mais baixa. Tinha o cabelo black curto e solto, sustentando uma coroa de plástico quebrada; combinando com o vestido rasgado em tiras.
Lucas balançou a cabeça, agradecido.
— Ou prefere um suco? — perguntou a princesa-zumbi. Naquele momento, Raoni apareceu descendo as escadas com a fantasia mais grotesca de todas; o que provavelmente renderia bons pesadelos aos vizinhos algumas horas mais tarde.
Ele assentiu, aceitando, atento à figura do rapaz exageradamente ensanguentado descendo as escadas com languidez e emitindo gemidos medonhos. Miguel, que fazia manobras pela sala com sua cadeira de rodas, parou para recebê-lo ao modo zumbi. Tudo aquilo era tão bizarro e teatral que Lucas quase riu.
— Lá vem o idiota — Bianca balbuciou, voltando para a cozinha com o pedido de Lucas em mente. Laura o envolveu com o braço, levando-o até a sala. Raoni ainda descia as escadas lentamente, quase caindo nos últimos degraus ao tropeçar em uma perna de bebê (de plástico).
— Vamos, vou maquiar você — Laura disse, pegando uma pequena caixa no canto da sala. Lucas se sentou no sofá, achando estranho o quanto aquele lugar parecia a sua casa, mas com outros móveis e outros cheiros.
Raoni havia finalmente chegado à sala e jogou-se contra a cadeira de Miguel, abocanhando o seu braço. Bianca desviou-se do conflito segurando um copo cheio na mão, entregando para Lucas. Ele sorriu, agradecendo-a em silêncio, e fitou a caixa cheia de maquiagem e tintas faciais.
Laura começou a desenhar algo na testa de Lucas quando uma noiva cadáver cutucou seus ombros.
— Deixe comigo — Beatriz disse, pegando a caixa com as tintas. Ela estava com um vestido branco encardido, um véu rasgado preso ao cabelo amarrado em um coque. — Vai ficar tão bom quanto a de Raoni.
— Boa ideia. Sou péssima nisso, me conformo — Laura falou, entregando o fino pincel à Beatriz. Raoni já terminara o seu ataque e agora atacava a mesa de cheetos. Miguel voltava da cozinha carregando vasilhas com pães de queijo.
Lucas bebericou o suco, sentindo o gosto de manga. Tentou não se engasgar ou deixar a boca suja, ciente de que estava recebendo mais atenção do que de costume. Ele pôde ver Beatriz preparando as tintas sobre a mesa do centro pelo canto dos olhos, enquanto Miguel vinha em sua direção oferecer-lhe os pães de queijo.
— Receita da minha avó portuguesa, mas com a alma mineira — ele sorriu, revelando dentes caninos postiços. — Raoni é louco por cheetos, mas não faz parte da minha dieta. Imagino que da sua também não, pelos seus...bíceps. — ele enfiou um pão de queijo na boca. — Aceitas?
Lucas corou, aceitando um pãozinho e ignorando o comentário sobre seus bíceps — que, pela sua estrutura corpórea franzina, não eram nem um pouco desenvolvidos; ao contrário dos de Miguel. Beatriz riu enquanto ele se afastava. Lucas desejou de repente que as conversas e aquela música parasse, só para poder ouvi-la melhor.
— Esses meninos são ótimos — ela comentou, passando suavemente o pincel na testa de Lucas. — Vou fazê-lo ficar um pouco esverdeado, como um cadáver em putrefação. Depois, quem sabe, uma ferida aberta bem aqui em cima. O que acha?
Lucas fez uma careta, franzindo o nariz. Depois assentiu, sentindo que amassava o pão de queijo na mão. Ele fechou os olhos, os dedos de Beatriz deslizando delicadamente sob seus olhos.
— Já trabalhei em festa de criança como maquiadora — Beatriz contou. — Às vezes, alguns meninos me pediam para transformá-los em zumbis. Acho que fiquei boa nisso.
Lucas queria poder dizer algo naquele momento. Queria dizer qualquer coisa só para tapar aquele silêncio que se seguiu entre eles durante todo o processo. O rapaz não estava acostumado com aquilo — com a atenção que estava recebendo, com os olhares sobre ele, com os toques físicos. Estava ciente, a todo instante, das mãos de Beatriz sobre o seu rosto, concentrada, como se ele fosse uma folha em branco e a moça fosse a pintora. Sabia que ela não estava pintando corações ou estrelas, como provavelmente fazia com as crianças, mas ele sentiu que poderia ser qualquer coisa.
Ele se deixou ser levado por aquela breve sensação de torpor e, ao mesmo tempo, temendo a todo momento cometer alguma gafe por estar perto daquelas pessoas — que, há uma semana, pareciam tão distantes dele. Temeu fazer algo de errado diante de Laura, que realmente era a líder daquela casa. Na presença de Miguel, que estava atento a tudo e a todos — e, sobretudo, na presença mansa de Beatriz; que depois de maquiá-lo não trocou mais palavras com ele. Ou melhor: não se sentiu confortável em permanecer em um monólogo, como se conversasse com um espantalho.
Na verdade, ninguém passou muito tempo tentando conversar com ele. Ao longo da festa, Lucas não soube como reagir a não ser permanecer onde estava e comer quando ninguém estava olhando. Por mais que tentassem fazê-lo sair daquele sofá para dançar, comer ou jogar, o rapaz apenas sorria timidamente e tentava lhes dizer com o olhar que estava tudo bem. Mas, no fundo, não estava. Constatar aquele fato deixou-o cabisbaixo, e ele desejou estar em casa. No refúgio de seu quarto, com suas tintas e seu mundo íntimo.
Ele realmente não era muito bom em estar em festas. Como de costume, ficou apenas como um espectador, que tentava rir quando achava algo engraçado, fingindo estar relaxado e confortável com aquelas pessoas. Viu Raoni dançar Triller, Miguel quase cair da cadeira com suas danças malucas sob duas rodas, Beatriz sorrir enquanto conversava com Bianca e Laura dançar com Raoni com um copo de coca-cola na mão.
No auge da festa, Beatriz desapareceu pelas escadas e voltou com uma máquina fotográfica. Miguel se pôs em frente a câmera, com Raoni atrás de si, e a primeira foto de muitas foi tirada. Lucas participou apenas de uma, quando todos se juntaram na sala fazendo caretas e posições macabras. O rapaz agradeceu internamente pela ocasião e a fantasia, deixando-o menos inseguro quanto à sua aparência ou a qual expressão facial deveria fazer.
Mais tarde, quando a noite já batia à porta, eles se reuniram para jogar cartas na mesinha de centro da sala. Todos se espalharam pelo tapete felpudo; cinco jovens-zumbis alegres e embriagados de coca-cola e cheetos.
— Ei, Lucas, sabe jogar Uno? — perguntou Raoni, fazendo um gesto para que se juntassem a eles. Lucas olhou para as cartas sendo distribuídas sobre a mesa. Ele sabia jogar, porém, só de pensar na possibilidade de entrar em alguma disputa, por mais idiota e divertida que fosse, deixava-o nos nervos.
Ele negou e permaneceu em sua função principal: apenas observar. Observar aquelas pessoas que, de repente, pareciam desconhecidas novamente. As expectativas positivas que criara no início da festa foram engolidas pela sua insegurança e ansiedade.
— Está tudo bem, Lucas? — Laura perguntou algumas horas mais tarde, após a última partida daquele jogo de cartas coloridas; e quando Lucas estava prestes a se levantar e sair pela janela dos fundos.
O rapaz maneou a cabeça em sinal positivo, mas sabia que não estava convencendo ninguém. Além de um péssimo festeiro, também era um péssimo ator. Ele notou, com certo pesar, os olhares de Beatriz e Bianca sobre ele do outro lado da sala; por entre a penumbra dos adornos escuros nas paredes e as luzes coloridas que piscavam acima de suas cabeças. O pouco do cheetos que havia comido começou a embrulhar o seu estômago.
Lucas teve a sensação de que, onde quer que ele fosse, seu silêncio e seus anseios fariam de tudo para vencê-lo — e, mais uma vez, eles haviam conseguido. Vestido com a blusa do irmão e com o rosto maquiado pelas mãos de Beatriz, Lucas voltou para casa sentindo-se a pior pessoa do mundo.
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