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6. Como música clássica

𓅯 Capítulo 6 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Arqueado sobre a escrivaninha, Lucas rabiscava a folha de um velho caderno que achara em uma das gavetas, desamparado sob pastas coloridas de antigos desenhos e lápis de cor sem pontas. Uma música clássica qualquer começou a tocar em seu headphone, desanimando-o ainda mais — parecia que o compositor havia acabado de assinar sua carta e suicídio ou, quem sabe, descoberto que sua amada havia lhe traído. Não havia palavras, apenas as teclas de um melancólico piano e o violino ao fundo; mas podia-se imaginar mil cenas infelizes.

Lucas largou a caneta preta, observando seus rabiscos fortes e paralelos uns aos outros, como um registro de um encarcerado. Tentou se lembrar se já havia escutado aquela música antes — talvez Ben já houvesse tocado um dia em seu piano — mas Lucas não conseguiu identificá-la em sua memória. Seu gosto peculiar por música clássica fora graças à influência do padrasto, que fazia questão de ler todas as biografias dos mais ilustres compositores da história e colecionar vinis. Lucas não tinha aquela obsessão, porém, gostava como aquele tipo de música soava e como lhe transmitia sentimentos sem que precisasse de um vocalista. Ben, quando tentava dar aulas de piano para Lucas, sempre lhe dizia que aquela era a magia da música clássica: em algumas, as vozes eram totalmente dispensáveis. Os instrumentos já faziam o trabalho completo — sobretudo o piano, o primeiro grande amor de Benício.

O rapaz sempre achou que aquilo era uma indireta para ele. Ben nunca falou diretamente sobre o fato de Lucas se limitar a falar apenas com algumas pessoas (o que, na época, não o incluía), mas o rapaz podia sentir as referências em suas frases poéticas e motivadoras. Para Ben, quando Lucas ainda não conseguia se comunicar com ele, era como sua amada música clássica: não sentia necessidade de ouvir sua voz, pois sempre intuía o que o menino queria dizer.

Ele estava prestes a verificar qual música se tratava quando alguém bateu à porta. Inicialmente, ele achou que Pedro estivesse esquecido algo e havia voltado à casa; mas, quando viu a mãe adentrando o quarto e remexendo os lábios, Lucas tirou os fones.

— O quê? — ele balbuciou.

— Há dois jovens lá fora querendo falar com você. — Miriam repetiu. — Eu os convidei para entrar, mas eles disseram que seria rápido.

— Quem? — ele sentiu o seu corpo gelar.

— Dois jovens da casa 10, você sabe... A Larissa, e o outro rapaz de cabelos escuros. Esqueci o nome. Ricardo? Ryan?

— Laura — ele corrigiu. — E deve ser Raoni. O que eles querem?

Míriam apoiou a mão sobre a maçaneta e suspirou.

— Custa ir falar com eles, meu filho? — a mulher balançou a cabeça, parecendo exausta. Pelas meias listradas nos pés e os cabelos amarrados, Lucas soube que a mãe passou boa parte da madrugada enfiada no escritório com suas maquetes e projetos inacabáveis. — ...Custa ir atendê-los?

— Estou indo — Lucas levantou-se, sentindo seu coração se acelerar inutilmente. Quando desceu as escadas e parou em frente à porta, parecia que havia corrido uma maratona: sentiu suas costas e suas axilas úmidas e seu coração batia tão forte que ele teve que respirar três vezes antes de puxar a maçaneta. Parecia exagero dele, de seu corpo e de sua mente, mas era apenas sua ansiedade lhe dizendo que ele não deveria fazer aquilo. Por quê? Lucas perguntava-se quando isso acontecia. Mas a resposta nunca veio.

Lutando contra o desejo de fuga, o rapaz abriu a porta e deparou-se com seus dois vizinhos sorridentes.

— Oi! — Laura cumprimentou-o com um sorriso, e Raoni ergueu a mão em um aceno. Lucas sorriu timidamente e os cumprimentou com um rápido movimento com a cabeça. — Desculpe-me o incômodo. Mas, como você agora é um quase-universitário, gostaríamos de convidá-lo para a nossa festa pré-aula. Será sexta-feira que vem, às 15 horas. Ainda não entramos em consenso quanto ao tema.

Lucas ergueu uma sobrancelha, expressando dúvida, alterando o olhar entre a moça e o rapaz ao seu lado.

— É que nossas festas costumam ter temas — Raoni disse, notando sua confusão. — Em dezembro, o tema foi Natal Maluco. Miguel se vestiu de alce e Laura foi a mamãe noel de barba. Trocamos presentes odiosos e comemos panetone na promoção, porque o orçamento estava baixo.

Laura deu um sorrisinho, assentindo, e continuou:

— Enfim, não é o tipo de festa que provavelmente está pensando. Está mais para festa de jovens universitários exaustos e indigentes. Então, não se preocupe caso esteja pensando que rola algum tipo de droga ou algo assim. Não somos adeptos a isso, apesar de Miguel quase sempre ficar bêbado e quebrar uma de suas rodas.

Raoni soltou uma risada anasalada. Lucas piscou, a boca seca. Provavelmente, se suas condições o permitissem, ele diria não, obrigado. No entanto, na ausência de sua fala, ficou apenas observando-os com incerteza.

— Hã... Então, você gostaria de ir? — Laura sorria gentilmente, mas Lucas sabia que ela não estava conseguindo agir muito bem à mudez dele. Ela tirou seu celular do bolso, desbloqueando-o. — Temos um grupo e gostaríamos que você participasse. Se quiser me passar o seu número...

Sem alternativa, Lucas passou a palma suada na calça antes de pegar o celular de Laura. Com os dedos trêmulos, digitou o seu número de celular com certa dificuldade. Havia alguns anos que tinha aquele mesmo número, entretanto, seu nervosismo o fez hesitar a cada tecla que pressionava. Conferiu três vezes, desejando secretamente que ela não conseguisse colocá-lo em grupo nenhum.

— Você pode nos dar a resposta no grupo. Ou me chame no privado — Laura pegou o aparelho de volta. — Tudo bem?

Ele balançou a cabeça em sinal positivo. Raoni ergueu a mão com o punho fechado. Lucas fez o mesmo, sentindo o braço rígido ao tocar nos dedos do outro rapaz, e mais uma vez arriscou um sorriso envergonhado. Ao vê-los partir, conversando entre si, teve quase certeza de que estavam falando dele. Do quanto ele era esquisito. Do quanto estavam arrependidos de tê-lo convidado àquela festa por educação.

É claro que ele não ia. O que Lucas faria em uma festa? Ele nunca foi muito convidado para festas — e quando era, recusava-se a ir a não ser que fosse um colega mais próximo. Na adolescência era pior: só de pensar na possibilidade de se enfiar em uma festa de quinze anos, cujo traje ele deveria seguir à risca, lhe dava dor de barriga.

O rapaz fechou a porta e viu Ben passar pela sala, os óculos de grau apoiado na ponta nariz enquanto carregava algumas pastas. Colocou-as sobre o piano, observando Lucas por cima dos óculos. Ele pôde sentir o cheiro do perfume de sempre de Ben, que provavelmente havia acabado de tomar banho depois de quase um dia inteiro dedicado à montagem do balanço.

— E aí?! — ele apontou para a porta. — Você vai?

— Aonde? — Lucas perguntou, encarando as pastas verde-musgo sobre o piano. Ele sabia o que havia nelas: partituras. Lembrou-se de seu aluno das segundas-feiras, às cinco, um garoto de dez anos que tinha um talento nato de pegar todas as músicas de primeira; da mais simples à mais complexa.

— À festa, garoto — o padrasto respondeu. — Parecem jovens tão decentes e educados. Por que não tenta fazer amizade com eles?

Lucas reprimiu uma risada e se jogou no sofá.

— Não sou muito bom em me enturmar — falou, tentando parecer indiferente quanto a isso. E, por muito tempo, ele não se importou muito com a ausência de amizades. Seus amigos eram a sua família. As conversas mais íntimas eram com Pedro. Nada o deixava mais confortável do que isso.

— Sabe, eu também era assim — Ben sentou-se ao seu lado, cruzando as pernas. Soltou um suspiro, alisando a blusa social que sempre usava para receber seus alunos.

— Eu sei — Lucas disse, sabendo da história da juventude de Benício. Em resumo, o padrasto era considerado o típico nerd desprovido de musculatura e tímido; além do costumeiro preconceito enraizado da década de 80. Ele costumava dizer que naquela época as coisas eram diferentes, mas que sabia um pouco sobre a solidão na juventude quando se ia contra os padrões. E, no caso dele, recusava-se a entrar na moda do fumo e das bebidas descontroladas para ler na velha e mofada biblioteca da avó. — Mas você sabia se enturmar. Tem seus amigos nerds até hoje. E gostava de festas com garotas de óculos e com papos estranhos sobre línguas mortas.

Ben fez uma careta, sorrindo-lhe em seguida.

— Isso foi na faculdade — ele falou. — Conheci meus melhores amigos em minha vida acadêmica. Por isso eu lhe digo, meu filho, a faculdade será bom pra você. Não espere maturidade em todos, mas as coisas são bem diferentes da escola.

— Acho que não quero pensar muito nisso — o rapaz murmurou, fitando as próprias unhas curtas.

— Pense bem no convite desses meninos. Parecem ser boas pessoas — Ben aconselhou. — E eu quero saber do tema! Eu fiquei curioso.

— Você estava escutando tudo? — Lucas franziu a testa.

— Tenho ótimos ouvidos — falou Ben. — Ao contrário dos meus olhos. Acredita que terei que ir ao oculista de novo? Esses óculos já não me deixam mais ler o que está a um palmo à minha frente.

— Acredito — Lucas assentiu, querendo dizer que ele já havia dito aquilo cinco vezes naquela semana. — Acho que Patrick deve estar chegando. Vou subir para não atrapalhar a aula. Bom trabalho.

Lucas levantou-se e subiu as escadas apressadamente, deixando Ben limpando o par de óculos. Pôde escutá-lo dizer um obrigado antes mesmo de chegar no andar de cima. Ele achou que foi bem ao desviar-se do assunto sobre festas temáticas e juventudes conturbadas, mas sabia que uma hora ou outra teria que dar a resposta. Às cinco em ponto, ouviu a porta da sala abrir e Ben cumprimentar seu aluno particular. Alguns minutos depois, escutou os teclados do piano soarem pela casa; com algumas notas falhas que logo eram corrigidas pelo menino. Lembrou-se de quando Ben tentava lhe dar aulas e Lucas desistia logo nos primeiros erros, envergonhado por sua péssima habilidade com os dedos; que se atropelavam apressados por entre as teclas.

Imerso em seus pensamentos, ele se assustou quando seu celular começou a vibrar repetidamente sobre a mesa. Lucas se sentou na cadeira, arrastou o papel com os rabiscos para o lado e pegou o aparelho. Na tela, apareceram mensagens de números desconhecidos de um grupo com o nome CLÃ DA CASA 10. O rapaz sentiu as mãos frias ao visualizar as mensagens, que já eram muitas. Lucas voltou ao início da conversa, onde deparou-se com o aviso LAURA ADICIONOU LUCAS EVANS NO GRUPO.

Laura: Oi! Adicionei Lucas no nosso grupo. Seja bem-vindo :)

RAONI: ✌✌✌

Miguelito: e ae, Lucas. Foto legal. É seu cachorro?

Bianca: bem-vindo, Lucas. Acho q ainda não nos conhecemos

Laura: é o garoto da casa com o pinheiro

Bianca: ah! Foi mal, lu, minha memória não tá muito boa. Sabe, sequelas do final de semestre. Desculpe. Foi mal mesmo

RAONI: cara, oq vc acha do tema da festa ser: a volta dos mortos vivos? Tem tudo a ver com a nossa cara

Miguelito: vcs vão assustar o cara

RAONI: ele agora faz parte do grupo. Precisa participar da assembleia

Bianca: lembrando que Laura é a chefe. E ela tem fobia de fantasmas

RAONI: basta não ter fantasmas. Apenas zumbis

Bianca: eu não tenho roupa pra isso

Laura: Gente, calem a boca. Deixem ele ver a mensagem. Depois resolvemos isso

Beatriz: Olá 😀

Lucas ficou olhando para aquele diálogo, atônito. Podia ouvir as vozes deles em sua mente dizendo aquelas coisas. Observou aqueles nomes; que antes pareciam apenas de vizinhos distantes, e que agora de repente o viam como parte de seu grupo. Ou melhor: se viam obrigados a incluí-lo só porque agora entraria na faculdade.

Ele abriu o teclado e ficou trêmulo ao digitar "Oi". Depois, ele apagou e colocou um "Olá". Não sabia qual cumprimento era melhor. Não queria parecer nervoso ou grosso, tampouco antipático. O rapaz demorou alguns segundos para ter coragem de mandar aquela simples palavra, com o coração aos pulos. E depois, digitou apressadamente um obrigado.

Lucas Evans: Olá

Lucas Evans: Obrigado

RAONI: então, oq acha do tema de mortos vivos?

Miguelito: eu topo. Tenho algumas roupas q usei ano passado durante meses

Bianca: então é isso que está fedendo o guarda-roupa, miguel?

Miguelito: eu lavei, idiota

Beatriz: Eu acho uma boa ideia

Laura: eu acho que deveríamos deixar isso para o Halloween

RAONI: mas vc odeia halloween

Lucas coçou a cabeça e não respondeu nada. Não sabia o que dizer. De qualquer forma, não iria a festa alguma — muito menos vestido de zumbi. Ele parou de ler as mensagens, cujo tema mudou para o que fariam com um tal de Fred (que ele não sabia de quem se tratava); e verificou a lista de membros do grupo. Ali, era possível ver as fotos de cada um. Miguel, com seus óculos escuros e um sorriso exibindo os dentes; Laura de costas para a câmera observando uma paisagem ao pôr do sol e Beatriz, a garota da tatuagem de borboleta e cabelos escuros, segurando uma câmera fotográfica e sorrindo para aquela que a registrava. Ele abriu cada uma das fotos, reconhecendo aqueles jovens por novos ângulos. Lucas, em contrapartida, exibia a foto de seu cão Mozart pois não tinha nenhuma foto decente de si próprio.

Ele largou o celular, deixando-o no modo silencioso para evitar ficar olhando aquelas mensagens. Caso contrário, se sentiria obrigado a respondê-los — inclusive, ao convite para a tal festa de mortos-vivos. Lucas recolocou os fones de ouvido, abafando o som que vinha da sala; vasculhando sua mente à procura de alguma desculpa convincente para não ir a festa alguma. 

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