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42. Nova realidade

𓅯 Capítulo 42 | O Canto dos Pássaros 𓅯

A típica festa junina do condomínio aconteceu alguns dias após a chegada de Lucas. As bandeirolas coloridas enfeitavam as ruas, e o belo varal de luzes que haviam colocado na praça ficava visível para todos os moradores. Lucas podia vê-las através da janela do seu quarto, iluminando as árvores. A festa havia começado mais cedo e se encerraria às dez da noite; o tempo limite segundo as regras do condomínio. O rapaz também viu, através das cortinas, alguns moradores com suas crianças se dirigirem ao pequeno parque, animados e vestidos adequadamente para o frio que fazia.

Lucas voltou a atenção para os botões de sua camisa de flanela, um pouco impaciente. Pela porta de seu banheiro, Beatriz surgiu com os cabelos trançados. Seus olhos e seus lábios estava destacados por uma leve maquiagem. O rapaz distraiu-se novamente, apreciando-a com aquela aquela camisa roxa, também de flanela, mas que ficava muito melhor nela do que em Lucas.

— Está ótimo — Beatriz aproximou-se, analisando-o. — Me deixe ajudar com esses botões.

O rapaz sentiu a respiração falhar quando Beatriz prendeu mais dois botões, deixando alguns soltos. Ele ainda não havia se acostumado com a proximidade e a intimidade que os envolveram nos últimos dias. Lucas só sabia que não conseguia ficar muito tempo longe dela. E, para a sua sorte, Beatriz parecia sentir o mesmo. Contudo, ele ainda se sentia inseguro para beijá-la ou para se aproximar mais. Beatriz era paciente e não exigia aquelas coisas; dizia sempre que só a presença dele e as conversas virtuais já eram o suficiente. O rapaz acreditava nela, mas desejava profundamente fazer mais pelos dois; pelo que florescia entre eles. Lucas ainda tinha medo de perdê-la.

Após alisar sua camisa, a moça sorriu e apertou as bochechas de Lucas. Sabia que ele estava nervoso com aquela festa — que acontecia todos os anos, mas ele quase nunca ia — sobretudo porque se reencontraria com seus vizinhos após aquele vexame de meses atrás. O que o deixava mais tranquilo era justamente aquele detalhe: havia acontecido há tanto tempo que talvez ninguém mais se lembrasse.

Devidamente vestidos, Beatriz puxou Lucas pela mão, encorajando-o silenciosamente a sair de casa. Andaram pela calçada com as mãos entrelaçadas, como um casal de namorados — apesar de nenhum dos dois terem mencionado tal compromisso. Vamos deixar as coisas acontecerem naturalmente; não há porque forçar, é o que Beatriz sempre dizia quando o rapaz começava a achar que precisava tomar alguma iniciativa.

Quando chegaram à praça, Lucas sentiu o cheiro de milho assado, pipoca e algo doce que o rapaz supôs ser doce de leite, ao julgar pelo carrinho de churros brilhante. Barraquinhas brancas estavam espalhadas pelo parque, e uma grande fogueira era sustentada por grossas toras, afastadas das árvores e das tendas. Do outro lado, crianças se divertiam nos brinquedos, adultos sentavam-se em mesas e nos banquinhos de pedra. Em uma das mesas redondas, seus vizinhos universitários estavam reunidos comendo milho e bebendo refrigerante. Bianca soltava uma gargalhada que fora ouvida por todos os condôminos, e Miguel roía uma espiga como um rato faminto.

A chegada de Lucas e Beatriz chamou a atenção dos quatro. O rapaz apertou a mão dela, um pouco ansioso, mas ninguém comentou sobre os dois ou sobre o que havia acontecido a tantos meses atrás — para o seu alívio, estavam ocupados demais rindo de alguma bobagem e se entupindo de comida.

— Lucas! — Laura levantou-se, quase derrubando a lata de refrigerante sobre Bianca. Deu uma volta na mesa, abraçando-o alegremente. — Sentimos a sua falta!

— Senta aqui! — Bianca apontou para os dois banquinhos vazios entre ela e Miguel. Lucas se sentou ao lado do rapaz na cadeira de rodas, que o encarava com os olhos esbugalhados. Diante dele, um prato com três espigas de milho exalava cheiro de manteiga.

— Caraca! — Miguel gritou, com a boca cheia de milho cozido. — Lucas, você tá um gostoso com esse corte! Agora eu te entendo, Beatriz. Cof cof.

O rosto de Lucas ficou tão quente que ele temeu que as espigas de milho pegassem fogo. Escutou Raoni se engasgando com uma risada, oferecendo-lhe quadradinhos de doce de leite. Lucas deu um sorriso envergonhado, pegando um doce. Beatriz sentou-se tão próxima dele que seus ombros se tocavam.

— Bea diz que você viajou com o seu pai e perdeu o celular na faculdade — Laura pegou algumas pipocas. — Sentimos sua falta no grupo. Queríamos que voltasse.

— Posso colocá-lo de volta, se quiser — Beatriz olhou para ele, e o rapaz concordou de imediato. Raoni deliciava-se com os doces de leite, gemendo exageradamente. Bianca parecia uma criança comendo um cachorro-quente, lambuzando-se de ketchup.

— Temo que Lucas roube a minha posição de Rei do Milho — Miguel ainda olhava, admirado, para o novo estilo do rapaz.

— Qual é, você foi o Rei do Milho ano passado — Bianca lembrou. — Deixe esse título para as crianças.

— Mig se acha um rei só porque vive sentado no trono — Raoni provocou, passando o braço ao redor de Bianca. Acariciou os seus cachos, mas Bianca não se afastou e nem chamou-o de idiota intrometido.

— Minha cadeira é o meu trono — Miguel inclinou-se, encarando o amigo.

— Eu estava falando da privada — o rapaz retrucou.

— Só por que agora foi para o time da Bianca, agora me maltrata?

Bianca soltou outra gargalhada, e a sua cadeira de plástico fez um barulho suspeito. Miguel mencionou a lei do carma, e Raoni mandou-o calar a boca. Lucas havia sentido falta daquele caos. Nunca achou que voltaria a ver aquelas pessoas. Quando se deu conta, já estava rindo das piadas horríveis de Bianca, das provocações de Raoni e do humor ácido de Miguel. Apesar de ser a mais séria do grupo, Laura se permitia entrar nas brincadeiras deles e rir quando Bianca quase caiu da cadeira — se não fosse por Raoni tê-la segurado.

As preocupações de Lucas foram dissipadas pelos doces e o delicioso cheiro das comidas típicas da festa, além da agradável presença de Beatriz e a conversa descontraída de seus vizinhos. Entretanto, Lucas não conseguiu relaxar por muito tempo. Um rapaz alto e musculoso, com uma máquina fotográfica nas mãos, aproximou-se de repente. Lucas havia até se esquecido da existência dele nos últimos dias. Mas ele estava ali, diante de Lucas, fazendo voltar todas as suas inseguranças em relação à Beatriz e a si mesmo.

— Posso tirar algumas fotos de vocês aqui? — Heitor perguntou.

Claaaro — Bianca aproximou-se de Miguel, arrastando Raoni consigo. Laura se pôs atrás de Miguel, abraçando-o por trás. Lucas estava rígido e mal conseguia sorrir. Mas, quando sentiu o braço de Beatriz envolver seus ombros, abriu um sorriso tímido e encarou a câmera posicionada diante deles.

Heitor tirou várias fotos, mudando os ângulos e concordando em registrar as caretas e as posições estranhas do suposto novo casal — Raoni e Bianca grudaram-se como carrapatos felizes, ainda que discutissem por coisas fúteis.

— Me manda, hein? — Raoni apontou para a câmera inclinada para ele. — Foi bom, ficou bom. Caramba, você é alto!

— Humilhou os meus braços — Miguel comentou. — Meus parabéns. E eu não estou dando em cima de você, é apenas um elogio.

O belo e imponente fotógrafo corou. Depois riu, consertando a alça da câmera em seu pescoço.

— Obrigado. Eu treino bastante os braços — Heitor olhou de repente para Lucas, que desviou o olhar. — Tudo bem, Lucas?

O rapaz cumprimentou-o com a cabeça, sem disfarçar o desconforto. Em seu interior, na parte mais sombria de si, desejou que ele não fosse tão gentil. Queria que ele tivesse a personalidade daqueles tipos de caras que, aproveitando-se de sua força e beleza, se impusesse contra tudo e todos. Inclusive contra Lucas. Perguntou-se mais uma vez porque diabos Beatriz escolheu se aproximar dele e não de Heitor.

O rapaz despediu-se, procurando mais pessoas e momentos para registrar. Beatriz, reparando a súbita mudança de comportamento de Lucas, tocou em seu ombro e encarou-o. Sem coragem para olhar para ela, observou as luzes à distância.

— Vamos andar um pouco? — ela sugeriu, insinuando algo por trás daquele convite.

Lucas assentiu, e Beatriz começou a puxá-lo para longe de todos. Andaram em silêncio pelo parque iluminado, cada vez mais distante do centro da praça. Os gritos das crianças e as risadas dos adultos eram como ecos longínquos em meio às árvores.

Beatriz parou, virando-se para ele e pegando em ambas as suas mãos. Ela estava séria, mas seu toque era carinhoso.

— Lucas... — ela sussurrou, fazendo com que o rapaz finalmente olhasse para ela. — Eu nunca tive nada com Heitor, se é isso que está pensando.

Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso. Esperava que ela lesse sua expressão — Lucas não sabia disfarçar muito bem, e Beatriz era observadora — mas não que fosse tão direta. Era provável que todos, inclusive Heitor, tivessem notado o seu desconforto.

Lucas deu de ombros, desviando o olhar.

— Olhe para mim — ela pediu, tocando no rosto dele. — Não quero que seja inimigo dele só porque estamos começando algo. Ele é uma boa pessoa. Só está aqui a trabalho, e não por minha causa. Os responsáveis pelo evento me chamaram para fotografar, mas... — Beatriz suspirou. — Eu trabalhei muito nos últimos meses e queria um tempo para mim. Por isso o indiquei, e ele aceitou. Apenas isso. Confia em mim?

O rapaz assentiu. Sentia-se como uma criança estúpida com ciúmes dos pais, mas gostou da sinceridade de Beatriz. Compreendeu um pouco, apesar de não ter muita experiência, o motivo de alguns relacionamentos amorosos serem tão complicados. Lucas nunca sentiu tanto ciúmes de alguém como estava sentindo; e sabia que isso não era saudável. Fazia parte de suas inseguranças — de achar que nunca seria bom o suficiente para ela, ou bonito o bastante. No entanto, Beatriz estava com ele, e Lucas confiava nela.

— Ótimo. Vamos começar por aqui — a moça apertou as suas mãos. — Também quero que me diga, ou escreva, qualquer coisa que te incomode. Também tenho meus defeitos e estou ciente disso. Mas quero ser uma boa namorada. Quero ser uma boa pessoa para você e para os meus amigos, mas preciso que me ajude nisso.

Lucas a encarou quando Beatriz mencionou a palavra namorada. Então...ela queria realmente ser namorada dele? O rapaz observou suas mãos entrelaçadas, e depois para seu rosto novamente. Aquilo era tão estranho. Lucas nunca teve uma namorada. Um sorriso brotou de seus lábios diante daquela nova realidade — que anteriormente ele achara quase impossível. Quem é que vai querer namorar com um cara que não fala?, ele se perguntava. Como vai arranjar uma namorada, Lucas, se você não fala?, era o que os outros questionavam. O rapaz acabou levando aquilo como uma verdade durante boa parte de sua vida, mas ali estava Beatriz para provar-lhe o contrário. E ele não pretendia deixar qualquer sentimento baixo estragar tudo aquilo.

Em um pedido de desculpas sincero e sem palavras, ele a abraçou. Com uma confiança renovada, Lucas recuou um pouco e procurou pelos seus lábios. Beijou-a levemente, sentindo Beatriz corresponder com doçura e cuidado. Era tão diferente de Karina, que o beijou simplesmente por um prazer sensual e supérfluo.

— Vamos ter uma quadrilha — Beatriz falou baixinho, ainda com o rosto próximo do dele. — Você disse que não gosta de dançar, mas eu estou sem par. Você...pode ir comigo?

Lucas sorriu, o coração batendo tão forte que achou que poderia explodir a qualquer momento. Com os olhos fechados e sentindo a respiração de Beatriz contra seu rosto, sussurrou:

Sim.

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