34. Epifania das cores
𓅯 Capítulo 34 | O Canto dos Pássaros 𓅯
Depois que todas as provas foram feitas, o último dia de aula chegou em um piscar de olhos. Lucas não podia acreditar que já haviam se passado quase seis meses desde que entrara na faculdade. Às vezes, ele tinha a sensação que havia passado muitos anos; e outras vezes, apenas algumas semanas. O rapaz achou que não conseguiria sobreviver àquilo, mas conseguiu. Não sabia se sairia bem nas provas ou se daria continuidade ao curso. O rapaz ainda não se sentia bem em sala de aula — e talvez, se não fosse por Wallace, não haveria nem completado o primeiro período. Ele não esperava que a amizade entre eles fosse se aprofundar daquela maneira; ao contrário. Lucas chegou a ter certeza que Wall se afastaria dele, e o que aconteceu foi o oposto. Wallace agarrou-se a ele como um carrapato, e Lucas não se incomodava mais com aquilo — mesmo que às vezes quisesse ficar sozinho, pensando na vida, remoendo os pensamentos melancólicos e tentando lembrar-se dos detalhes do rosto da moça que ele estava apaixonado.
Sem saber, Wallace o impedia de cavar o fosso que Lucas estava construindo para si. Mas nem tudo era perfeito. Vez ou outra, Wall comentava com as pessoas sobre as limitações do amigo. Aquilo incomodava Lucas, mas não sabia como dizer para ele parar. Wallace não percebia que não era necessário ficar protegendo-o e expondo-o a todo momento. Até mesmo as moças da cantina não ficaram imunes. Um pão de queijo para ele também, moça. Estou pedindo por ele porque ele não fala!, ele dizia, e os funcionários olhavam para ele com curiosidade. Ou quando encontravam um conhecido pelo campus: Wall sempre fazia questão de dizer que Lucas não dizia o seu nome porque ele não falava. E o amigo não percebia o desconforto dele. No entanto, Lucas sabia que a intenção do garoto não era essa: ele queria, de certa forma, protegê-lo.
No último dia de aula, em uma sexta-feira fria e com o céu limpo, Wall o acompanhou até o ponto de ônibus. Estavam animados — tinham acabado de comer bombons para comemorar as férias — quando o garoto de repente falou:
— Sabe, às vezes eu queria que você falasse comigo.
Lucas fingiu estar prestando atenção no trânsito. Queria não ter escutado aquilo; queria que o som dos motores e das buzinas houvessem abafado a voz de Wall. Mas ele estava bem ao seu lado, como sempre; e foi impossível não ouvir ou fingir que não tinha entendido.
Suspirando, o rapaz olhou para os próprios tênis. Seu ânimo desaparecera, e o gosto de chocolate em sua boca de repente ficou amargo. Quando ouvia aquele tipo de frase, sentia culpa, sentia que nunca seria o suficiente para ninguém. E Wallace percebeu o seu desconforto, pois afastou-se um pouco e ajeitou, sem graça, o gorro sobre a cabeça.
— Desculpe, desculpe! — Lucas viu suas bochechas ficarem vermelhas. Notou a sinceridade em sua voz; até mesmo culpa. — Eu às vezes sou muito impulsivo. Me desculpe. Eu não vou mais falar sobre isso.
Lucas se esforçou para não ficar chateado. Deu um sorrisinho, sem conseguir disfarçar o incômodo. O ônibus que ele costumava pegar para voltar para casa começou a se aproximar, e o rapaz ergueu a cabeça.
— Tchau — Wallace despediu-se, sem graça. — Boa sorte com as notas!
Lucas acenou para ele, subindo no ônibus. Dentro do veículo, o rapaz ainda pôde ver Wallace andando na direção oposta, meio cabisbaixo. O rapaz não conseguia ficar irritado com ele por muito tempo. Tentava se colocar no lugar dele — ou na posição de qualquer pessoa que por acaso se deparasse com Lucas, "o cara que não falava". Como ele iria reagir ou pensar? De certo, ficaria curioso; tentaria ajudar — e talvez ajudasse de forma errada por falta de conhecimento. Lucas não poderia julgá-lo, mesmo que aquela curiosidade para com sua voz o incomodasse profundamente. Wallace era um bom amigo e não tinha vergonha dele — e isso já era o bastante para Lucas.
✦✦✦
Quando chegou em casa, ainda distraído com os pensamentos sobre a faculdade e Wall, Lucas assustou-se com o irmão caçula passando por ele, apressado. Luan entrou no quarto, e ele pôde ouvir o som dos cabides de metal batendo um no outro. O rapaz parou diante do quarto do irmão, observando algumas roupas sobre a cama e uma mala aberta no chão. O quarto brilhava com as cores da tela do computador e do teclado. Por um momento, achou que Luan havia se revoltado e sairia de casa.
— O que está fazendo? — Lucas perguntou, tirando a mochila pesada das costas e colocando-a diante da porta do quarto ao lado.
Luan olhou para ele, colocando a mala sobre a cama.
— Alberto não está planejando uma viagem?
— Você vai? — o mais velho perguntou-o, cético.
— É praia. Eu gosto de praia — Luan deu de ombros, dobrando algumas roupas.
— Está frio.
— Idaí?
Lucas piscou, sem saber o que dizer. Ficou observando o irmão dobrar algumas roupas dentro da mala, sentindo o desânimo lhe abater. Ele estava disposto a ir àquela viagem com Alberto — o que provavelmente já seria chato o bastante — e estava quase certo de que Luan não iria. No entanto, diante àquela quebra de expectativa, já podia imaginar a rebeldia do caçula em uma cidade longínqua e as discussões incessantes entre pai e filho. O rapaz não sabia se estava com psicológico para aquilo — e muito menos para ficar em casa, entregando-se novamente ao poço de melancolia.
No dia seguinte — um sábado nublado e frio, mas agradável — Edith notou sua preocupação. Lucas estava agitado, o olhar distante. Ele havia levado um velho tablet para lhe mostrar alguns quadros antigos que havia pintado, mas não tomou nenhuma iniciativa para mostrá-los. Estava desanimado. Edith foi rápida em identificar que algo a mais o perturbava.
— Como passou essa semana, Lucas? — ela perguntou. Lucas pensou se deveria ou não falar sobre a viagem com ela. Achou que seria uma bobagem. Mas, como ela mesma dizia, nada que nos incomoda é uma bobagem. E ela era a sua terapeuta. Poderia contar-lhe o que comeu no café da manhã se quisesse.
Após pensar um pouco, Lucas escreveu contando sobre a viagem. Edith perguntou se estava animado para aquilo, já desconfiando da resposta. Ele não estava, é claro. Ao mesmo tempo, não queria ficar em casa. Como explicaria aquilo para ela sem mencionar Beatriz?
Meu irmão mais novo e meu pai não se dão muito bem, ele escreveu. Eu não gosto de brigas. Me deixa nervoso.
— Você já me contou sobre o seu pai. Mas como é sua relação com seu irmão mais novo? — Edith perguntou.
Temos uma relação distante, Lucas escreveu, surpreendendo-se com a própria resposta. Distante era a palavra certa, ele sabia. Distante como a relação com o seu pai. A mulher assentiu ao ler a resposta, como se dissesse: viu como não é uma bobagem? Havia algo ali que Lucas não havia percebido antes. Constatou, sozinho, que seria mais cômodo viajar com Pedro e Ben; pessoas que ele convivia e confiava. O fato de não se sentir confortável com o próprio pai e o irmão mais novo era um tanto curioso. Pensar sobre aquilo destravou uma série de recordações — as quais ele não queria se lembrar naquele momento.
— Você não precisa falar sobre isso se não quiser — Edith tranquilizou-o, e mais uma vez era como se ela lesse a sua mente. — O que trouxe hoje?
Lucas olhou para o tablet em seu colo. Abriu uma pasta onde havia alguns quadros digitalizados e entregou-lhe o aparelho. Na consulta anterior, ele contara sobre seu antigo hobby e Edith perguntou se ele poderia mostrar a ela. O rapaz aceitou, estranhando mais uma vez a confiança que sentia em relação à terapeuta. Não havia mostrado nem para Beatriz, nem para Wall.
Apesar de Edith ter conquistado certa confiança, Lucas ficou apreensivo enquanto ela analisava os quadros. Sua expressão era serena, como sempre, mas seu olhar por trás dos óculos analisava cada pintura, cada detalhe; como se estivesse decifrando a alma de Lucas através de suas obras.
— Você tem uma clara preferência pela cor azul — ela reparou, sorrindo ao ver um quadro que retratava o céu, o mar e os pássaros. — Muito bonito, Lucas... Muito mesmo. Você gosta de paisagens. Me diga, o que a cor azul te remete?
Lucas inclinou a cabeça. Nunca havia parado para pensar naquilo; era apenas a sua cor preferida. Estava prestes a dar de ombros, querendo dizer que não fazia a menor ideia. No entanto, como pintor amador, sabia que as cores influenciam muito em uma obra; remetendo a estados e vibrações diferentes. Ele tinha aquela sensibilidade, apesar de não compreender muito bem. Tentando achar uma resposta lógica, Lucas apontou o dedo para cima. O céu, ele queria dizer. Edith não precisou que ele escrevesse.
— O céu? Interessante... — ela olhou para o aparelho novamente, colocando-o sobre a mesa. — Notei que gosta do céu. E o que o céu significa pra você? É algo abstrato, ou você consegue me dizer uma palavra?
Lucas passou a adorar aquelas perguntas que fragmentavam o seu cérebro, forçando-o a procurar por respostas em suas gavetas bagunçadas. Mais uma vez, percebeu um detalhe de seu inconsciente: ele costumava desenhar e pintar o céu, mas por qual motivo? O rapaz procurou por uma palavra que definisse o que sentia. Imensidão, mistério, divino, infinito, tranquilidade, liberdade. Liberdade.
Lucas escreveu aquela única palavra. Liberdade. A possibilidade de ir além — além da Terra e do mar, além de si mesmo. Mais uma vez, o rapaz largou a caneta dourada com a cabeça à mil, mas não de maneira negativa. Havia um certo prazer em descobrir-se de forma tão sutil, quase filosófica. Edith só lhe mostrava o caminho, segurando uma lamparina que ele mesmo tinha que alimentar com fogo.
Após deixar o paciente imerso em sua própria epifania, Edith virou a tela do tablet para Lucas, mostrando novamente o quadro que havia retratado o céu e o mar, juntos, em tons de azuis diferentes, e as pequenas andorinhas voando aleatoriamente. O disco solar não estava presente, mas Lucas fez questão de explorar seus reflexos dourados no céu, além das espumas nas cristas das ondas calmas.
— Todos são belos quadros, mas este foi o meu preferido — Edith olhou para a tela. — Você explorou muito bem as cores do mar. E o céu me lembra o clima da primavera: nem tão quente, nem tão frio.
Lucas deu um sorrisinho agradecido. Baixou a cabeça, remexendo os dedos. Ainda ficava sem graça com os elogios, mas era bom escutar aquilo de alguém que enxergava as coisas de forma tão ampla e profunda. Em um impulso, o rapaz agarrou a caneta e escreveu:
Eu acho que vou à viagem.
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