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10. Ventos da noite

𓅯 Capítulo 10 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Pedro acordou-o naquela manhã de sábado com um arremesso de travesseiro. Lucas acordou na hora, murmurando irritado, agarrando a fronha e jogando o travesseiro de volta — que atingiu bem longe do seu alvo.

— Vamos logo, rapaz — Pedro disse, tentando arrancar suas cobertas. — São quase oito da manhã. Está parecendo Luan. O que aconteceu com você?

Lucas piscou os olhos, sonolento, e virou-se para o irmão. Pedro estava com bermuda, camisa e tênis esportivos. Eles haviam combinado de caminharem juntos para aproveitar o pouco tempo que estavam tendo um com o outro; já que nem sempre os finais de semana estavam disponíveis para Pedro — e, como ele mesmo havia dito, esse tempo diminuiria quando ele fosse oficialmente um pai de família e trocador de fraldas.

— Acho que não dormi direito — Lucas mentiu, jogando as cobertas para o lado e sentindo o piso frio sob os seus pés.

— Mentira, você dormiu a noite inteira. Eu escutei.

— Eu não ronco — o rapaz murmurou, arrastando-se para o banheiro. — Dez minutos.

— Cinco — Pedro ordenou. — Estarei esperando lá embaixo. Preciso de cafeína.

✦✦✦

Após uma boa xícara de café quente, Lucas sentiu-se desperto o suficiente para não tropeçar nos próprios pés. A manhã estava bonita, com o céu quase completamente limpo e a temperatura moderada. Seguindo a sugestão indireta do irmão, Lucas também colocara uma camisa, arrependendo-se minutos depois. Seus braços expostos o faziam se sentir como se aquela roupa estivesse grande demais para ele. Ele se lembrou de Miguel comentando sobre seus bíceps quase ausentes, e se perguntou se o rapaz não estava zombando dele.

— Sábado que vem eu não poderei vir — Pedro dizia, e Lucas teve que acelerar os passos para acompanhá-lo. — Irei a uma consulta com Melissa. Os procedimentos de sempre.

— Você parece animado — Lucas observou, notando o brilho nos olhos do irmão.

— Estou apavorado — admitiu, rindo de seu próprio nervosismo. — Mas é um pavor excitante. Estou animado, mas temo não ser um bom pai.

Você? — Lucas arqueou as sobrancelhas. — Você vai ser tão bom quanto Ben. Pode apostar.

— Acha mesmo? — Pedro questionou, inseguro. Lucas abriu a boca para responder, mas a visão da casa que fora no dia anterior o fez se calar. Com passos largos, eles passaram pela residência e, quando achou que estava seguro o suficiente para continuar a conversa, prosseguiu:

— Você e Ben são muito parecidos. É claro que vai ser tão bom quanto ele — afirmou Lucas, falando baixo. Algumas pessoas passavam do outro lado da calçada, e ele torceu para não se deparar com nenhum jovem universitário.

Percebendo o silêncio que fizera; reconhecendo suas limitações, Pedro olhou por sobre os ombros.

— Espero que esteja certo... — ele voltou a olhar para frente, hesitante. — Hum, como foi a festa ontem? Você me disse que havia ido, mas quero detalhes.

— Foi bom — ele fingiu um entusiasmo que não tinha. Lucas ainda podia sentir aquele incômodo; o qual ele não conseguia explicar. Um sentimento de não pertencimento, quase um vazio, que piorou ao decorrer daquela tarde de sexta.

— Você não me convenceu — Pedro olhou-o de soslaio. — Algo o chateou?

— Não — Lucas respondeu. — Eles são legais. Eu que não sou muito bom para festas.

— Você sempre diz isso.

— Mas é verdade.

Pedro suspirou, calando-se. Eles caminharam mais devagar, lado a lado, e logo avistaram o parque e a praça. Haviam alguns casais sentados nos banquinhos, vigiando suas crianças. Lucas desejou que o irmão dissesse algo, desviando-se daquele assunto perturbador, mas algo lhe dizia que aquele convite para uma caminhada entre irmãos não seria apenas para descontrair. Parecia haver algo pendente; algo que Lucas ainda desconhecia. Desde pequeno, os dois tinham essa ligação incomum de sentir o que o outro pensava ou iriam dizer. E, naquele momento, o rapaz sentiu que Pedro queria lhe dizer algo; mas, esforçando-se para encontrar as palavras certas, demorou alguns minutos para que ele finalmente abrisse a boca.

— Lucas — Pedro não olhou para ele. Confirmando suas previsões, Lucas fez questão de encará-lo. Mas o irmão continuou caminhando, observando o parque, mas com a expressão mais séria que o habitual. — Não me entenda mal, por favor. Mas... eu estava pensando...

— O quê? — Lucas quase riu, mas a súbita seriedade de Pedro estava deixando-o nos nervos.

— Por que você...não faz terapia?

Lucas parou no instante que ouviu aquela última palavra. Franziu a testa, encarando o irmão com o olhar rígido. Pedro sabia que aquele era um assunto delicado para ele. Então, por que diabos estava lhe sugerindo aquilo?

— É sério? — Lucas questionou-o, indignado. — Você sabe o que eu passei com terapeutas?

— Lu, isso foi há muito tempo. Podemos procurar um profissional especializado em...

— Eu já disse que não! — Lucas falou mais alto do que pretendia. Olhou para os lados, conferindo se ninguém havia escutado. — Não.

Deixando Pedro para trás, Lucas marchou com passos firmes até um dos banquinhos vazios, distante das poucas pessoas presentes. Sentou-se ali, se sentindo um idiota. Sabia que o irmão queria ajudá-lo, mas aquele assunto causava-lhe repulsa e ânsia. E Pedro sabia disso. Sabia de todas as consultas a psicólogos que nunca sabiam agir diante da sua mudez. De seu desconforto e a sensação que era a única pessoa no mundo a ter um misterioso diagnóstico.

Ele ouviu os passos de Pedro sobre a grama seca, aproximando-se e tocando em seu braço. Involuntariamente, Lucas encolheu os ombros.

— Quero ficar sozinho — balbuciou, temendo dizer algo que chateasse o irmão. Ainda enfurecido, recusou-se a olhar para ele ou para qualquer pessoa à distância, mirando um brotinho de mato que nascia diante de seus pés. Ele teve vontade de pisar naquelas folhas e arrancá-lo brutalmente pela raiz; como se aquilo resolvesse todos seus problemas arraigados.

— Tudo bem — Pedro conformou-se, a voz baixa e sem emoção. Lucas pôde senti-lo atrás de si, relutante, até que prosseguiu com o mesmo timbre apático: — Bem...queria que fosse o primeiro a saber. É uma menina.

Lucas ergueu a cabeça e os ombros, mas não se virou. Encarou os balanços, o escorregador de madeira e algumas crianças brincando. É uma menina. Lucas teria uma sobrinha. Em sua mente, já pôde imaginá-la com a pele escura de Melissa e o sorriso simpático de Pedro. Imaginou como seria ver uma criança crescer sem poder ao menos conversar com ela. Como a ensinaria a pintar ou andar de bicicleta. Ele não sabia como seria.

Diante àquela revelação, o rapaz entreabriu os lábios, mas nada saiu. E, mesmo que dissesse, nada adiantaria — Pedro já se encontrava do outro lado da calçada, caminhando sozinho.

✦✦✦

À noite, solitário em seu quarto, Lucas abriu o grupo Clã da Casa 10 e visualizou mais de quarenta mensagens e cinquenta e quatro fotos enviadas a todos os membros. De todas as fotografias, Lucas saiu em apenas duas — uma que incluía todos os convidados no centro da sala, e outra na qual Lucas saiu desfocado no fundo, enquanto Beatriz e Miguel apareciam abraçados à frente. Seus rostos estavam juntos, sorridentes, em contraste com a figura cabisbaixa de Lucas sentada no sofá.

Como era esperado, Lucas não se saiu tão bem na foto em conjunto, mas ninguém estava preocupado com boas aparências. Todos os mortos-vivos faziam caretas, erguendo a mão e revirando os olhos; e Lucas só precisou ficar parado como um cadáver com fobia à câmeras. Em pensamento, ele voltou ao dia anterior, segundos antes daquela foto ser tirada. Lembrou-se da animação de todos, da música que tocava, do cheiro azedo de cheetos, Laura e Raoni ao seu lado e Beatriz posicionando o tripé próximo à janela.

As fotos de melhor qualidade foram tiradas por Beatriz — obviamente, pelo seu talento e afeição pela fotografia — o que não podia dizer o mesmo das fotos de Raoni, tiradas com filtros e efeitos macabros de seu celular. Lucas viu-se rindo daquelas fotos, revendo a si mesmo no meio daquelas pessoas e tentando compreender, em vão, porque sentiu-se tão mal. Viu o braço de Laura apoiado em seu ombro, Raoni com as mãos retorcidas e Miguel, à sua frente, com a cabeça pendida e os olhos esbugalhados. A língua de Bianca para fora da boca em uma careta e Beatriz com um meio sorriso trajando o vestido ensanguentado.

Lucas deitou-se na cama, ainda com o aparelho em mãos. Um vento gélido passou pela janela aberta de seu quarto, fazendo-o cobrir a cabeça com o edredom. Observou pela décima vez aquela foto, dando um zoom na noiva-cadáver. Mais uma vez, tornou a lembrar daquele fim de tarde, quando Beatriz o encontrou debaixo da árvore. Recordou-se de seus dedos tocando o seu rosto, a expressão centrada e sua risada.

O rapaz bloqueou o celular de imediato, colocando-o debaixo do travesseiro. Desejou bloquear seus pensamentos com a mesma facilidade. Seu estômago dava voltas e, por um momento, achou que realmente fosse vomitar o que comera. Tentava, em vão, compreender o que sentia em relação a tudo o que estava acontecendo — os jovens vizinhos, a faculdade, a festa-zumbi, a breve discussão com o irmão, a vinda de sua sobrinha... O quão rápido as coisas ao seu redor haviam mudado?

Preferindo a segurança das estabilidades da vida, todas aquelas mudanças eram levemente assustadoras para ele. Como os ventos da noite, aqueles dias trouxeram perspectivas de um futuro incerto; escuro e gélido demais para alguém tão ansioso.

Desistindo de esperar o sono ou calar a mente, pegou novamente o celular e reviu mais uma vez aquelas fotos. E, em quase todas elas, Lucas pegou-se observando a imagem de Beatriz. Outra vez, a agitação interna sob o seu abdômen o entregou, e ele não pôde mais culpar os cheetos pela sua debilidade. Ele quis jogar aquele celular pela janela, sem coragem de admitir para si mesmo que aquilo já havia acontecido antes, a muitos anos atrás — quando se apaixonou pela primeira vez por uma garota. Como era de se esperar de um garoto que não falava, fora uma tragédia.

Portanto, Lucas demorou alguns dias para assimilar o que realmente estava acontecendo diante de tantas novidades. Em meio ao turbilhão de emoções, o rapaz aos poucos se via apaixonando-se por alguém que, novamente, ele nunca poderia conversar.

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