4. Novos ambientes
☆ Capítulo 4 | O Canto das Estrelas ☆
Quando Miriam tomou a decisão de romper o casamento, Alberto mudara completamente o seu comportamento. De um marido rabugento e um pai irascível, transformou-se naquele que Miriam esperava que ele se tornasse e passou a ser mais carinhoso com os filhos — como se finalmente tivesse se dado conta de seus erros. Mas Miriam não voltou atrás. Mesmo recebendo flores e chocolate do futuro ex-marido, e mesmo que repente Alberto insistisse em levar os filhos para um passeio no shopping. Miriam conhecia o pai de seus filhos. Estava fazendo aquilo para que ela desistisse do divórcio, manipulando-a. Sabia que, se por acaso voltasse atrás naquela decisão, Alberto voltaria ao comportamento de antes.
Na verdade, a mãe de Lucas já estava pensando naquela possibilidade há mais de um ano. No entanto, temia não conseguir dar tudo aos filhos sozinha — não confiava em Alberto para qualquer ajuda, por mais que fosse pai — e, principalmente, porque havia largado tudo para cuidar dos meninos. Por uma escolha dela. Mas, quando Miriam decidia alguma coisa, nada a fazia abdicar-se de suas escolhas.
Em uma tarde de sábado, no ano anterior — quando levara os filhos para visitar o avô — ele conversou com a filha e disse que todo o inventário da casa em que morava e toda a herança que seria distribuída para os dois filhos — Miriam e Saulo — já estava resolvida. O avô dos meninos sabia que poderia partir em breve, apesar de não estar doente.
— Quando eu partir, quero ter certeza de que meus netos vão frequentar boas escolas, que vão viver bem e saudáveis — ele havia dito.
— Você não vai embora tão cedo, pai — Miriam apertava de leve o seu braço; como costumava fazer quando era criança.
Mas o velho homem deu-lhe um sorriso triste.
— Sua mãe puxaria a minha orelha se eu atrasasse em algum compromisso, e isso inclui a minha morte — ele riu, apesar do olhar distante. — Ela está me esperando, Miriam...
Um ano após aquela conversa, seu pai partiu e estilhaçou o coração de Miriam; e nenhuma herança foi capaz de aliviar aquele sentimento em seu luto. Saulo, seu irmão mais velho — que morava em outro Estado e havia se deixado levar pela ganância material — compareceu ao velório e conversou com Miriam sobre a divisão dos bens, que já havia sido decidido pelo pai e devidamente documentado. Quando ela se deu conta que o dinheiro herdado possibilitava que sua ideia de divórcio se concretizasse, ela não pensou duas vezes. E, mesmo com Alberto insistindo em reatar o casamento, mandando-lhe flores e chocolates e chorando por causa dos filhos, Miriam começou a procurar uma casa.
Alberto, percebendo que não haveria volta, entrou em negação; e depois em revolta. Voltou a ser aquele homem irritadiço que fazia coleção de latinhas de cerveja e voltava bêbado para casa. Lucas e Luan, a pedido da mãe, começaram a encaixotar seus brinquedos, pois logo mudariam de casa. Apesar de não ter achado o lugar ideal — e dentro de suas condições financeiras — Miriam sabia que encontraria a casa que viveria com os filhos. Podia imaginar os meninos correndo por um jardim, subindo em árvores, pisando na grama, rindo e se divertindo. Ela sorria ao imaginar a cena de seus filhos no futuro lar.
Com uma fé inabalável, a mulher deixava Lucas e Luan na escola e ia em busca de uma casa que os acolhesse. Visitou algumas, mas a maioria tinha o preço alto demais, e outras não a agradavam — mesmo que fossem casas modernas e novas, tinham jardins demasiadamente pequenos; ou o local não era muito apropriado: fazia barulho demais, ou era perigoso demais. Quanto mais procurava, mais se afastava do centro da cidade. Procurou por algumas semanas, sem desanimar. Até que, um dia antes do aniversário de Lucas, Miriam marcou de conhecer uma casa em um bairro muito agradável e silencioso — ao contrário do apartamento em que moravam, cujo prédio localizava-se em uma avenida movimentada. Ela mal havia parado em frente ao portão verde quando soube, em seu coração, que aquela era a casa que tanto havia procurado.
Localizada no alto do bairro, era rodeada de árvores, lotes e casas com extensos pomares. Miriam entrou na casa desejando que seus filhos estivessem ali para aprovarem a sua escolha. Apesar do aspecto não tão moderno, das paredes descascando e o portão um pouco enferrujado — além do jardim cheio de mato e alguns entulhos — era tudo exatamente do jeito que ela queria: uma varanda agradável, janelas grandes e um enorme jardim. Nos fundos da casa, ela viu um pé de manga e jabuticaba; e até mesmo tomatinhos cresciam em meio à relva abundante. Com uma limpeza e uma boa capinada, ficaria ótimo. E o melhor: pelas condições da casa, o preço estava bem abaixo do normal.
Miriam negociou rapidamente com o vendedor, já planejando o dia em que levaria os filhos para conhecer a nova casa. Não demorou muito, entretanto. Lucas, recusando-se em ir para a escola no dia do seu aniversário (pois tinha medo de que alguém descobrisse e começasse a cantar parabéns, o que o deixava ansioso), foi com a mãe no dia seguinte conhecer a tal casa. O menino adorou as árvores, as janelas sem grades e o quarto — teria um quarto só dele! — bem maior que aquele o qual estava acostumado.
— Ah, essa casa já nos esperava faz tempo, meu filho! — a voz de Miriam ecoava na sala vazia. — Basta agora uma boa reforma, limpar os entulhos do jardim e cortar a grama.
Lucas sorriu, explorando os cômodos. Tudo era muito simples: três quartos, um banheiro, cozinha e sala. De imediato, o menino escolheu o último aposento para ele, com a vista para o jardim dos fundos.
— Olha, um pé de jabuticaba! — Lucas gritou, a voz aguda reverberando pelas paredes. Ele correu para fora, adentrando o jardim. Cosmos-amarelos cresciam em meio às ervas daninhas. O menino foi direto para a árvore, carregada de frutinhas redondas. Miriam apontou para os ramos do pé de amora do vizinho, que pendiam pelo muro.
— Amoras! — a mãe mostrou-lhe. — Vamos ver o que mais temos por aqui...
Mãe e filho passaram boa parte da tarde ali. Exploraram o jardim, os cômodos, andaram pelas ruas do bairro. Diante da casa, um lote à venda destacava-se pelas árvores tortuosas, típicas do cerrado, além da terra vermelha. Lucas correu pelo terreno, subindo com facilidade em uma das árvores — cujo galho oferecia-lhe um ótimo banquinho — e observou as serras ao longe. A mãe, descobrindo uma padaria há dez minutos de caminhada, comprara coxinha e suco de latinha; e eles comeram juntos na pequena padaria. Foi um dos melhores aniversários da vida de Lucas — sem parabéns pra você, sem palmas, sem balões, sem exposição.
— Lucas... — Miriam parecia mais séria agora. — Estive olhando uma escola próxima, parece ser bem agradável.
— Vou mudar de escola? — o menino perguntou baixinho. Seu coração começou a palpitar ao imaginar aquela possibilidade.
— Sua escola é muito longe da nossa nova casa, meu filho — a mãe justificou.
Lucas engoliu em seco. Estava tudo ótimo até Miriam mencionar aquilo. Logo agora, que praticamente todos da escola já sabiam o seu nome e o fato de que ele não falava — assim, ninguém o importunava mais com tantas perguntas inconvenientes. Foi penoso para Lucas se acostumar com o colégio; com os olhares curiosos e os questionamentos dos professores.
Aquela mudança o deixava ansioso. Era fácil para ele a ideia de mudar de casa — pois nada mudaria, as pessoas continuariam sendo as mesmas — a única diferença é que o pai não moraria mais com eles. O problema não era o ambiente; eram as pessoas. Colegas novos, professores novos... Começaria tudo de novo. O menino ficou pensando sobre aquilo por alguns dias, mas logo ficou ocupado demais por causa da mudança. No feriado de carnaval, quando a escola liberou os alunos por uma semana, Lucas já estava na nova casa. Caixotes estavam espalhados pela sala, um jardineiro cortava a grama, e um outro homem verificava o funcionamento do portão. Lucas estava adorando tudo aquilo. Observava, empolgado, o seu novo quarto com suas coisas bagunçadas pelo chão, sua cama, as paredes branquinhas (que haviam sido pintadas dias antes de se mudarem) e já imaginava qual lugar ficaria as estantes azuis que Miriam havia comprado para colocar os brinquedos dos filhos.
Sentando-se no parapeito de madeira da janela, o menino viu o jardineiro trabalhando e sentiu o cheiro de grama recém-cortada adentrando suas narinas. Naquele momento, esquecera-se completamente que se mudaria de escola — inclusive, a mãe levaria ele e Luan para conhecê-la em poucos dias — e que teria que se acostumar a um novo ambiente.
Alberto não estava nada feliz com tudo aquilo — ao contrário de Miriam, empolgada e ocupada demais comprando coisas novas para a casa. Às vezes, Lucas acompanhava a mãe e a ajudava a escolher alguns itens de decoração. Queria que ela comprasse um quadro que achara muito bonito, mas a mãe dissera que era caro demais.
— Vamos combinar assim: você pinta um quadro para mim, e eu o coloco na sala — Miriam olhou para o quadro que Lucas queria; um pôr do sol sobre um belo lago. — Acho que o seu vai ficar mais bonito.
Foi a partir daquele dia que Lucas ganhou tintas de verdade, como aquelas que ele usava na escola (e não as aquarelas), além de vários pincéis e outros itens de pintura. O menino passou a produzir a suas artes na varanda de casa, sentado sozinho em uma mesa de plástico. Vez ou outra, o irmão mais novo insistia em pintar também, e Lucas calmamente o ensinava. Mas Luan logo perdia a paciência. Preferia correr atrás da bola de futebol, correr pela casa e andar de patinete. Lucas agradecia mentalmente pelo desinteresse do irmão, pois Luan não era nada cuidadoso com suas tintas e costumava misturá-las pelo simples prazer de fazer lambança.
Tudo estava bem nas primeiras semanas de mudança, até que Miriam anunciou que visitariam a nova escola. Ficava a menos de dez minutos de carro da casa nova, e era maior que o antigo colégio. Os prédios eram amarelos e azuis, e uma enorme quadra podia ser vista próxima à recepção. Lucas estava muito nervoso. Apesar do calor, seu corpo todo tremia e ele observava, assustado, o novo ambiente que frequentaria por longos anos. Miriam deixou claro à coordenadora que os acompanhou sobre as condições de Lucas. De cenhos franzidos, a mulher agachou-se diante dele e, com um sorriso gentil, disse-lhe:
— Ah, um menino lindo desse não fala? — ela deu uma risadinha, como se não levasse aquilo à sério. Miriam sempre enfatizava: Lucas não é mudo, ele fala comigo. E esse detalhe fazia com que as pessoas não se preocupassem muito com aquele fato. Se o menino não tinha nenhuma deficiência, era só uma questão de tempo até que ele falasse.
Pelo menos, era o que achavam. Miriam estava esperançosa de que a mudança de escola faria bem ao filho mais velho — e que ele finalmente começasse a falar na sala. Afinal, era um novo lugar, com novos colegas e professores. A mãe não compreendia, entretanto, que aquele detalhe deixava o menino ainda mais ansioso. Ele não conseguiria falar. Não estava nada feliz em ter que se mudar para aquela nova escola, mas sabia que não adiantaria se recusar a ir. O colégio era um lugar que não havia como evitar.
Por isso, quando chegou o primeiro dia de aula de Lucas na nova escola, todo o seu estômago gelou. Teve ânsia de vômito, gases e vontade de chorar. Mas ele estava aprendendo a se controlar — na verdade, a reprimir aquelas emoções desenfreadas da ansiedade. Sabia que, se chorasse, a mãe interpretaria como birra de criança (como Luan fazia). Se dissesse que estava passando mal, provavelmente não seria levado a sério — e, de qualquer forma, seria obrigado a ir à escola no dia seguinte, e no dia após o dia seguinte também, e depois, depois, depois... Lucas não tinha alternativa.
Com os nervos à flor da pele, o menino se viu diante da quadra, observando a cantina, a entrada da biblioteca, os corredores com as salas e o parquinho de areia. Paralisado, Lucas forçou-se a acompanhar a agente escolar — uma moça jovem, de cabelos castanhos claros e sorriso tímido. Se oferecendo para carregar a lancheira do menino, apresentou-se como Eliza. Ciente das limitações dele, não fez nenhuma pergunta que exigisse uma resposta verbal — apenas o levou até a sala e disse que o ajudaria em o que quer que ele precisasse. Trêmulo, Lucas olhou para a plaquinha na porta: 2ª série 1*. Ouviu seus novos colegas conversarem, gritarem e empurrar cadeiras.
Lucas paralisou novamente. Alguns meninos e meninas olharam para ele, e Eliza colocou a mão gentilmente em seu ombro.
— Vamos, está tudo bem — a moça tentou acalmá-lo, guiando-o até uma das carteiras vazias. — Sente-se aqui. A professora chegará em breve.
O menino acomodou-se na cadeira, deixando a mochila de rodinhas ao lado. Recusando-se a olhar ao redor, Lucas fitou um desenho a lápis na carteira verde-água. Eliza ficou na sala até a chegada da professora, chamando a atenção de alguns alunos mais barulhentos. Para a surpresa (e alívio) do menino, a professora não perguntou o seu nome — pelo menos, não da mesma forma que perguntou aos outros. Eliza provavelmente a avisou da mudez do novo aluno; ou quem sabe a coordenadora. De qualquer maneira, aquele fato o deixou menos nervoso.
Nos dias seguintes, entretanto, as coisas não foram tão confortáveis. Como era esperado, os colegas começaram a perceber que Lucas nunca falava nada. O fato gerou curiosidade, e logo Lucas tornou-se o principal assunto entre as crianças. Alguns se aproximavam perguntando o seu nome (como se todos já não soubessem), ou fazendo outra pergunta banal. O menino baixava a cabeça, remexendo o lápis ou apertando a borracha, recusando-se a responder.
— Você não gosta de falar? — uma menina que se sentava próxima a ele perguntou. Lucas balançou a cabeça em negativa, mas não era para confirmar que ele não gostava de falar. Contudo, os colegas levaram aquela resposta como uma verdade. Ficavam curiosos; impressionados com o comportamento diferente de Lucas. Aquelas crianças nunca haviam presenciado aquele tipo de coisa antes.
Como um animal exótico, o menino foi observado de longe por mais de uma semana. Aos poucos, colegas e professores acostumaram-se com ele; mas alguns ainda insistiam em arrancar-lhe alguma palavra. Um dia, na educação física, um grupo de meninos bolou um plano — atiraria uma bola forte em Lucas, na queimada, para fazê-lo soltar um Ai. Um garoto robusto, mais alto e mais forte que os outros colegas, foi o escolhido para a ação. Mas a bola lançada na direção de Lucas atingiu o seu rosto com muita força — o que não foi, supostamente, a intenção do colega — e o menino levou a mão imediatamente ao nariz, sentindo o rosto arder. Sem soltar um ruído. Sem dizer um ai.
— Ah! Foi mal! — o colega gritou, assustado. Um outro, aquele mesmo que havia bolado o plano maligno, tampou a boca para esconder a risada. O garoto mais robusto, Antônio, parecia arrependido.
A professora de educação física foi até ele, olhando o seu rosto e verificando se seu nariz sangrava. Advertiu Antônio, lembrando-o das regras do jogo — não jogar a bola no rosto dos colegas propositalmente era uma delas. Lucas teve vontade de chorar; mais pela humilhação do que pela dor que sentia no nariz. Notando seus olhos marejados, a professora disse-lhe para ir ao banheiro molhar o rosto.
Eliza, que observava os alunos jogando, acompanhou o menino até o banheiro. A moça ficou parada na porta, esperando-o lavar o rosto. Lucas desejou trancar-se em uma daquelas cabines azuis e só sair quando todas as aulas acabassem. Mas, com Eliza esperando-o do lado de fora, ele não tinha opção.
— Lucas? Está bem? — a voz da moça ecoou pelo banheiro, e Lucas fungou. Enxugou o rosto com papel descartável e saiu, sem conseguir disfarçar seu aborrecimento. A dor da bola atingida não o incomodava mais; mas a risada do outro colega reverberava em sua mente como em um replay. Seu peito estava pesado, e ele desejou dizer à Eliza que não queria voltar para a quadra.
No entanto, ele foi obrigado a retornar. Sentou-se na arquibancada, esperando a aula terminar. Afinal, Lucas estava eliminado; e não seria a primeira vez que sua falta de habilidade nos esportes — e a falta de sua voz — o faria ser descartado do jogo.
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*Atual 3º ano do Ensino Fundamental I. Como a história se passa no início dos anos 2000, optei por usar o termo antigo.
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