2 • A Surpresa no Bosque
Como era natural, os dias passaram-se no vilarejo de Auri e a comida acabou mais uma vez. Então, assim como no dia em que voltara com uma bela raposa para casa, ela levantou antes do sol nascer, armou-se com o arco, as flechas e a adaga, passou pelas planícies longas e entremeou-se no leste do Bosque de Averlin. Estava pronta para enfrentar a travessia do Rio Frothy novamente, mas antes que pudesse fazê-lo, avistou um grande pacote repousando no meio da passagem para a ponte.
Com a flecha apontada para o misterioso embrulho, Auri checou os arredores, certificando-se de que não via ou cheirava nenhum luno ali. Logo constatou que a única coisa que tinha o cheiro deles era o artefato que via e se aproximou, atenta e receosa. Era um pacote quadrangular, grande, enrolado em linho branco e amarrado por cordas. Ela pensou duas vezes antes tocar nele, mas esquadrinhando o entorno outra vez, o puxou pelas cordas e o arrastou até detrás de uma árvore frondosa.
Auri quis recuar e deixar o embrulho, porém a verdade era que já estava curiosa demais para fazê-lo. Com alguma pressa, pegou a adaga e cortou as cordas, fazendo o linho deslizar e revelar um caixote de madeira. A jovem passou os dedos ansiosos sobre as farpas do material e outra vez usando sua arma pontiaguda, deslocou a tampa. Ela quase saltou quando a placa caiu no chão com um barulho, mas quando espiou para dentro, seus olhos mal acreditavam no que viam.
Frutas, pão, cereais, legumes, carne conservada em sal... Havia tanta comida no caixote que os múltiplos aromas inebriaram o olfato de Auri, a fazendo ficar tonta. Ela logo pensou que tudo aquilo era uma armadilha, que a comida estava envenenada ou amaldiçoada, mas no fundo da caixa havia um pequeno papel amarelado e enrolado por uma fita azul. Cuidadosamente, ela apanhou aquilo e abriu, lendo as palavras feitas à pena e tinta que cheirava a cedro puro.
Corajosa garota gruska do Bosque de Averlin,
Eu não sei seu nome, mas espero que seja você que encontre esta caixa. Quero que saiba que tudo que me disse nas árvores jamais deixou minha mente durante todos esses dias. Nunca acreditará em mim, mas gostaria que cresse que eu não fazia ideia do que estava acontecendo com o seu povo, e posso lhe garantir que a maioria dos lunos também não o faz. Ambos nascemos após a guerra, mas é bem claro que ela nos afetou de formas muito diferentes. E você tinha razão: ninguém nunca me contou sua parte da história. Essa crueldade foi muito além das coisas da guerra.
Nessa caixa, envio as sementes das quais nascerão árvores capazes de quebrar a maldição jogada sobre o leste do Bosque de Averlin. Não se preocupe, porque ninguém jamais saberá que a vi em Gorluin. Sei que também acredita na paz, caso contrário, teria me matado no Bosque quando teve a chance. Por isso, lhe peço obrigada. Peço também perdão a você e a todo o povo grusko pelos erros do meu pai. Eu consertarei tudo, não importa o tempo que leve. Tem a minha palavra.
Minhas solenes saudações,
Theodric Moondust.
As mãos de Auri quase derrubaram o bilhete quando ela leu o nome assinado na carta com olhos arregalados. Theodric Moondust era o príncipe dos lunos de Gorluin, o primeiro herdeiro do rei tirano que trouxera a guerra. Sua fama o precedia: era bom, justo e honesto, tão diferente do seu pai. Ainda assim, como ela poderia confiar que ele falava a verdade? Como poderia saber se aquela não era uma armadilha dele ou do cruel rei dos lunos?
Auri levantou-se, andando nervosamente de um lado para o outro na frente da caixa, pensado sobre o que deveria fazer. Podia levar aquilo para seu vilarejo, mas e se fosse outra magia cruel dos lunos? Podia apenas jogar aquela caixa no Rio Frothy e deixar que afundasse, mas e se realmente fosse confiável? Não podia desperdiçar tanta comida preciosa daquela forma e, no fundo, algo nela acreditava no jovem que vira desarma-se no Bosque e deixá-la ir.
Nessa caixa, envio as sementes das quais nascerão as árvores capazes de quebrar a maldição jogada sobre sua terra, ela relembrou, pensativa.
Por um instante, Auri parou e observou a caixa. As sementes, ela pensou, apanhando uma morana — pequena fruta azul típica do Bosque de Averlin. Então, sem se deixar criar mais dúvidas, ela mordeu o fruto rapidamente e repetidas vezes até que dele sobrasse apenas sua semente.
O sabor agridoce da morana encheu a boca de Auri e ela segurou o que restou da fruta entre os dedos, sentindo a comida descer garganta abaixo. Parada por um minuto, esperou se aquilo lhe faria mal, mas a única sensação que tinha era de algo enchendo seu estômago vazio.
Suspirando, ela se abaixou rapidamente, usando as mãos para abrir um pequeno buraco no chão frio do Bosque de Averlin. Auri jogou a semente lá dentro e a cobriu com terra, o coração batendo forte no peito. Não sabia bem o que estava fazendo nem o porquê, mas sua alma desejou com tanto afinco que tudo aquilo acabasse que fez seus ossos doerem. Ela fechou os olhos, mãos fincadas na terra e a cabeça baixa, fazendo o cabelo longo cair sobre seu rosto.
Passou-se um segundo, porém nada aconteceu.
Por um instante, Auri sentiu-se uma idiota por acreditar nas palavras daquele luno. Ela deixou que uma lágrima quente escorresse pela sua bochecha, repetindo para si mesma que a fome jamais acabaria. Quis levantar e chutar aquele caixote no rio, mas quando realmente tomou impulso para fazê-lo, calor encheu suas mãos fincadas na terra.
Auri abriu os olhos, observando atônita enquanto um broto pequeno e verdejante nascia do lugar onde havia enterrado a semente, e faíscas de magia como as que ela vira saindo dos dedos de Theodric vinham com o vegetal. Era apenas um caule fino com duas folhas suculentas, mas nunca havia visto nada como aquilo em sua vida. Ela levantou ligeira pelo susto e a plantinha balançou um pouco, logo ornando-se de mais folhas e crescendo até a altura dos joelhos dela.
Era uma moraneira florescendo da terra onde nada nascia há décadas.
Auri deu dois passos para trás com os olhos dourados brilhando de encantamento. Então, quando achava que aquilo já era surpreendente demais, escutou pequeninos passos na ponte; sua audição gruska a avisava da chegada de algo. Ela apanhou o arco e flecha do chão muito ligeira, armando-o e esperando que algo aparecesse. Tentou farejar algum luno, mas só o que sentiu fora um cheiro estranho que nunca achara naquele lado do Bosque de Averlin. Nas copas das árvores, um farfalhar se aproximava e esticando a corda do arco, ela ajustou a mira. Para sua completa surpresa, no entanto, o que apareceu num galho baixo foi um pequeno e inofensivo esquilo.
Inacreditável. Nenhum animal habitava o leste do Bosque desde o fim da guerra. Auri deixou cair sua arma no chão, estupefata. Não sabia quais as verdadeiras intenções de Theodric, o príncipe dos lunos, mas soube ao menos que ele cumprira o que escrevera na carta:
A maldição estava quebrada.
Exasperada, Auri fechou o caixote que recebera, enrolando-o e amarrando-o outra vez. Apanhou seu arco, sua flecha e sua adaga, ajeitou os ombros e começou a arrastar tudo, seguindo seu caminho para casa. Precisava contar a sua família o que acontecera, precisava contar a todos. Quis poder ver o príncipe luno novamente, mas não podia arriscar voltar ao oeste do Bosque e encontrar a morte ao invés dele. Não podia perder o que tinha em mãos.
Olhando para trás uma última vez, Auri espiou o outro lado do Rio Frothy por entre as árvores, sorrindo como não fazia há muito tempo. Já ia virar-se e voltar para seu caminho, mas seus hábeis olhos gruskos captaram um movimento em uma das copas frondosas do Bosque em Gorluin. Ela soltou as cordas e segurou seu companheiro arco e flecha na direção do achado. Sem demora, um corpo desceu das folhas, aterrissando perto da margem do rio.
Mesmo de tão longe, Auri rapidamente reconheceu o cabelo profundamente preto e os olhos turquesa. Theodric a observava e vestido de couro e linho tingido de azul, ele sorriu cordialmente. Ela não sabia exatamente o que fazer ou dizer, pois estava exaltada demais. Deixou somente que o arco desarmasse em suas mãos, andando até a margem do curso d'água, frente a frente com o luno do qual somente o Rio Frothy a separava.
— Obrigada... — disse, verdadeiramente agradecida. — Muito obrigada — repetiu, como se quisesse se certificar que ele soubesse que o agradecimento era sincero.
O príncipe abaixou a cabeça para Auri num aceno saudoso e então disse:
— Sem mais guerras. — E deu um passo para trás.
Ela balançou a cabeça veementemente em concordância, reprimindo um sorriso. A curva dos lábios caia bem no seu rosto bonito, ainda que ela não costumasse fazê-lo muitas vezes.
— Posso ao menos saber seu nome? — Theodric perguntou, parando ao lado de um tronco robusto de árvore.
Após um segundo de silêncio, ela sopesou a situação e chegando a conclusão que não tinha mais nada a perder, respondeu:
— Auri. — Sua voz foi firme, mas seus dedos eram trêmulos.
O príncipe concordou com a cabeça e com um sorriso, deu outro passo para trás.
— Nós nos veremos outra vez, Auri. — Ele a garantiu, virando-se para ir.
Auri concordou mentalmente, mas não teve coragem de dizer mais nada. Ela apenas observou Theodric partir por um segundo antes de correr de novo para seu caminho, voltando a arrastar o caixote e seguindo para o vilarejo. Não sabia se realmente acreditava nos deuses, mas agradeceu-lhes, se a ouvissem, por tê-la feito atravessar a ponte para Gorluin no dia em que conhecera o príncipe dos lunos. Agora, tinha a salvação do seu povo naquela caixa de madeira e quem sabe, talvez tivesse achado também tempos de paz naquele caminho do Bosque de Averlin.
Sim, pensou. Veria Theodric, o príncipe dos lunos, outra vez.
🏹
1.685 palavras.
Total de palavras do conto: 3.670.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro