Perfecta
Nice e Arlene combinam como água e óleo. A aproximação do grande evento, a Quinquagésima segunda edição da Formatura, só acentua as diferenças entre ambas. Isso porque as irmãs reagem à situação partindo de perspectivas diferentes.
Para começar, Arlene é considerada perfeita e Nice, não. Em Perfecta, os papéis atribuídos às pessoas, bem como suas ocupações, dependem basicamente disso... Nice nasceu cega; e Arlene despreza a irmã como qualquer outro morador da colônia que foi educado para assim proceder. Pessoas com deficiências não são bem vindas.
Tão logo os Censores a identificaram, Arlene foi levada pelo Estado e treinada para se tornar uma caçadora. Ela frequenta meio ciclo atrás de Caio Fábio, o candidato reconhecidamente mais destacado da Academia. E, claro, nutre uma paixonite secreta por ele...
O candidato-modelo, exposto numa vitrine constante, espelho para os demais... Caio é o alvo de suspiros por parte de muita gente, independente do gênero. Destemido, arrojado, popular, mas, também, prepotente, atrevido, distante, e dolorosamente direto. Se por um lado, sua aura de invencibilidade e dinamismo atrai; por outro, a atitude superior intimida.
Embora se esforce para não demonstrar seus sentimentos, Arlene não conseguiu evitar ser mais uma das suspirosas de Caio. Na verdade, ela combate arrogância com arrogância – competindo com afinco para avançar nas posições do ranking geral da Academia. No fundo, o que ela mais quer é ser notada e admirada; porém, suas tentativas de chamar a atenção de Caio durante as competições, acabaram por irritá-lo mais do que interessá-lo.
O mesmo não acontece em relação à Nice, a irmã cega que Arlene sente vergonha de reconhecer.
Se Arlene descobrir o interesse de Caio por Nice, com certeza, o seu ódio não conhecerá limites... Caio não duvida de que ela seja capaz de denunciá-los ao Conselho. Pelas regras, é inaceitável que uma cega de nascimento tenha qualquer envolvimento com um morador de Perfecta, quem dirá se for um caçador.
Quanto à Nice, não está nem um pouco eufórica com a aproximação da Formatura. Quando Caio receber as armas e os equipamentos, partirá da colônia em busca de água. Talvez, não consiga completar a tarefa. Talvez, morra lá em cima. Daí, ela não mais contará com a sua presença. Nem sua proteção. Sim, porque agora ela sabe que ele a está protegendo em segredo...
A estadia de Nice na colônia depende de condições especiais e um tanto precárias. Ela sabe que mais cedo, ou mais tarde, acabará sendo deportada para a colônia dos incapazes. Isso só não aconteceu ainda porque ela vem demonstrando habilidade excepcional para lidar com números; além de ter sido responsável por organizar e catalogar o acervo da biblioteca da Academia, onde trabalha como assistente. A biblioteca é, para Nice, um precioso refúgio, onde ela fica a salvo do ódio a que costuma estar exposta.
Enquanto a maioria das pessoas da colônia principal trata os deficientes com repulsa, Caio Fábio é o único a fazer com que ela se sinta especial, e acima de tudo, uma pessoa capaz.
Ironicamente, Caio é considerado o mais perfeito entre os perfeitos.
***
O mais perfeito entre os perfeitos não vê a hora de receber o título de caçador. Com um suspiro de tédio, ele se força a prestar atenção ao instrutor e ao tema da aula.
O tema é "superfície".
-Existem semelhanças entre a Terra e Marte... – Seneca lança um olhar reflexivo para as imagens de ambos os planetas, projetadas lado a lado. Enquanto o projetor trabalha ruidosamente para mantê-las na parede, ele relanceia o olhar através do círculo de alunos. O seu coetus alumni proficiebat (grupo de estudos avançado).
A aula bem poderia estar ocorrendo enquanto perambulam ao longo da Academia, Seneca pensa. Perambular é um dos seus métodos preferidos, refletindo o evoluir de uma educação que acompanhou as demandas sociais e as mudanças econômicas. A instrução tornou-se prática, objetiva e analógica.
As aulas e instruções acontecem no Complexo de Aprendizagem teórica nomeada de Doctrina. Instrutores e alunos não contam com métodos de registro, tais como anotações, ou ferramentas de pesquisa. Alguns dos candidatos só vêem amostras de celulose no Museu de Doctrina. Trata-se de uma antiguidade, assim como os bytes dos computadores de um passado remoto. O raro papel utilizado nas colônias é fabricado a partir das rochas, portanto, não deixa de ser tão raro quanto.
A oralidade ganhou força total; e os acadêmicos exercitam a memória como principal ferramenta de consulta e trabalho.
-Porém, há diferenças significativas entre estas superfícies... – Seneca lembra-se de acrescentar, em tempo. - Alguém sabe me informar quais são?
Sentados no chão, os alumni - popularmente chamados de "candidatos" - absorvem em silêncio a pergunta do instrutor. O professor aguarda pacientemente que se manifestem. Não demora muito para que a memória mais prodigiosa da classe entre em ação:
-Marte e Terra. – Caio remexe as pernas, cruzando-as à frente do corpo. - Semelhanças: ambos os planetas possuem superfícies acidentadas e áridas; frequentemente varridas por tempestades de poeira, com descargas elétricas ocasionais. Diferenças: Marte possui água congelada abaixo da superfície. A Terra possui precipitações rápidas e intensas, formando rios temporários que se evaporam em igual velocidade.
Seneca flagra Herson revirando os olhos. O instrutor tem ciência de que o garoto é o principal concorrente de Caio na pontuação geral do curso. Ambos competem pelas notas e, consequentemente, pelo primeiro lugar. O vencedor recebe a moto 526, destinada a acompanhar o caminhão Primus Magnus - o maior transportador de água já construído nos últimos 50 anos.
Primus Magnus foi escoltado pelo lendário caçador Major Dominus. Guardá-lo será uma honra e, ao mesmo tempo, tremenda responsabilidade concedida apenas ao melhor caçador de cada ciclo.
Absorto nas imagens oscilantes dos planetas, repletos de cicatrizes provocadas por cataclismos diversos, Seneca lembra-se do que o avô lhe tinha dito sobre o trágico destino da NE Novus Orbis, quando a espaçonave aterrissou em Marte. Isso foi há mais de três milênios... Conforme o relatório da tripulação: (...) Ao contrário da Terra, a superfície é acidentada e árida, porém, encontramos água congelada em pontos isolados, praticamente inacessíveis. (...)
Naqueles tempos, a Terra era muito diferente. A ironia da situação fez Seneca comprimir os lábios. Seu avô guardara documentos importantes – relatórios confidenciais – que seus antepassados haviam codificado durante as investigações empreendidas pela antiga e extinta Agência de Navegação Extraplanetária - ANE.
Já no folclore popular, versões diferentes dão conta dos possíveis e aterradores acontecimentos que culminaram no desaparecimento da tripulação da Orbis, assim que desembarcou em Marte.
Eis um mistério ainda insolúvel... Mas, isso – ele deu de ombros – é outra história.
Virando-se para a turma, deixa escapar o comentário:
-Uma pena que a colônia de Marte não tenha dado certo.
Caio Fábio franze o cenho. – Isso foi há... Quê, um terço de gigaciclo?
-O que é que tem? – Seneca se afasta das imagens oscilantes para encarar Caio. – Não é menos verdade, só porque a tragédia pertence ao passado.
-História antiga. – Caio revida tranquilamente, num tom de desprezo tão evidente que quase tira Seneca do sério. Quase...
-Também aprendemos com história antiga. – O instrutor responde, pausadamente. - O passado muitas vezes se repete, Caio. Sei que você pensa que olhar para trás é perda de tempo, mas é graças a ele que temos a oportunidade de evoluir.
-Evoluir? – A sobrancelha de Caio ergue-se brevemente. – Temos uma bagagem de praticamente cinquenta a cem mil anos de civilização, entre pré-história e história, e até agora só andamos para trás. O exemplo disso é o fato de que quase acabamos com os recursos naturais deste planeta, em um curto espaço de tempo geológico.
O candidato já manifestara tantas vezes o aspecto ácido de sua personalidade, que Seneca não ficou surpreso. No entanto, é sempre um desprazer quando acontece – ainda mais diante da turma, o que faz a maioria dos instrutores sentir a autoridade contestada, ou os conhecimentos desafiados. Não é o caso de Seneca. A atitude de Caio o estimula a se aprimorar cada vez mais como instrutor. Graças ao desempenho excelente, Seneca obteve recentemente o título de Oris (título honorífico concedido ao educador acadêmico); significando que sua palavra passa a ser hierarquicamente a mais importante do corpo docente, dentro de Doctrina.
- Ciclos de desenvolvimento e queda de civilizações ocorrem, de fato. – O instrutor pondera com cuidado, reconhecendo a lógica do alumni. – Contudo, Caio, se você não deposita esperança na civilização... Por que vai arriscar a própria vida para ir à superfície? E uma vez lá em cima, não acha que o desânimo pode fazê-lo sucumbir às adversidades?
Estas são perguntas astutas, sem dúvida. E tanto Caio quanto os outros sabem disso. A classe aguarda em suspense...
-As respostas a ambas as perguntas são relativamente simples - Caio começa a dizer, com tranquilidade. - Vou arriscar a minha vida porque tenho noção de dever. O dom com o qual nasci também representa uma responsabilidade à qual não se pode esquivar. Agora, o que vai me impedir de fraquejar é a mais pura e instintiva necessidade de sobrevivência. Não estou a fim de morrer lá em cima.
Herson aguarda ansiosamente pela reação do instrutor, que não demora:
–Sempre achei a franqueza uma qualidade com dois lados... O negativo e o positivo. Mas, ainda assim, é a sua melhor qualidade, Caio – comenta Seneca, em tom seco.
Herson encolhe os ombros, desanimado. Depois, lança um olhar rancoroso ao rival – algo que não escapa aos demais. Entretanto, Caio não dá mostras de se importar, nem com o comentário do instrutor, nem com o olhar do colega. Críticas, elogios, e animosidades não costumam afetá-lo.
A sirene soa. Os acadêmicos começam a se levantar, pois a próxima aula ocorrerá em Pragmaticus – o Complexo de Condicionamento Físico da Academia. Muitos aspirantes a caçadores maldosamente chamam o complexo de campo de concentração.
O apelido não deixa de ter razão...
Caio fecha o zíper do macacão térmico. Detesta ter que usá-lo, mas é obrigatório, enquanto estiver na arena de Pragmaticus. O macacão traz um capuz de adesão craniana que serve como capacete maleável. Às vezes, os médicos implantam eletrodos por baixo para obter respostas sobre o funcionamento cerebral, durante as provas. As reações do cérebro também contam, na avaliação final do candidato.
Com um suspiro, ele puxa os cabelos negros e rebeldes para trás e seu crânio é achatado pelo capacete maleável.
Caio olha-se no espelho e dá de ombros, com vontade de rir de si mesmo. Sente-se o representante de uma nova espécie de anfíbios... Girando nos calcanhares, ele se autocensura. Já devia estar acostumado. Não devia? Decide não dedicar mais um fractum sequer às divagações vaidosas. O traje não é a última palavra em moda colonial, mas delineia perfeitamente os músculos, deixando-os livres para movimentos amplos; além de ser resistente o bastante para protegê-lo contra os impactos, durante os exercícios.
Trata-se da última palavra em matéria de tecnologia.
Ele sai do vestiário, percorre o corredor que o conduz à área principal. A arena é tão majestosa que ele sempre tem um sobressalto quando o corredor se abre para o anfiteatro.
A parte superior da arena consiste em um domo de fibra inquebrantável transparente, próprio à absorção de energia solar captada pelos espelhos de superfície. O domo apóia-se em encaixes escavados na rocha e retém o ambiente climatizado; vários dutos de ar formam um extenso labirinto, insuflando constantemente o local com oxigênio padrão, produzido especialmente para grandes profundidades.
Um dos desafios que aguarda todo caçador é o momento que o seu organismo terá de assimilar as diferenças atmosféricas da superfície. Caio, porém, pensa muito pouco no assunto. Acostumado ao ar da redoma, ele respira fundo e se move em direção ao centro da arena.
No trajeto, é interceptado por Herson. Seu principal adversário.
-Hoje a prova vai ser... Radical! – diz Herson, ao puxar o dispositivo de aderência ao crânio de seu capacete maleável.
A sobrancelha de Caio ergue-se diante do comentário. Ele não está interessado no que Herson pensa ou deixa de pensar.
-É mesmo?
Claro que Herson percebe o seu desinteresse e fica com mais raiva ainda. Está na cara que os concorrentes não passam de insetos para Caio. Sua atitude superior é uma afronta constante.
Mas ele vai ver só!
De repente, Herson recupera o controle e se acalma; um sorriso venenoso se espalha pelo seu rosto. Ele então cutuca Caio de leve, nas costelas.
-Sabe o que eu mais gosto, em Pragmaticus? – Herson não espera pela resposta e dá prosseguimento ao teatro: - Os atuais primeiros colocados no ranking... Quer dizer, você e eu... Podemos requisitar adicionais para nossas provas. Não é o máximo?
Caio se retesa diante da pergunta de Herson.
Adicional é o termo técnico atribuído ao participante voluntário, ou involuntário, que se sujeita aos exercícios na arena. Neste caso, a função do candidato é tratá-lo como seu condutor. E, assim sendo, salvá-lo dos obstáculos que simulam as intempéries da superfície.
-Temos percebido que para você, as provas estão muito fáceis... – Herson comenta, em tom amigável. - Não estão à altura do seu brilhantismo. Discutimos entre nós...
Nós, quem? Caio fica se perguntando, enquanto o outro continua o discurso visivelmente ensaiado:
-... e ficou acordado que eu tomaria a iniciativa de lhe prestar esse grande favor.
Os candidatos não requisitam o uso de adicionais por considerarem esta uma prática desumana, imoral, e cruel (conflitante com o código de honra pessoal dos caçadores); ainda mais levando em conta os riscos envolvidos. Contudo, a presença de um adicional é opção viável, e perfeitamente legal, oferecida pela Academia aos candidatos em treinamento.
- É o meu presente de formatura pra você, colega. - Herson dá uma palmada amigável no ombro de Caio.
Um presente sui generis. Os candidatos que usarem adicionais, se bem sucedidos nos testes, pontuarão o dobro positivo em relação aos colegas; se mal sucedidos, ponturão o dobro negativo. E no caso de o adicional vir a falecer, isso pode implicar no desligamento do candidato, dependendo das circunstâncias envolvidas. O julgamento, por si só, já é o suficiente para provocar o desligamento. Afora o fato de que o candidato carregará em sua consciência a morte desnecessária de outro ser humano. Para o resto de sua vida.
Caio nunca teve a pretensão de usar adicionais, embora esteja confiante em sua capacidade de salvá-los. A essa altura, porém, ele já compreendeu aonde o rival pretende chegar com aquela conversa.
-Não faça essa cara, colega! – Herson exalta, num tom de evidente provocação. - Vai ser bom para agitar as coisas!
Presente de formatura, é? Caio gira o corpo, preste a socá-lo, quando se dá conta de duas coisas. A primeira, é que não há mais tempo para qualquer reação. A segunda, é que atrás de Herson surge uma figura feminina inesperada. E muito familiar. Ela está parada no extremo oposto do campo da arena.
Caio engole em seco. É Nice, vestida com o uniforme de adicional.
Tudo que pode pensar é que foram descobertos e que ele está sendo testado. Não apenas por Herson, mas pelo Conselho.
O Conselho possui muitos olhos e ouvidos espalhados pelas colônias. Caio olha de relance para Herson... E muitos lacaios também!
***
Caio fecha os punhos até as juntas doerem. Herson e sua corja foram longe demais. Nenhum caçador, muito menos candidato, jamais obrigou um civil a participar dos exercícios na arena. Os interessados se voluntariam e recebem uma recompensa por isso.
É certo que Nice não está lá como voluntária, Caio raciocina.
Alheia aos observadores e suas especulações, Nice passa as mãos pelo uniforme de tecido áspero, que fora obrigada a vestir.
-Tem alguém aí? – sua voz hesitante ecoa pela redoma. - Por que estão fazendo isso comigo?
Trêmula, ela se desequilibra e cai sobre os joelhos. Está sem a bengala e não há nada ao redor que ela possa tocar para guiá-la. Nice lança os braços para frente mais uma vez, tateando o ar.
Nesse momento, Caio sente um ódio tão profundo como nunca se julgou capaz. A arena é um pesadelo para pessoas cegas, considerando-se o espaço aberto e amplo... Não há marcos, nem barras; não há sinalizadores auditivos, muito menos físicos.
Doctrina não fora projetada para deficientes.
-Resolvi inscrever a ceguinha – Herson murmura perto do ouvido de Caio, provocando-lhe um sobressalto. Ele tinha se aproximado sem que este percebesse.
Caio se afasta dois passos e fecha a cara. Normalmente, ele oculta os sentimentos por trás de sua habitual máscara de indiferença. Mas, agora, ele sequer tenta esconder a indignação.
-O que foi que você fez? Nice não é uma voluntária!
-Tem certeza? – Herson rebate, com expressão de fingida dúvida.
-Não me tome por um idiota igual a você. – Caio range os dentes; está quase perdendo o controle.
-É só uma cega, cara! - Herson dá de ombros, ignorando as palavras do outro. - Ela tem que se submeter se quiser continuar morando em Perfecta. – Ele sorri, em antecipação. - Aliás, nós dois sabemos que a estadia da cega está por um fio. Sua utilidade em nossa colônia tem sido questionada...
Lançada a bomba, Caio estuda seu oponente com cuidado. Herson sabe de algo que ele obviamente não sabe.
-Sempre achei essa ceguinha insípida. Ela ofereceria melhores serviços na cama, se realmente for do interesse do Conselho mantê-la aqui. Ah... – Herson ergue o olhar, como quem teve uma súbita inspiração. – Acho que vou fazer essa sugestão!
A nuca de Caio se arrepia – o corpo preparado para bater, rasgar, trucidar. A ideia de violência deve estar expressa em seu rosto, pois Herson afasta-se rapidamente pretextando ter ouvido o chamado do instrutor. Não que seja tão fácil assim escapar da fúria de Caio. Mas tudo o que este quisesse dizer ou fazer se perde em meio ao rugido das águas barrentas que vêm chispando pelas gigantescas tubulações ocultas nas bases do campo.
Os olhos do rapaz se arregalam. A prova está começando sem qualquer aviso. Ele sabe que este é um daqueles momentos em que é preciso manter a cabeça fria. Caso contrário, Nice acabará se afogando e ninguém – ninguém mesmo! – vai dar importância a sua morte.
Exceto ele.
Não muito longe dali, o instrutor responsável pelo ciclo de Pragmaticus, juntamente com a turma de candidatos, aguarda o início da prova. Herson reúne-se a eles com uma expressão satisfeita.
O grupo está confortavelmente instalado na "gaiola" – o elevador de segurança suspenso por cabos, cujas engrenagens erguem a "plateia" para longe da zona de perigo. Do alto, os instrutores têm uma visão privilegiada do campo - consequentemente, do exercício - e podem avaliar melhor os candidatos; da mesma forma como os novatos que os acompanham têm a chance de observar o desempenho dos alumni mais adiantados.
O instrutor Delano tem uma turma mista desta vez - os eleitos entre diferentes ciclos que vieram para assistir à última prova de Caio Fábio, o candidato número um do ranking. O momento é solene. Por isso mesmo, ele chama a atenção da turma para que se concentre no começo da prova. Recomendação inútil, uma vez que ninguém consegue mais conversar acima do rugido das águas.
Arlene pertence ao grupo que foi honrado com a possibilidade de assistir à prova. A lista contendo os eleitos foi divulgada com cinco manes de antecedência. Tempo de sobra para que uma brilhante ideia lhe ocorresse. Agora, ali está ela, esperando para acompanhar o resultado de suas ações.
Delano percebe que a alumni mais promissora do terceiro ciclo não desgruda os olhos de Caio e de sua adicional, lá embaixo. Ele estranhou quando soube que ele havia requisitado um adicional. E como foi algo inusitado, até compreende a agitação que percorre o grupo. Todos estão ansiosos para ver como Caio irá se sair tendo que salvar uma pessoa de carne e osso. Sem dúvida, não se trata de uma mera simulação - o exercício é para valer! Além do mais, Delano sabe que Arlene tem motivo para estar ansiosa. É sua irmã que está lá em baixo.
Acontece que ele desconhece o real motivo da ansiedade de Arlene.
A garota agarra-se à mureta, cheia de preocupação. Para um espectador inocente, pareceria que está apreensiva com o destino de sua irmã. No entanto, para quem a conhece tão bem quanto Herson, sabe que é a reação de Caio que ela teme.
-Eu não te disse que ele tem uma quedinha pela cega? – Herson cochicha em seu ouvido, em tom de zombaria.
O som de um rangido sinaliza que as correntes da arquibancada estão sendo travadas numa altura segura em relação à enchente aguardada lá embaixo. Os candidatos começam a fazer suas apostas em relação ao desempenho de Caio.
- Galera! - Axe levanta a voz. - A casa sempre vence! Vocês serão uns idiotas se apostarem contra ele.
Como Axe toma a iniciativa de controlar e receber as apostas, Leca conta seus créditos no cartão e informa em tom profissional:
-Aposto 4 pecs em Caio Fábio.
Ela se adianta para estender o cartão a Axe, mas tropeça de repente. Não percebe que Herson esticou a perna de propósito. Teria batido na borda da grade, se Ênio não a tivesse amparado em seus braços. Leca fica vermelha de vergonha.
-Oops! – O rapaz sorri, procurando deixá-la à vontade.
Ramiro começa a sinalizar os valores em pecs. Ênio ri diante do fato de que Axe sempre se comporta como o líder fluente, o articulador do grupo, enquanto Ramiro é o ajudante calado, mas eficiente.
Ênio se distrai observando as apostas; de repente diz: – Cinco por um que Caio vai dançar? – Olhando mais atentamente, repara que a aposta alta não tem nome; então, relanceia os olhos ao redor e pergunta em voz alta: - Quem foi o idiota que apostou contra o campeão?
O pessoal troca olhares especulativos... Albino aponta o polegar para Herson. Ênio balança a cabeça em negativa e abre a boca para falar, mas é Cassiano quem se manifesta, do outro lado da gaiola:
- O babaca presunçoso... Só podia ser.
– Qual é, pessoal? – Herson praticamente cospe as palavras, depois lança um olhar de advertência para Albino e Cassiano.
-Nada a ver, cara! – Albino zanga-se diante da sua atitude. - Só porque admiro o sujeito, não quer dizer que estou contra você.
O que ele não entendeu ainda é que admirar Caio é estar contra Herson.
- Vai perder tua grana, cara! – Herson responde, debochado. - Ninguém é invencível, cara! – acrescenta, com o dedo em riste: - Mas quer saber? Até sexta, eu terei superado o metido do Caio no placar geral. E vocês todos vão ter que engolir isso.
Os demais bufam e riem. Herson os ignora deliberadamente.
Delano balança a cabeça, demonstrando aborrecimento. Alguns instrutores consideram a competitividade agressiva um poderoso instrumento de motivação. Ele, porém, não pensa assim. Batendo palmas para se fazer notar, aproxima-se dos apostadores.
-Ei, pessoal! A inveja é um veneno... – Delano olha ao redor, sua postura de autoridade dissipando os humores exaltados. Não vê a careta que Herson faz pelas suas costas. - Chega de brigas e discussões. Vocês estão aqui para aprender, assim como o próprio Caio. Vamos observar o desempenho dele e ver de que forma podemos melhorar o nosso.
Herson dá de ombros, como se pouco lhe interessasse, então se aproxima de Arlene outra vez. Ela não assimila a sua presença, pois está totalmente concentrada no casal, lá embaixo.
– Por que será que ele sempre coloca as frases na segunda pessoa do plural? – Herson começa a tagarelar. - Vocês isso, vocês aquilo, como se... – Vendo que a garota não está prestando atenção, conclui secura: - Deixa pra lá!
-Caio é o anjo-oculto dela. – Arlene murmura, revelando incredulidade. – Acredita?
Herson tem que se inclinar para conseguir ouvi-la.
-Pois é! – debocha. – Quem diria que o nosso insensível campeão teria um lado romântico? Do tipo cavaleiro andante! – ele troca o peso do corpo e apóia os cotovelos sobre a borda da grade. - Mas eu te avisei, não avisei? Você que não quis acreditar.
-Me erra! - Sentindo-se humilhada, Arlene reage empurrando Herson com força. Ele se afasta com uma risadinha sacana.
-Tudo bem, tudo bem, eu vou deixá-la... – o garoto joga o comentário insultuoso por sobre o ombro - ...curtindo a sua dor-de-cotovelo!
Arlene respira fundo, recordando os fatos daquela mesma manhã. Seu mundo parecia outro até que Herson apareceu na sua frente com uma suspeita e uma ideia na cabeça. Ele a convenceu de que era o melhor a ser feito. E desde então, os dois estavam confiantes do resultado... Ela tinha absoluta certeza de que um relacionamento entre o campeão de Perfecta e sua irmã insignificante era fruto da paranóia. Sua, ou de Herson, tanto faz...
A paranoia começou quando ela descobriu os presentinhos que Nice vinha recebendo de seu anjo misterioso. Quem poderia se importar com uma deficiente? Certamente, nenhum bom cidadão de Perfecta. E quer cidadão mais perfeito do que Caio Fábio? Mas, então, Herson apareceu do nada, como um tufão, e colocou a pulguinha atrás de sua orelha... Para provar que ele estava errado, Arlene até o ajudou a abduzir Nice do interior da biblioteca e enfiá-la na arena de Pragmaticus sem que os Oris soubessem o que se passava.
Até aí, Arlene encarou tudo com bom humor; ver a irmã bancar a adicional, apavorada e indefesa, certamente deixaria Caio irritado pra caramba. Todo mundo sabe que ele não tolera esse tipo de gente – tola, frágil, chorosa. Assim, Arlene estivera confiante de que ele não tinha, nem iria ter, o menor interesse pela deficiente.
Mas, agora, ela já não está tão certa... Com o coração aos saltos, ela repassa na memória o lance misterioso dos presentinhos e, então, compara com o rápido olhar de reconhecimento que flagrou na expressão de Caio, assim que Nice entrou na arena... Arlene se debate em seu íntimo, não querendo aceitar o óbvio.
Mudando o peso do corpo tenso de uma perna para outra, ela solta um suspiro forçado de resignação. Os dados foram lançados e, talvez, ela tenha a sorte de ver sua irmã morrer na arena. Ansiosa diante dessa perspectiva, a candidata se debruça na grade de segurança e aguarda...
Para os demais colegas, é o desempenho de Caio que está em jogo. Para Arlene, é o seu coração.
***
O rugido das águas eleva-se de maneira insuportável para os ouvidos sensíveis de um cego. Tão alto que o pessoal da gaiola nem perde mais tempo tentando conversar, já que não dá para ser ouvido.
Nice tapa os ouvidos, tentando inutilmente evitar a sensação de ter uma britadeira dentro de sua cabeça. Quando Caio se joga na sua direção para agarrá-la, ela começa a se debater e a gritar, imaginando o pior.
Caio aproxima os lábios do seu ouvido e grita:
-Sou eu! – Nice reconhece a voz e se acalma, ainda que seu coração esteja martelando no peito.
Arlene fecha os punhos. Começa a achar que a armadilha não foi tão brilhante quanto Herson a convenceu de que seria. Quem procura, acha... Talvez, ela não deva ser confrontada com a verdade dos fatos; talvez, tenha precipitado uma aproximação entre Caio e Nice – e, definitivamente, isso é tudo o que ela não quer que aconteça.
-O quê? - Herson parece ler os seus pensamentos. - Prefere continuar vivendo na ilusão de que, um dia, ele será seu?
Sem responder, Arlene o empurra outra vez e volta a focar no drama lá embaixo. Caio será capaz de arriscar sua posição por uma cega?
Lá embaixo, o rapaz luta com o seu equipamento para encontrar algo que seja útil. Carregar a si mesmo é uma coisa, mas carregar duas pessoas é outra.
Ele puxa o botão do cinto e libera um pedaço de corda fina – tão fina quanto um fio dental, porém, tão resistente quanto um cabo de aço. Joga a corda com toda a força - o plugue de sucção virado para cima; a parte enrolada no interior do cinto vai se soltando por toda a extensão, enquanto a ponta atinge a viga de metal acima de suas cabeças. O plugue de sucção fica grudado.
Caio dá um puxão e o cabo começa a recolher instantaneamente, levantando os dois corpos, no exato momento em que a onda gigante se quebra. A água suja que vem das tubulações gigantescas se espalha rapidamente, cobrindo todos os cantos da arena. Um cheiro desagradável toma conta do ambiente, mas ninguém se surpreende. Afinal, são as sobras de água e esgoto que já foram recicladas muitas e muitas vezes, e depois remanejadas para os treinos, em Pragmaticus.
Caio observa a água formando pequenas e violentas ondas no ponto em que Nice e ele estiveram. Nice não tinha percebido que Caio passou duas voltas do cabo pela sua cintura, por isso, ficou com medo de cair.
-Confie em mim, meu bem, - ele diz - e faça tudo o que eu mandar.
Nice apenas assente, agarrando-se a sua cintura. Ela esconde o rosto em seu peito, em parte para evitar o cheiro de esgoto.
-Fique tranquila, que não vou te deixar cair. Você está presa ao meu cinto, portanto, mesmo que eu te solte por alguns segundos, você não vai cair.
Em meio à gravidade da situação, a voz de Caio soa tranquilizadora aos ouvidos da garota. Ela então solta as mãos dos ombros dele, deixando-o livre para agir. Caio olha ao redor, procurando pontos de apoio, depois se contorce, tomando impulso com as pernas.
Quando as coxas musculosas se fecham ao redor da viga, ele começa a içar o próprio tronco para o alto - com a garota pendurada na cintura. Para os que assistem a cena, trata-se de um movimento impressionante - exigindo força extraordinária dos músculos abdominais - considerando que ele está carregando peso extra. (O que, para Delano, só prova o quanto Caio está preparado fisicamente para enfrentar os obstáculos da superfície).
O rapaz gira o corpo ao contrário, ficando por instantes de ponta cabeça antes de se agarrar na parte superior da trave. Ele torna a abraçar Nice, terminando de içá-la. Enquanto estão ali, juntos, sob os ventos fétidos da água virulenta e agressiva, tudo o que Nice sente – tudo o que importa para ela – é o aroma do seu salvador.
Os braços dele em torno de sua cintura, e a certeza de que Caio não a deixará cair, fazem-na estremecer de emoção. Contudo, o caçador interpreta o seu estremecimento de maneira equivocada.
-Tudo bem? – indaga, com preocupação na voz.
-Agora está. – Nice responde, timidamente. Ela não vê, mas "sente" o olhar dele sobre si.
Aplausos e assobios despertam os dois como se alguém tivesse despejado um balde de água gelada em suas cabeças. Caio recua um pouco, gira a cabeça em direção ao som e encontra a gaiola, não muito longe de onde ele e Nice estão. Ele calcula a distância. A caixa de segurança balança levemente - as correntes grossas que a sustentam rangendo ritmicamente na medida em que o banco oscila de um lado para o outro, ora encurtando, ora alongando a distância.
Mesmo de onde está, empoleirado sobre a viga, Caio consegue interpretar o ultraje e o ressentimento nos rostos de Arlene e Herson; bem como a empolgação dos demais (especialmente Zuco, o condutor de Caio), que dá pulinhos de alegria. Afinal, a cada pontuação do caçador, o condutor também pontua – e em dobro com o adicional!
O placar localizado no alto acende, formando os pontos que Caio fez por ter salvado a sua adicional. Todos se calam e olham pra cima.
-Yuhhuuuuu!!! – Zuco vibra ainda mais, e encara o amigo. - É isso aí, irmão! – A gaiola começa a descer na mesma velocidade em que as águas escoam pelos poderosos ductos de sucção.
Herson troca olhares sugestivos com Arlene, sem perceber que Caio está atento ao diálogo mudo entre os dois. Ele conclui rápido que a garota deve estar diretamente envolvida no sequestro da irmã. Seu desprezo por Arlene só cresce. O candidato desvia os olhos para Nice, encolhida contra o seu peito. Ela está trêmula.
-Venha – Caio diz, baixinho. – Você precisa se aquecer.
-Não estou com frio – Nice balbucia.
Então, está em choque! – Caio pensa, cético.
–Vem, vamos sair daqui – ele repete o comando, desta vez com mais ênfase. Nice concorda com um aceno.
-Ei, pessoal! Querem uma ajudinha?
Caio olha na direção de Zuco, que acena lá debaixo. A água tinha escoado rapidamente, e a arena se transformou numa enorme piscina vazia e escorregadia. Caio aperta o botão e o cabo de seu cinto se solta.
-Segure-se – ele murmura, e Nice automaticamente estende os braços para agarrá-lo. Caio espera que a garota se firme, antes de pular em direção ao vazio. Nice solta um gritinho e Caio ri.
-Não tem graça – ela reclama. Caio não responde.
Assim que firmam os pés no chão, a garota escuta uma segunda voz.
-Você nunca aceita ajuda, né, mané?
Caio lança um olhar significativo para Zuco.
–Normalmente, prefiro não depender dos outros.
Zuco aperta os lábios.
-Só que se você não mudar esse seu modo operante, não vamos passar na prova de cooperação.
– Ainda não chegamos lá. - Caio faz uma careta involuntária e gesticula. - Não esquenta.
-Mas...
-Você sempre sofre assim, por antecipação? – Caio corta o assunto, enquanto conduz Nice para fora da arena. O som de um suspiro o faz olhar para trás, irritado. – Tenho outras prioridades, agora, como por exemplo encaminhar Nice de volta à biblioteca, antes que alguém questione a presença dela aqui.
-Uma cega deslocada. – Nice tenta brincar, já acostumada a ter os passos vigiados. Mas a brincadeira soa amarga até mesmo aos próprios ouvidos.
Caio não diz nada, porque é a mais pura verdade, infelizmente...
*** A ***
Perambular pelas ruas e interagir com as pessoas, a fim de disseminar o conhecimento. Seu método "educacional" pode ser considerado dinâmico e moderno, embora ocorresse na Antiguidade (N.da A.).
Dinheiro corrente, mas não físico, nem virtual. Trata-se de dinheiro numérico, computado num cartão similar a uma calculadora, inteiramente recarregável, que muda de cor conforme o status do portador, ou o status do volume financeiro do portador (N. da A.).
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