Capítulo Vinte e Um
Marlon Shipka:
Com a decisão tomada, comecei a traçar um plano para levar Denis e Alice comigo para o outro mundo. Primeiro, era essencial garantir que estivessem seguros e confortáveis. Com um olhar decidido, aproximei-me das crianças.
— Crianças, vocês querem vir comigo para o outro mundo? — perguntei, tentando transmitir a confiança necessária.
Eles se entreolharam por alguns segundos, antes de me olharem com sorrisos enormes.
— Sim! — disseram juntos, e quando percebi, Alice me abraçou com força, demonstrando um entusiasmo contagiante.
— Com toda certeza, tio — disse Alice, ainda abraçada. — Posso fazer carrinho em outras pessoas que são iguais ao Denis?
— Talvez você possa, se elas permitirem — respondi, com um sorriso, enquanto observava o brilho nos olhos de Alice. Ela soltou um suspiro de alívio e alegria, animada com a perspectiva de novas amizades e aventuras.
A decisão estava tomada. Agora, o próximo passo seria preparar tudo para a viagem e garantir que Denis e Alice estivessem prontos para a transição para o outro mundo.
— Certo, eu vou precisar de um pouco de tempo para preparar tudo — expliquei, enquanto eles me observavam com uma mistura de expectativa e alívio. — Vou ver o que posso fazer para garantir que vocês estejam bem durante a viagem.
Alice, com sua trança brilhando sob a luz, olhou para mim com uma expressão de confiança.
— O que faremos agora? — perguntou Alice, com um toque de ansiedade na voz.
— Vamos precisar arrumar algumas coisas para a viagem, desde roupas que vocês possam usar enquanto estamos aqui — respondi, tentando manter um tom tranquilizador. — Além disso, preciso preparar o chefe para que ele saiba que vocês vão ficar aqui comigo e, em seguida, vou levá-los comigo. Também preciso informar ao pessoal sobre o que está acontecendo.
Alice acenou com a cabeça, compreendendo a situação. Enquanto eu me preparava para lidar com essas tarefas, sabia que seria importante garantir que tudo estivesse bem organizado antes de partir. A missão agora era preparar Denis e Alice para a jornada, garantir que o chefe estivesse ciente e, ao mesmo tempo, comunicar aos outros o que estava prestes a acontecer.
Peguei o livro e comecei a escrever para Otto, solicitando que preparasse um quarto extra para as crianças.
Olá, Otto,
Espero que esteja bem. Preciso de um favor: estou trazendo duas crianças, Denis e Alice, que estarão comigo por um tempo. Poderia, por favor, preparar um quarto extra para eles? Agradeço muito a sua ajuda com isso.
Atenciosamente,
Marlon
Fechei o livro, coloquei-o de volta na mesa e me preparei para lidar com as próximas etapas. Com a mensagem enviada, esperava que Otto atendesse ao pedido e que tudo estivesse pronto para a chegada de Denis e Alice.
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Voltei ao restaurante para fazer os preparativos necessários. Ao entrar na cozinha, encontrei o chefe organizando alguns utensílios. Ele levantou os olhos e sorriu ao me ver.
— Então, como estão as crianças? — perguntou ele, com um tom amigável.
— Estão bem, animadas com a ideia de ir para o outro mundo — respondi, enquanto começava a organizar as coisas. — Precisamos falar sobre a situação.
O chefe franziu a testa, interessado.
— O que você tem em mente? — perguntou ele, aproximando-se.
— Precisamos preparar um espaço para Denis e Alice. Eu já falei com Otto, e ele vai preparar um quarto extra para eles. Mas, antes de irmos, quero garantir que você esteja ciente da situação e que tudo esteja em ordem aqui — expliquei.
O chefe coçou o queixo, refletindo sobre o que eu havia dito.
— Entendi. Então, você está dizendo que essas crianças vão ficar aqui por um tempo antes de se mudarem para o outro mundo? — perguntou ele.
— Exatamente — confirmei. — E enquanto estão aqui, precisamos garantir que elas se sintam confortáveis e seguras. Elas passaram por muitas dificuldades e merecem um lugar onde possam relaxar.
O chefe acenou com a cabeça, mostrando compreensão.
— Vou fazer o que for necessário para garantir que elas tenham um bom ambiente enquanto estão aqui. E quanto à minha equipe? — ele perguntou. — Preciso informar a eles sobre a chegada das crianças?
— Sim, seria bom informar a equipe sobre a situação, mas de uma forma que não cause pânico ou preocupação desnecessária — sugeri. — Apenas o suficiente para que eles estejam preparados e compreendam a necessidade de manter a privacidade das crianças.
O chefe sorriu novamente, com um olhar determinado.
— Deixe comigo. Eles podem ficar com você no quarto.— Assim que tudo estiver pronto e as crianças estiverem confortáveis — respondi. — Quero ter certeza de que estamos prontos para partir e que tudo está em ordem antes de ir.
O chefe deu um último aceno de cabeça, como sinal de entendimento.
— Então, vamos nos preparar. Vou cuidar de tudo aqui e, enquanto isso, você cuide dos preparativos finais para a viagem.
Agradeci ao chefe e comecei a coordenar os detalhes finais, sabendo que, com a ajuda dele, tudo estaria pronto para a próxima fase da nossa jornada.
Com tudo pronto, subi as escadas com o coração acelerado e a mente fervilhando de antecipação. Quando cheguei ao topo, encontrei Denis e Alice à espera, posicionados com uma calma quase etérea no final da escada. O contraste entre a minha inquietação e a serenidade deles era palpável, uma calma que parecia envolver o ambiente em uma aura de expectativa silenciosa. Denis, com seu olhar atento e gentil, transmitia uma sensação de apoio inabalável, enquanto Alice, com um sorriso suave e encorajador, parecia irradiar uma confiança reconfortante.
— Então, o que vamos fazer agora? — Alice perguntou, sua voz suave carregada de curiosidade.
— Comprar roupas para vocês — respondi, e ambos me olharam com um brilho de interesse.
— Com que dinheiro? — Denis questionou, a dúvida evidente em seu tom. — Parece que você não tem nada.
Seu olhar inquisitivo e o tom de voz revelavam uma mistura de ceticismo e preocupação. Alice, por outro lado, olhava para mim com uma expressão de expectativa, como se tentasse compreender o plano que eu havia em mente. A pergunta de Denis pairou no ar, criando um momento de tensão palpável. Eu podia sentir a dúvida e a expectativa de ambos, o que tornava o momento ainda mais carregado de emoção e significado.
— Eu tenho dinheiro — falei, tentando transmitir confiança. Com um gesto decidido, peguei minha pequena bolsa, que havia carregado cuidadosamente, e a abri. As moedas dentro dela brilhavam intensamente, lançando reflexos cintilantes que capturaram a luz ambiente.
Denis e Alice trocaram olhares de surpresa e curiosidade.
— Só preciso ir ao banco deste mundo para trocar o que tenho por um pouco da moeda local — continuei, explicando a próxima etapa com um sorriso encorajador. A ideia de ir ao banco parecia prática, mas a verdade era que a perspectiva de realizar essa troca me trazia uma sensação de alívio e esperança. Era um pequeno passo para tornar a nossa jornada mais confortável e mostrar a eles que, apesar dos desafios, havia uma solução à vista.
Denis levantou uma sobrancelha, ainda com um toque de ceticismo, mas seu olhar estava agora misturado com uma pitada de esperança.
— Então, vamos ao banco — disse ele, a dúvida começando a se dissipar. — Se você consegue trocar esse dinheiro, talvez tenhamos uma chance real de fazer as compras.
Alice, que estava quieta até então, parecia animada com a ideia. Ela se aproximou, seu sorriso se alargando.
— Parece um plano ótimo — afirmou ela. — Vamos logo para o banco. Não quero esperar mais para ver as roupas novas!
Com a determinação renovada, começamos a descer as escadas. O ambiente estava impregnado de um sentimento de expectativa e otimismo. A ideia de resolver um problema tão imediato trouxe um alívio bem-vindo, e a sensação de que estávamos dando um passo positivo em nossa jornada parecia quase palpável.
Chegamos à entrada do banco, que tinha uma aparência imponente e formal, com portas de madeira esculpidas e janelas de vidro ornamentadas. A visão do edifício trouxe um novo nível de realidade à situação. O banco parecia ser uma instituição de grande importância neste mundo, e a ideia de realizar a troca de moedas em um lugar assim parecia quase solene.
Entrei no banco com Denis e Alice ao meu lado, os três com uma mistura de nervosismo e esperança. O interior do banco era elegante e bem iluminado, com balcões de mármore e funcionários vestidos com uniformes impecáveis.
Dirigi-me ao balcão de atendimento, onde um caixa atento e cordial nos recebeu. Expliquei a situação, mostrando a pequena bolsa de moedas e a necessidade de trocar o dinheiro para a moeda local.
O atendente examinou as moedas com um olhar profissional e fez algumas anotações em um livro de registros. A troca levou algum tempo, mas finalmente, ele nos entregou uma pilha de notas locais, que tinham um brilho novo e fresco.
Com o dinheiro trocado, Denis e Alice estavam visivelmente aliviados e animados. Saímos do banco com um novo objetivo em mente, prontos para enfrentar a próxima etapa de nossa jornada com uma sensação renovada de esperança e possibilidade.
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Entrei na primeira loja de roupas que encontrei, os olhos atentos à vitrine e ao ambiente ao redor. A loja era pequena, mas acolhedora, com uma seleção encantadora de roupas penduradas em cabides. Enquanto observava os itens, senti uma presença estranha me observando. Meu olhar se desviou para o lado e, para minha surpresa, vi o Senhor Wattson tentando se esconder atrás de um manequim, sua expressão visivelmente constrangida.
Mas antes que pudesse fazer qualquer comentário, a Senhora Wattson apareceu, acenando para mim com um sorriso um tanto forçado.
— Marlon, que bom ver você aqui! Veio comprar algumas roupas para você? — Ela disse, a tentativa de manter um tom casual era clara, mas havia algo na sua expressão que denunciava uma leve hesitação.
Eu a encarei com um sorriso amigável, mas direto, e respondi:
— Não, na verdade, vim comprar algumas roupas para os meus afilhados — afirmei, fazendo um gesto em direção a Denis e Alice, que estavam ao meu lado.
A Senhora Wattson franziu a testa e virou o olhar para Denis e Alice, como se tentasse colocar suas palavras em contexto. Havia um brilho de curiosidade em seus olhos enquanto observava os dois, e um leve suspiro escapou dos seus lábios, como se ela estivesse tentando processar a nova informação.
— Ah, entendi — disse ela, a voz um pouco mais suave, mas ainda carregada de um tom de dúvida. — E, bem, como estão se adaptando ao novo ambiente?
Seu interesse parecia genuíno, mas havia uma sombra de inquietação no seu olhar, como se ela estivesse tentando entender algo além do que era evidente. Eu podia sentir que havia mais naquela conversa do que o simples cumprimento de boas-vindas. A situação estava ficando mais complexa, e a atmosfera ao nosso redor estava carregada de uma tensão sutil.
A Senhora Wattson parecia estar tentando ver algo além do que eu estava disposto a mostrar, uma sensação de invasão quase palpável. No entanto, antes que ela pudesse aprofundar sua observação, Denis entrou rapidamente em cena. Ele se posicionou entre nós, puxando minhas mãos com uma firmeza gentil, e eu pude sentir o alívio ao ver que ele estava se esforçando para proteger o que quer que fosse que a Senhora Wattson estivesse procurando.
— Ah, que bom te ver, Senhora Wattson — disse Denis com um sorriso educado, tentando desviar a atenção. Com um movimento sutil, ele fez um gesto que acendeu uma discreta aura mágica ao nosso redor, um feitiço de ilusão que suavizou a percepção da Senhora Wattson. A mágica parecia criar uma camada invisível de distorção, tornando qualquer detalhe peculiar mais difícil de discernir.
Alice, percebendo o desconforto, resolveu intervir com um tom amigável e calmo:
— Olá, Senhora — disse ela com um sorriso caloroso.
Nesse momento, o Senhor Wattson se aproximou, sua expressão agora mais relaxada e amigável. Ele lançou um olhar curioso para Alice e Denis, mas sem a intensidade do escrutínio anterior. A atmosfera estava mudando, a tensão dava lugar a um ambiente mais cordial, mas eu ainda podia sentir um subtexto de investigação.
A Senhora Wattson pareceu um pouco mais desconcertada, mas sua cortesia não vacilou.
— Ah, é um prazer conhecer todos vocês. — Ela disse, tentando manter a compostura. — Espero que encontrem o que procuram. Se precisarem de qualquer ajuda, estarei por aqui.
Agradeci com um aceno de cabeça, e enquanto ela se afastava, pude sentir o alívio de Denis e Alice, uma sensação de que havíamos contornado uma situação potencialmente complicada. A loja estava agora preenchida com uma sensação de normalidade relativa, e começamos a nos concentrar nas roupas que queríamos escolher, com a certeza de que havíamos protegido nossa privacidade, ao menos por ora.
Com a Senhora Wattson e o Senhor Wattson se afastando, a atmosfera na loja tornou-se visivelmente mais relaxada. Denis e Alice, agora livres da tensão anterior, exploravam as araras com um novo entusiasmo, examinando as roupas com interesse genuíno. Eu me dediquei a selecionar algumas peças com cuidado, escolhendo roupas que acreditava serem adequadas para eles, tentando equilibrar conforto e estilo.
Enquanto as moedas tilintavam e os murmúrios suaves de aprovação e desaprovação preenchiam o espaço, um som de tranquilidade substituía a tensão anterior. O ambiente estava agora mais sereno, e eu me sentia aliviado ao ver que a situação estava se resolvendo de maneira mais harmoniosa.
No entanto, ao olhar ao redor, percebi que Alice e Denis haviam sumido. Fiquei momentaneamente inquieto e comecei a procurar por eles. Finalmente, avistei os dois conversando animadamente com o Senhor e a Senhora Wattson, que pareciam estar participando da conversa com um interesse sincero.
Com passos calmos, aproximei-me dos quatro. Alice estava explicando algo com um entusiasmo contagiante, e o Senhor e a Senhora Wattson pareciam estar ouvindo atentamente, seus sorrisos demonstrando uma genuína curiosidade.
— Tio, o tio Sandro e a tia Magnolia podem ficar com a gente vendo as roupas? — Alice perguntou, sua voz cheia de expectativa.
Olhei para a garotinha, que estava com os olhos brilhantes de expectativa, e soltei um suspiro interno.
— Claro! — Respondi.
Isso animou o casal, que começou a arrastar as crianças e a mim pela loja. Eu fiquei um pouco em silêncio, tentando me controlar para não deixar transparecer minhas manias. Eles pareciam ainda mais envolvidos do que antes, examinando cada item com entusiasmo, enquanto eu observava, tentando não me deixar levar pela ansiedade.
Mas acabava sendo estranho para mim estar fazendo compras com meus pais de alguma maneira.
Enquanto caminhávamos pela loja, eu não conseguia evitar a estranha sensação de estar deslocado. Fazer compras com o casal Wattson, como se fôssemos uma família, mexia comigo de uma forma inesperada. Cada sorriso trocado entre eles e os olhares carinhosos que direcionavam para as crianças me faziam sentir um aperto no peito. Era como se eu estivesse assistindo a uma cena de um filme que não era meu.
— Marlon, o que você acha deste vestido para Alice? — perguntou a senhora Wattson, segurando um vestido azul claro contra o corpo da pequena, seus olhos brilhando de felicidade.
Olhei para o vestido e depois para Alice, que estava radiante, esperando minha aprovação. Sorri suavemente e balancei a cabeça em concordância.
— Acho que vai ficar perfeito nela, querida. Ela vai parecer uma princesinha — respondi delicadamente.
Tentei me concentrar na conversa deles, mas minha mente estava em outro lugar. O silêncio que eu mantinha era um escudo, uma maneira de esconder o quanto aquilo tudo me perturbava. Tinha que manter o controle, evitar que qualquer uma das minhas manias chamasse a atenção deles. O simples fato de estar ali, sendo parte de algo tão íntimo, era estranho demais para mim.
— Ei, você está bem? — perguntou o senhor Wattson, quebrando meu devaneio. Ele me olhava com um misto de preocupação e curiosidade, como se pudesse sentir a tensão em meus ombros.
Assenti rapidamente, forçando um sorriso.
— Estou, sim. Só estou... meio pensativo — menti, tentando parecer despreocupado.
A senhora Wattson se aproximou, colocando uma mão gentilmente em meu ombro.
— Querido, se estiver se sentindo mal, podemos levá-lo ao médico — disse ela, com os olhos brilhando de preocupação.
Eu sabia que ela queria me confortar, mas suas palavras só reforçavam o quanto eu me sentia fora do lugar. Respirei fundo, tentando afastar a sensação de desconforto.
— Eu estou bem, apenas pensativo — respondi, minha voz saindo mais baixa do que eu pretendia.
O casal trocou um olhar cúmplice, como se estivesse em perfeita sintonia, e continuou a buscar roupas para as crianças, enquanto eu os seguia, tentando manter meus pensamentos em ordem.
Quando tudo terminou, peguei as crianças e nos despedimos do casal, afastando-nos devagar.
— Eles são divertidos — Denis comentou, com um sorriso no rosto.
— Muito divertidos mesmo — concordou Alice, com a mesma alegria contagiante.
— Eles realmente são muito divertidos e boas pessoas — murmurei, quase para mim mesmo, enquanto observava as crianças com um leve sorriso.
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Os dias restantes passaram voando, cada um deles trazendo o casal Watson de volta ao restaurante. Eles sempre faziam questão de conversar comigo, querendo saber mais sobre mim, mergulhando em detalhes da minha vida que eu mal sabia que importavam. Era quase como se estivessem tentando me conhecer por completo, peça por peça.
Eu, por outro lado, sou uma pessoa que está em constante mudança. Não sou do tipo que gasta todo o tempo focado em uma única coisa. Pelo contrário, quando uma ideia me invade, ela consome minha mente por completo, e não descanso até ver tudo realizado. Essa característica, por mais caótica que pareça, já me levou a encontrar itens raros que colecionei ao longo dos anos para vender – como alguns feitiços que, até onde se sabia, estavam extintos.
Graças a essas vendas, de alguma forma, consegui garantir minha fama no outro mundo. O que aprendi durante meu tempo como Dylan Watson ampliou meu conhecimento de maneiras que eu nunca imaginei possíveis.
Eu admito, tenho um certo orgulho dos meus feitos. Cada plano cuidadosamente elaborado e bem-sucedido me traz uma satisfação profunda. É como se tudo que eu precisasse estivesse se desenrolando exatamente como deveria.
Hoje, decidi visitar uma biblioteca. Talvez, entre as estantes empoeiradas e os volumes antigos, eu encontre um reflexo de outro mundo, diferente do meu, que por si só já é uma história dentro deste lugar.
As crianças vieram comigo, assim como o casal Watson, que tem me acompanhado fielmente. Desde o primeiro dia no restaurante, passando pela loja de roupas, e agora, aqui estamos, de volta ao restaurante, onde eles se sentam para conversar comigo ou simplesmente para compartilhar uma refeição. Eles me seguem como se minha vida fosse um quebra-cabeça que eles estivessem determinados a resolver.
Eles queriam saber tudo sobre mim, tentando desvendar cada detalhe da minha vida. Eu, por minha vez, fazia o possível para manter uma certa distância, mas, inevitavelmente, minhas manias acabavam se revelando. Isso parecia despertar ainda mais a curiosidade deles, como se cada gesto meu fosse um enigma a ser decifrado.
Eu estava olhando para uma velha estante de livros em um canto do recinto, dedicada exclusivamente a romances de fantasia. Há algo na fantasia que me fascina profundamente; acredito que ela tem uma história tão antiga quanto a própria humanidade. A maneira como os humanos deste lugar desenvolvem ou participam dessas histórias incríveis me cativa cada vez mais. Se pararmos para pensar, todos os livros, independentemente do gênero, são, de certa forma, romances de fantasia – histórias que algumas pessoas acreditam fielmente, enquanto outras as descartam como mera ficção.
Em meio aos volumes antigos, encontrei um livro que parecia ter caído da prateleira há algum tempo. A capa estava desgastada, e o título mal podia ser decifrado. Era evidente que a última pessoa a manuseá-lo não teve tempo ou cuidado para devolvê-lo ao seu lugar. Talvez fosse o destino, pensei. Decidi levá-lo para a mesa, sentei-me e abri-o com cuidado.
— Lendas dos Mundos — murmurou a senhora Watson, enquanto lia a capa por cima do meu ombro.
Virei a página, e o livro começou a contar sobre um mundo de fantasia. A narrativa girava em torno de uma profecia apocalíptica que ameaçava destruir um mundo recém-nascido. Segundo a profecia, quatro pessoas seriam enviadas de outro mundo, destinadas a combater um mal antigo que estava prestes a emergir. Para evitar a catástrofe e escapar da destruição, os habitantes daquele mundo clamaram por heróis vindos de outro lugar para salvá-los.
Ou algo assim. A história parecia ser um evento isolado no universo recém-criado, mas havia algo intrigante naquela trama.
— Até que seria interessante — falei em voz alta, sem perceber que quatro pares de olhos agora estavam fixos em mim.
— Jovens e suas manias de se encantarem com livros de fantasia — disse o senhor Watson, balançando a cabeça em desaprovação. — Nunca vou entender.
— Diz o homem que está lendo sobre um garoto que sobe um pé de feijão até o castelo de um gigante — respondi, com um leve tom de deboche na voz. — A ideia pode parecer clichê, mas o fato de o livro ser tão antigo o torna curiosamente interessante.
O casal trocou um olhar significativo, algo que vinham fazendo com frequência desde que nos conhecemos. Não pude deixar de me perguntar se, de alguma forma, eles tinham começado a suspeitar de quem eu realmente sou – ou, mais precisamente, de quem eu fui.
Olhei para eles com desconfiança. Alice, no entanto, puxou a manga do senhor Watson, insistindo para que ele continuasse lendo o livro. Denis estava ao lado, ouvindo tudo em silêncio, completamente imerso no que ouvia.
Denis havia aprendido a controlar sua forma, assumindo a aparência de um humano comum. Sei que Alice está encantada com os feitiços que lancei nos últimos dias, sempre perguntando se posso ensinar-lhe algum truque. Mas, infelizmente, isso é impossível. Alice é uma humana comum, sem nenhum traço de magia, e os truques que posso ensiná-la se limitam à alquimia, que, por si só, já a faria se destacar de alguma forma.
Durante esse tempo, também conversei com Otto, que me enviou uma mensagem perguntando onde havia errado para me afastar. Ele parecia confuso, acreditando que sua estratégia era infalível... mas ainda assim, eu não me apaixonara por ele. Onde foi que errou?
Fui honesto, sugerindo que deveríamos ir com calma e nos conhecermos melhor, de verdade.
Afinal, não é possível me apaixonar à primeira vista, mesmo que sua aparência seja extraordinária. Otto aceitou minhas palavras e, com uma certa tranquilidade, disse que, quando eu voltasse, teríamos um encontro a sós, apenas nós dois, para conversarmos e nos conhecermos de maneira mais profunda.
As palavras de Otto ficaram pairando na minha mente enquanto o silêncio da biblioteca nos envolvia. O ambiente era reconfortante, com o cheiro familiar de livros antigos e o som suave de páginas sendo viradas. Apesar de toda a inquietação que sentia por dentro, algo sobre este lugar me trazia uma sensação de paz que eu não encontrava em nenhum outro canto do mundo.
Alice finalmente soltou a manga do senhor Watson, satisfeita com a leitura que haviam compartilhado. Denis, ainda em silêncio, observava-me com aquele olhar penetrante que parecia enxergar além das aparências. Eu sabia que ele estava tentando entender o que se passava em minha mente, mas estava determinado a manter meus pensamentos para mim mesmo, pelo menos por enquanto.
Levantei os olhos do livro à minha frente e observei o casal. Era curioso como, em tão pouco tempo, eles tinham se tornado uma presença constante e quase reconfortante na minha vida. Mas essa constância também trazia consigo um desconforto, um medo sutil de que, eventualmente, eles descobrissem a verdade sobre mim – ou pior, que eu mesmo acabasse revelando tudo.
— Sabem, é estranho como alguns livros parecem encontrar o caminho até nós, mesmo que não estejamos procurando por eles — comentei, fechando o livro antigo com cuidado. — Este aqui, por exemplo, parece que estava esperando por mim, como se soubesse que eu precisava dele.
— Talvez seja o destino — sugeriu a senhora Watson, com um sorriso afável. — Ou talvez seja apenas o universo conspirando a seu favor.
Eu sorri de volta, mas havia uma tristeza subjacente naquele sorriso. Eu sabia que o destino era um conceito perigoso para brincar. Em meu tempo como Dylan Watson, aprendi que o destino, muitas vezes, traz mais dor do que prazer, e que a busca por respostas pode nos levar a caminhos dos quais nunca retornaremos os mesmos.
— Pode ser — murmurei, desviando o olhar para a janela, onde o sol já começava a se pôr, tingindo o céu de laranja e rosa. — Ou talvez seja apenas uma coincidência.
O senhor Watson, percebendo a mudança no meu humor, resolveu quebrar o silêncio que se seguiu.
— Então, o que você achou do livro? — perguntou, apontando com a cabeça para o volume antigo.
— Interessante, mas familiar de certa forma — respondi, passando os dedos pela capa desgastada. — A profecia apocalíptica, os heróis vindos de outro mundo... É como se já tivesse lido algo parecido antes. Mas há algo nesse livro que me intriga, algo que me faz querer continuar lendo, descobrir até onde essa história pode nos levar.
— Talvez a história esteja esperando para ser contada novamente — sugeriu Denis, falando pela primeira vez desde que entramos na biblioteca.
Suas palavras me pegaram de surpresa, mas havia uma verdade inegável nelas. Às vezes, histórias antigas precisam ser redescobertas para ganhar novos significados, para lembrar-nos de lições que talvez tenhamos esquecido. E talvez, só talvez, esse livro tivesse algo a me ensinar.
Decidi que levaria o livro comigo, mergulharia em suas páginas mais tarde, quando estivesse sozinho. Mas por agora, havia algo mais que eu precisava fazer.
— Vamos para casa — anunciei, levantando-me da mesa e pegando o livro. — Acho que já exploramos o suficiente por hoje.
O casal Watson assentiu, e juntos saímos da biblioteca, caminhando pelas ruas silenciosas da cidade. O crepúsculo caía ao nosso redor, e por um momento, tudo parecia em paz. Mas em algum lugar dentro de mim, uma inquietação persistia, um pressentimento de que algo grande estava por vir.
Enquanto nos afastávamos, o vento frio da noite começou a soprar, trazendo consigo uma sensação de mudança. Eu não sabia o que o futuro reservava, mas estava determinado a enfrentá-lo, não importa o que viesse.
E, enquanto caminhávamos de volta, a conversa com Otto ecoava em minha mente. Havia algo em suas palavras, em sua insistência, que me deixava dividido. Eu sabia que ele estava certo em querer ir com calma, mas havia uma parte de mim que temia que a calma pudesse se transformar em apatia, que o tempo que ele queria gastar para nos conhecermos pudesse, na verdade, afastar-nos ainda mais.
Talvez o destino realmente estivesse conspirando, não apenas para que eu encontrasse aquele livro, mas para que eu entendesse algo mais profundo sobre mim mesmo e sobre as pessoas ao meu redor. Algo me dizia que, em breve, teria que tomar decisões que afetariam não apenas a mim, mas a todos aqueles que estavam ao meu lado.
E, por mais que eu quisesse evitar, sabia que o passado, minha vida como Dylan Watson, e meu futuro estavam prestes a colidir de uma maneira que eu jamais poderia imaginar.
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Voltamos para o restaurante, e o chefe me cumprimentou com um aceno de cabeça, um gesto simples, mas que trazia uma sensação de pertencimento.
— Bem-vindos — ele disse com um sorriso caloroso. — Como foi o passeio na biblioteca?
— Muito bom! — As crianças responderam em uníssono, antes de saírem correndo na direção da cozinha, suas risadas ecoando pelo restaurante.
Dênis, mais comedido, virou-se para mim e fez um pedido, sua voz carregando um toque de nostalgia.
— Estamos com um pouco de fome. Podemos comer picles com aquela sopa novamente?
Assenti, mas antes que pudesse responder, meus olhos encontraram os do casal Watson. Havia uma tristeza nítida em suas expressões, uma melancolia que não consegui ignorar.
— Então, você vai embora hoje à noite — a senhora Watson disse, sua voz trêmula e os olhos brilhando com lágrimas que se esforçava para conter. — Não pode ficar mais um pouco?
Senti um aperto no peito ao ver a dor em seus rostos. Eles estavam se despedindo não apenas de um amigo, mas de alguém que, de alguma forma, havia se tornado parte de suas vidas.
— Infelizmente, não posso — respondi, minha voz suave, mas firme. — Tenho muito que fazer lá em casa. Talvez, um dia, eu volte.
Antes que pudesse processar o que estava acontecendo, ambos me envolveram em um abraço apertado, tremendo enquanto começavam a chorar. O peso de suas emoções me atingiu como uma onda, e por um momento, fiquei sem palavras, sentindo a profundidade do laço que havíamos criado em tão pouco tempo.
Era como se eles soubessem, de alguma forma, que essa despedida não era apenas temporária, mas o fim de um capítulo que nunca seria reescrito da mesma forma. Suas lágrimas molhavam meu ombro, e eu os segurei firme, tentando transmitir todo o conforto que pudesse em um gesto tão simples.
— Vocês sempre terão um lugar no meu coração — sussurrei, sentindo meus próprios olhos se encherem de lágrimas. — Prometo que voltarei, de alguma forma.
Ficamos assim por um momento que pareceu se estender por uma eternidade, cada um de nós absorvendo o peso daquela despedida. E então, lentamente, eles se afastaram, ainda com lágrimas escorrendo pelo rosto, mas com uma leveza renovada nos olhos, como se aquele abraço tivesse trazido algum tipo de consolo.
— Sabemos que é você, Dylan — sussurrou o senhor Watson contra o meu ouvido, sua voz carregada de uma mistura de alívio e dor. — Não entendemos por que você está com outra aparência e rosto, mas reconhecemos o seu jeito de pensar, seus gestos, suas manias.
Quando eles se afastaram, seus olhares estavam cheios de uma compreensão silenciosa, que me deixou sem palavras.
— Tivemos a ajuda de uma clarividente — começou a senhora Watson, sua voz suave, mas firme. — Ela nos revelou que encontraríamos algo relacionado ao nosso filho, e que o veríamos novamente. Sua caligrafia, o jeito meticuloso com que você escreve cada palavra... Não há como negar.
Meu coração afundou. Tentei pensar em uma desculpa, mas sabia que seria inútil. Eles já haviam descoberto a verdade, e qualquer tentativa de mentir só pioraria a situação. Engoli em seco, sentindo-me exposto, vulnerável.
— Acho que tenho muita coisa para contar — murmurei, coçando a nuca nervosamente, sem saber por onde começar.
— Eu sei, mas... não quero saber os detalhes de tudo o que aconteceu com você depois que deixou o seu corpo — disse minha mãe, interrompendo meus pensamentos com um novo abraço, tão apertado e reconfortante quanto o anterior. — E claro, jamais contaremos a ninguém sobre a existência de outro mundo, muito menos que nosso filho voltou para nós com outro rosto.
O senhor Watson se juntou a ela, me envolvendo em um abraço ainda mais forte, como se temessem que eu pudesse desaparecer novamente. O calor deles, o carinho incondicional, fez com que uma onda de emoções me inundasse.
Diferente de outros tipos de amor, o amor da família é incondicional, um vínculo que transcende tempo, espaço e até a própria vida. Esses dois me deram um lar, me acolheram como seu filho, e mesmo que minha aparência tenha mudado, meu coração ainda era o de Dylan Watson. Por mais que eu tentasse negar ou esconder, essa parte de mim sempre existiria, e eles sempre seriam meus pais, em qualquer vida, em qualquer lugar.
Enquanto estávamos ali, abraçados, percebi que esse reencontro, por mais doloroso que fosse, também era um presente. Uma chance de viver, mesmo que por um breve momento, o amor genuíno que só uma família pode oferecer. Não importava o que o futuro reservava, sabia que, de alguma forma, sempre levaria essa parte de mim para onde quer que eu fosse.
— Obrigado por me aceitarem de novo, mesmo assim — sussurrei, a voz embargada, enquanto segurava as lágrimas que ameaçavam cair. — Eu não poderia ter pedido por pais melhores.
E assim, naquele abraço apertado, senti que, apesar de tudo, eu finalmente havia encontrado meu caminho de volta para casa.
Ficamos ali, envolvidos naquele abraço por mais alguns instantes, cada um de nós absorvendo o momento, saboreando a sensação de estarmos juntos novamente, mesmo que sob circunstâncias tão extraordinárias. Eventualmente, fomos nos afastando lentamente, os olhos deles ainda cheios de emoção enquanto nos encarávamos.
— Dylan... ou seja lá como você prefere ser chamado agora — começou o senhor Watson, tentando encontrar as palavras certas. — Sabemos que essa não é uma situação comum, e que deve haver muito sobre sua vida agora que não podemos entender. Mas queremos que saiba que, para nós, você sempre será nosso filho, independentemente de qualquer mudança.
Eu assenti, sentindo um nó na garganta. Era difícil colocar em palavras tudo o que eu estava sentindo, mas sabia que precisava tentar.
— Eu... ainda sou Dylan, de certa forma — respondi, a voz embargada. — Mas também sou outra pessoa agora, com novas responsabilidades, novas realidades. Mas o amor que sinto por vocês nunca mudou. Vocês são, e sempre serão, meus pais.
A senhora Watson enxugou as lágrimas que escorriam por seu rosto, um sorriso trêmulo surgindo enquanto ela me olhava com ternura.
— Ficamos tão preocupados quando você se foi, Dylan. Não sabíamos o que havia acontecido, mas algo dentro de mim dizia que você ainda estava por aí, de algum jeito. Quando a clarividente nos falou sobre você, sentimos uma mistura de esperança e medo. Mas agora... agora estamos apenas felizes por termos você de volta, mesmo que seja apenas por um breve momento.
O senhor Watson assentiu, concordando com as palavras da esposa.
— É claro que queremos saber tudo sobre sua nova vida, mas não queremos pressioná-lo. O importante é que estamos aqui, juntos, pelo menos por agora. Se precisar de tempo para processar tudo isso, nós entendemos.
Eu respirei fundo, sentindo uma leveza que não sentia há muito tempo.
— Eu realmente não sei como explicar tudo o que aconteceu, e talvez algumas coisas sejam difíceis de acreditar. Mas o que posso dizer é que estou bem, de uma maneira que nem eu imaginava que seria possível. E prometo que, sempre que puder, vou encontrar uma maneira de voltar, nem que seja por pouco tempo.
Eles sorriram, dessa vez com uma expressão de aceitação e compreensão.
— Isso é tudo o que podemos pedir — disse a senhora Watson, segurando minha mão com delicadeza. — E mesmo que você tenha uma vida diferente agora, queremos que saiba que esta sempre será sua casa. Sempre estaremos aqui, esperando por você.
O senhor Watson colocou a mão no meu ombro, dando um aperto reconfortante.
— Não importa o que aconteça, Dylan, você sempre terá um lugar aqui conosco. Não estamos interessados em saber os detalhes, em questionar como ou por quê. O que importa é que você está aqui, e que o amor que sentimos por você nunca mudou.
Senti as lágrimas começarem a cair, e dessa vez não tentei segurá-las. Deixei que escorressem, sentindo o alívio e a alegria de estar com eles novamente, mesmo que por um breve momento.
— Eu também amo vocês — disse, minha voz embargada de emoção. — E agradeço por entenderem e por me aceitarem, mesmo assim.
A senhora Watson me puxou para mais um abraço, e o senhor Watson fez o mesmo, nos envolvendo em um círculo de conforto e amor que parecia eterno. Não havia mais palavras a serem ditas, apenas a certeza de que, não importa o que o futuro trouxesse, nosso laço jamais seria quebrado.
Finalmente, após um longo momento de silêncio compartilhado, nos afastamos, e os sorrisos que trocamos foram suficientes para dizer tudo o que as palavras não poderiam. Sabíamos que aquela despedida seria difícil, mas também sabíamos que, de alguma forma, sempre encontraríamos nosso caminho de volta um para o outro.
— Vamos jantar juntos, como uma família — sugeriu a senhora Watson, enxugando as últimas lágrimas e tentando recuperar a compostura. — Pelo menos por essa noite, podemos fingir que nada mudou.
Assenti com um sorriso, sentindo uma sensação de paz que há muito não sentia.
— Eu adoraria — respondi, sabendo que, por mais breve que fosse, aquela noite seria um dos momentos mais preciosos que eu guardaria para sempre no coração.
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Gostaram?
Até a próxima 😘
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