Capítulo Trinta e Sete
Marlon Shipka:
Alice, no início, seguiu fielmente o que Otto havia pedido, mantendo-se em silêncio ao lado de Lídia. No entanto, não demorou muito para que sua curiosidade e energia infantil tomassem conta, e logo ela começou a conversar animadamente com a garota, como se quisesse dissipar o peso que pairava no ambiente.
Enquanto isso, meus pensamentos voltaram para a história conturbada de Theorban e sua família. Lembrava-me de ter ouvido que o representante do chefe da família era, na verdade, o irmão mais novo de Theorban — o pai de Lídia. A mudança ocorreu quando o mais velho mostrou-se um desperdício para a linhagem, incapaz de carregar o fardo que lhe fora confiado. Naturalmente, a sucessão deveria ter seguido para alguém de sangue imediato, mas a família dos condes já estava em frangalhos, e muitos consideravam isso um erro inevitável. Quando o antigo conde adoeceu, seu segundo filho assumiu o controle, uma responsabilidade que acabou por desencadear a tragédia subsequente.
Normalmente, alguém com o perfil de Theorban nunca teria sido encarregado de uma posição tão crucial sem enlouquecer sob o peso da responsabilidade. Mas, após a morte de seu irmão, ele foi forçado a agir como representante da família, assumindo tudo, mesmo com suas motivações distorcidas. Como era de se esperar, ele negligenciou seus deveres, e o condado mergulhou em dificuldades financeiras até quase ser demolido. Foi nesse momento que Theorban desapareceu, levando sua sobrinha consigo.
Agora, com Lídia aqui, uma nova perspectiva se abria para nós. Esta era a oportunidade perfeita para desmontar o plano daquele homem antes que ele pudesse causar mais estragos. Podia ver o desespero que a família dele sentiu ao perceber que Lídia havia fugido. Um esboço de estratégia começou a se formar em minha mente, algo que poderia nos ajudar a lidar com Theorban e seus cúmplices.
Observei Lídia com um sorriso leve. As poucas informações sobre ela haviam sido cuidadosamente ocultadas desde o acidente de seus pais. Diziam que ela herdara a beleza da mãe — algo raro e quase mítico. Sofia, que conhecera a antiga condessa, descreveu-a como uma mulher de aparência impecável, com traços tão perfeitos que pareciam esculpidos. O sorriso da condessa era descrito como algo que iluminava a alma de quem tivesse a sorte de vê-lo, deixando uma lembrança eterna.
Era doloroso imaginar que, em alguns anos, Lídia poderia florescer em uma beleza incomparável, mas que, se continuasse sob o domínio de seu tio, acabaria morta ou completamente esgotada pelo uso excessivo de seus poderes.
— Papai — Alice chamou, interrompendo meus pensamentos. — Quando você e o papai Otto vão oficializar o casamento? Lídia, você pode participar como daminha, assim como eu!
Lídia piscou surpresa, sua expressão ingênua se transformando em uma ansiedade curiosa.
— O imperador e o senhor Marlon são casados? Mas... sem uma festa de noivado? — perguntou com uma voz baixa e hesitante, atraindo minha atenção para ela.
Olhei para a garota com uma cautela cuidadosa. A maneira como ela percebeu isso tão rápido me fez ponderar sobre o quão afiada era sua percepção. No entanto, não era exatamente correto dizer que o casamento estava em pausa, embora as complicações envolvendo seu tio certamente fossem um fator decisivo.
— Houve um pequeno atraso — expliquei, buscando manter o tom leve. — Estou esperando que os anciãos da vila onde morei enviem alguns documentos. Mas, para ser sincero, pode demorar até encontrarem esses papéis.
— Então vai demorar para que isso aconteça? — Alice perguntou, um traço de desapontamento em sua voz.
— Talvez sim. Eles não gostam de usar portais para enviar documentos, preferem os métodos tradicionais — falei com um sorriso nostálgico. — Como eu vivi em outro império, a correspondência pode levar alguns dias até chegar.
Alice assentiu, compreendendo com a sabedoria surpreendente de uma criança que já estava familiarizada com os modos antiquados desse mundo.
— Mas Lídia pode ser daminha comigo? — insistiu, os olhos brilhando de expectativa.
— Claro que ela pode participar, mas primeiro ela precisa se recuperar do que passou — respondi gentilmente. Notei que os olhos de Lídia tremeram levemente, mostrando que, mesmo sob a máscara de indiferença, ela estava surpresa.
— Mas... eu não sou parente do imperador, muito menos do senhor Marlon — ela disse, a voz carregada de uma incerteza quase desesperada. — Participar seria quase um desrespeito para com seus antecessores.
— Não me importo com o que os antecessores pensariam — retruquei com firmeza, buscando as palavras certas para aliviar sua preocupação. — E posso garantir que Otto também não se preocupa com isso.
Lídia me olhou, ainda com dúvida, mas agora havia uma leve calmaria em sua expressão, como se estivesse reconsiderando a rigidez das tradições que conhecia.
— Pode-se dizer que a hierarquia familiar foi dispersada pelo senhor Marlon e pelo imperador Otto — murmurou, com uma precisão surpreendente para alguém tão jovem.
Entendia o choque dela. Em famílias aristocráticas, as convenções e regras hierárquicas eram seguidas à risca, especialmente em casamentos. Para mim, esse era um problema constante; afinal, não tenho parentes de sangue neste mundo, e Otto também não. O fato de Alice e Dênis terem sido reconhecidos como nossos filhos já havia causado bastante murmúrio, especialmente por trazerem uma nova linhagem ao palácio.
No entanto, essas convenções não me incomodavam mais. Outros casamentos também desafiaram as tradições, como o de Max, que se uniu a um homem-besta e trouxe uma nova era ao império.
— Algumas coisas mudam, e nenhum costume dura para sempre — falei, sentindo um aperto leve no peito. Sei que tenho meus pais no outro mundo, que entendem a verdade sobre este lugar e sobre quem me tornei.
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Afinal, meus pais têm suas próprias vidas no outro mundo. Não há como simplesmente aparecerem aqui para o meu casamento como se pudessem atravessar realidades à vontade. Talvez, quando tudo isso terminar, eu possa tentar falar com eles sobre o assunto, mas deixei esse pensamento para o fundo da minha mente.
— Não se preocupe com essas coisas, crianças não devem carregar esse tipo de preocupação — falei suavemente, notando o olhar surpreso de Lídia. — Deixe esses pensamentos negativos de lado. E, por favor, não me chame de "senhor". Apenas Marlon está bom.
Lídia hesitou por um momento, ponderando minhas palavras, antes de balançar a cabeça em concordância. Alice observava a cena ao nosso lado, um sorriso radiante estampado em seu rosto.
— Obrigada por me ajudar, senhor... — Lídia começou a dizer, mas então corrigiu-se timidamente. — Digo, obrigada por me ajudar, Marlon.
Sorri para ela, apreciando a educação e os bons modos que mesmo em sua vulnerabilidade, ela conseguia manter.
— Viu? Não foi tão difícil — comentei, tentando aliviar a tensão. — E não precisa se preocupar, seu tio não vai machucar mais ninguém. Todos nós aqui vamos cuidar de você e protegê-la daquele homem perverso.
Enquanto eu falava, percebi uma leve mudança em sua expressão, como se minhas palavras fossem ao mesmo tempo reconfortantes e desconcertantes para ela.
Imaginei que ouvir palavras de bondade fosse uma experiência rara para ela, algo que a tocava profundamente, despertando sentimentos de carinho e proteção que provavelmente não conhecia há muito tempo, se é que já os havia conhecido.
— Viu como meu papai é incrível? — Alice exclamou, me abraçando com força. — Ele sempre cuida dos outros, nunca deixaria os vilões fazerem coisas ruins.
— Como minha filha disse, vou fazer de tudo para proteger todos dos vilões. Mas não faço isso sozinho — acrescentei, olhando para Alice com ternura. — Tenho a ajuda daqueles em quem confio de todo o coração, como seu pai, Otto.
Alice assentiu com um sorriso satisfeito, depois se virou para Lídia, envolvendo-a em um abraço caloroso.
— Agora, papai vai cuidar de você também — Alice declarou, abraçando Lídia com um carinho genuíno.
Lídia, com os olhos úmidos, levantou o olhar para mim e perguntou em voz baixa, quase como se tivesse medo de ouvir a resposta:
— Marlon... você acha que eu... talvez eu possa ser feliz?
Havia tanta vulnerabilidade em suas palavras, como se para ela a ideia de felicidade fosse um conceito distante, algo que parecia impossível de alcançar.
Ajoelhei-me ao lado dela, encarando-a com seriedade e afeto.
— Você é mais corajosa do que imagina, mais forte do que parece, e mais inteligente do que acredita. Se quiser, pode ser a pessoa mais feliz do mundo — falei com firmeza, deixando que cada palavra carregasse a verdade do que eu acreditava. — Nós vamos te ajudar a alcançar isso, a viver a vida que você merece.
Alice a abraçou com ainda mais força, e Lídia piscou, deixando as lágrimas deslizarem suavemente por suas bochechas, mas ao final, ela sorriu. Um sorriso doce e tímido, mas verdadeiro.
— A partir de agora, você pode viver como uma criança de verdade — continuei, sentindo meu próprio coração se apertar ao ver sua fragilidade. — Ninguém mais vai te machucar. Prometo que farei tudo o que estiver ao meu alcance para que você seja feliz de verdade.
O sorriso de Lídia, misturado com lágrimas, era uma pequena vitória. Um sinal de esperança em meio a tudo o que ela havia enfrentado. E, naquele momento, soube que lutaríamos juntos para garantir que essa esperança crescesse cada vez mais.
Lídia permaneceu abraçada a Alice por mais alguns instantes, como se estivesse absorvendo cada gota de calor e conforto que aquela conexão infantil e genuína lhe oferecia. Era como se ela estivesse redescobrindo o que significava ser cuidada, protegida, e não apenas usada ou manipulada. Eu me levantei, observando as duas com uma mistura de alívio e preocupação. Havia uma longa jornada pela frente, mas aquele pequeno sorriso de Lídia me deu forças para seguir em frente.
— Alice, Lídia precisa descansar agora — falei com suavidade, me abaixando para ficar na altura das duas. — Sei que você quer ficar com ela, mas ela passou por muita coisa.
Alice relutou por um segundo, apertando Lídia com mais força antes de finalmente se afastar.
— Tudo bem, papai. Mas posso voltar para brincar com ela mais tarde? — perguntou, os olhos brilhando de expectativa.
— Claro, querida. Vamos deixar que ela descanse um pouco e depois vocês podem passar mais tempo juntas — assegurei.
Lídia, ainda tímida, lançou um olhar incerto para Alice, como se não soubesse como reagir à ideia de brincar. Era evidente que isso não fazia parte de sua vida até então, mas o brilho de curiosidade em seus olhos me deu esperança de que, com o tempo, ela poderia se permitir experimentar uma infância que lhe havia sido negada.
— Eu... eu gostaria disso — Lídia respondeu com uma voz trêmula, ainda processando a ideia.
Otto entrou no quarto novamente, desta vez com uma expressão mais calma. Ele se aproximou, observando Lídia com uma gentileza discreta. Havia algo nos olhos dele, uma mistura de preocupação e determinação. Sabíamos que a presença de Lídia no palácio não era apenas um desafio, mas também uma responsabilidade.
— Como ela está? — Otto perguntou, mantendo o tom de voz baixo e reconfortante.
— Está se recuperando — respondi. — Mas ainda está assustada, o que é compreensível. Temos que ser cuidadosos.
Otto assentiu, e então se agachou para ficar de frente para Lídia.
— Lídia, você está em segurança aqui. Quero que saiba que faremos de tudo para protegê-la — disse, com a seriedade e a firmeza de um imperador, mas também com a compaixão de um pai.
Ela o observou por alguns segundos, como se estivesse medindo a sinceridade por trás das palavras dele. Quando finalmente assentiu, algo mudou em sua expressão. Era como se uma parte dela estivesse começando a aceitar que poderia confiar, mesmo que essa confiança viesse aos poucos, construída em pequenas doses.
— Obrigada, majestade — Lídia respondeu com um respeito que soava antigo para alguém tão jovem.
— Pode me chamar de Otto — ele corrigiu, com um sorriso amigável. — Deixemos os títulos para outro momento.
Antes que a conversa continuasse, o médico entrou na sala, acompanhado pela curandeira, ambos trazendo mais remédios e uma expressão séria. Era hora de dar mais atenção à recuperação de Lídia, e isso significava que as conversas teriam que ser adiadas.
— Vamos deixar que Lídia descanse agora — sugeri, me dirigindo a Otto e Alice. — Quanto mais ela descansar, mais rápido vai se recuperar.
Alice concordou de bom grado, embora não sem lançar um último olhar cheio de esperança para Lídia, prometendo silenciosamente que voltaria para brincar com ela. Otto também se levantou, trocando um breve olhar comigo, que dizia mais do que palavras poderiam expressar. Sabíamos que aquela garota carregava mais do que apenas as cicatrizes do passado — ela trazia consigo o futuro de um conflito que ainda precisava ser resolvido.
Antes de sair, Otto se aproximou de mim, falando baixo para que só eu ouvisse.
— Precisamos discutir como lidar com Theorban e seus aliados. Não podemos deixar isso para depois.
Assenti, sabendo que ele estava certo. Cada minuto contava, e o tempo estava contra nós. No entanto, havia algo mais urgente no momento — garantir que Lídia se sentisse segura, bem cuidada, e acima de tudo, amparada por algo que ela provavelmente nunca experimentou antes: um lar verdadeiro.
Com um último olhar para a menina que já estava adormecendo sob os efeitos dos remédios, deixei o quarto com Otto e Alice, sabendo que aquela era apenas a primeira batalha de muitas que viriam.
O corredor do palácio estava silencioso, mas a tensão era palpável. Otto e eu caminhávamos lado a lado, nossos pensamentos já se movendo para o que precisávamos planejar. Era hora de preparar nossas estratégias, mas com um cuidado ainda maior — afinal, estávamos lidando não apenas com um inimigo astuto, mas com o destino de uma criança que agora estava sob nossa proteção.
Lá fora, as nuvens pesadas que pairavam sobre o horizonte refletiam a incerteza do que estava por vir, mas eu sabia que, por mais difícil que fosse o caminho, estávamos prontos para enfrentá-lo juntos.
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Gostaram?
Até a próxima 😘
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