Capítulo Quarenta
Marlon Shipka:
Após tanto tempo, finalmente estava de volta ao meu quarto, com o livro do necromante aberto em minhas mãos. A lembrança de Lídia, acordando no meio da noite aos gritos, ainda me atormentava. Ela dizia que os mortos a chamavam, tentando arrastá-la para o outro lado. Desde o dia em que ela trouxe Matteo de volta à vida, aquelas vozes não a deixavam em paz. Eu me sentia impotente, desesperado por encontrar uma solução que a libertasse desse tormento. As marcas do terror estavam estampadas em seu olhar, e meu coração apertava ao vê-la lutar contra algo tão invisível e implacável.
Em minha companhia, estava Lila, recostada na poltrona ao lado da janela, resmungando sobre as frustrações do treino com Guilherme. Ela não se cansava de mencionar as discussões constantes entre ele e Babu, o que só contribuía para aumentar a tensão entre eles. Do outro lado do quarto, quase escondido nas sombras, Lopez analisava com atenção os documentos dos cavaleiros, que Sofia havia deixado para organizar a troca de horários da patrulha do dia. Sua expressão séria contrastava com a leveza das reclamações de Lila, como se cada detalhe escrito ali pudesse decidir o futuro de todos nós.
Lila e Lopez formavam uma dupla admirável. Ambos eram astutos, disciplinados e sempre prontos para qualquer ameaça. Enquanto Lila era uma combatente feroz no corpo a corpo, Lopez era o estrategista frio e calculista, sempre traçando planos que garantiam o sucesso nas missões. Apesar das diferenças, havia uma sinergia única entre eles. Podiam não ser os mais sociáveis, mas para mim, eram mais do que simples companheiros; eram amigos leais e confidentes, pessoas que demonstravam um respeito inabalável por mim e por Sofia.
Quando os dois encaravam alguém com aquele misto de firmeza e determinação, era como se todo o ar do ambiente se tornasse pesado. Quem cruzava seus olhares sentia um frio na espinha, um medo visceral do que poderia acontecer se ousasse desafiá-los. Mas para mim e para Sofia, eles eram adoráveis à sua própria maneira. Sofia conhecia os irmãos há anos, e eu adorava observar a maneira como Lila tentava arrastar Lopez para as conversas. Ele, sempre impassível, levantava uma sobrancelha e lançava um olhar gelado para a irmã, como se estivesse considerando seriamente ignorá-la por completo. Esses momentos me faziam rir, trazendo um pouco de calor e leveza ao ambiente carregado de preocupações.
Esses dois, com suas personalidades contrastantes e habilidades complementares, eram um pilar para nós em tempos de incerteza. Mesmo em meio às sombras que se aproximavam, era reconfortante saber que, ao meu lado, havia pessoas tão extraordinárias, prontas para enfrentar o que quer que viesse, sempre com o olhar fixo no futuro.
— Nem tente. Já te disse que aqueles dois são cabeças-duras demais para trabalharem juntos ou estarem na mesma equipe — disse Lopes, sem sequer erguer os olhos dos documentos. — Não me incomode com essas bobagens banais.
— Mas eles precisam aprender a se dar bem se quiserem ser cavaleiros de verdade! — Lila rebateu, com a voz carregada de determinação, como se a simples ideia de deixá-los brigando fosse inaceitável. — Vou fazer o que for preciso para que eles parem de brigar e trabalhem juntos.
Suspirei, fechando o livro com um movimento calmo, finalmente me permitindo afastar os pensamentos daquilo que lia. — Se vieram ao meu quarto para brigar, talvez fosse melhor saírem e ajudarem Jam com as crianças ou Milena, que deve estar preparando as lições delas. Ou, se preferirem, podem dar apoio à Sofia na busca por Theorban e seus aliados, que ainda estão foragidos. — Minha voz saiu tranquila, mas carregava um leve tom de cansaço. — Na verdade, o que vieram fazer aqui?
— Viemos ver como você está — disse Lila de forma direta, quase categórica. — Faz tempo que não te vemos, então arrastei Lopes comigo. — Ela fez uma pausa, como se ponderasse as próximas palavras. — Assumir o título de imperador regente com tudo acontecendo no império, além de organizar seu casamento, não deve ser nada fácil.
— Na verdade, não tenho intenção de usar o título de imperador regente, a menos que seja absolutamente necessário — respondi, com uma nota de desinteresse.
— Como assim? — Lila arregalou os olhos, claramente surpresa. — A maioria das pessoas estaria ansiosa para ser chamada assim, especialmente quando se trata de um título ligado à nobreza. Então, como prefere ser chamado?
— Bruxo imperial — respondi, com firmeza. — Esse foi meu título desde o início e assim continuará.
Eu sabia que deveria aceitar o título de imperador regente, cuidar dele e carregar o legado da família das rosas com orgulho, mas tudo o que tinha acontecido nos últimos dias me deixava inquieto. A responsabilidade parecia um fardo pesado demais. Não acreditava que seria capaz de corresponder às expectativas que o povo depositava em mim.
Enquanto esses pensamentos me atormentavam, percebia o quão ridículo parecia tentar corresponder a essa imagem ou seguir as imposições que o título trazia. — Esse título... — murmurei, quase para mim mesmo — nunca vai me parecer natural.
— Melhor começar a se acostumar — disse Lila de forma pragmática. — Porque, goste ou não, é como todos vão te chamar daqui para frente.
Ela estava certa, mas a ideia de ser chamado assim ainda soava estranha e distante para mim.
— De qualquer forma — Lopes interveio, voltando a falar num tom analítico —, você precisa deixar esses pensamentos de lado. Deixe que os cavaleiros e o imperador Otto cuidem da segurança da cidade. Marlon vai garantir que o povo e os comerciantes sejam bem protegidos. No fim, tudo isso é apenas um título. Mas, a propósito, tenho uma notícia intrigante. Uma amiga me informou sobre avistamentos de uma fada e um gigante perto da floresta onde ela vive.
Ele estendeu um pedaço de papel para mim, e comecei a ler o conteúdo. A descrição falava de um jovem fada, cujas asas reluzentes lembravam as de uma borboleta Danaus Erippus. Sua pele clara, orelhas pontudas, olhos verdes e longos cabelos vermelhos eram de uma beleza quase etérea. Ele vestia calças folgadas com padrões que espelhavam as intricadas formas de suas asas.
O gigante, por outro lado, era uma figura imponente, com pele azul acinzentada e quatro braços, dois dos quais adornados com braceletes laranja. Seu rosto, humanizado mas assustador, era parcialmente coberto por uma franja escura que escondia uma cicatriz profunda. Ele vestia calças laranja esfarrapadas com padrões de crânios.
— Eu os conheço — falei, pulando da cama. — São Gurokishinia e Dorōru. Eles foram libertados por Max na época em que tentaram usá-los como uma nova âncora para o portal do reino dos demônios.
Ambos me encararam com surpresa. Essa não era uma informação que muitos sabiam.
— Preparem uma carruagem e ativem um portal. Vamos para essa vila imediatamente — ordenei. — Quanto antes descobrirmos o que esses dois estão fazendo no império, melhor.
Algum tempo depois, já estava acomodado numa carruagem simples, atravessando o portal. Para minha surpresa, Otto decidiu me acompanhar. Durante a viagem, ele segurou minha mão, seus olhos fixos na paisagem que passava pela janela, enquanto o silêncio entre nós carregava uma tensão quase palpável. Algo estava se aproximando, e eu podia sentir o peso da responsabilidade aumentar a cada minuto.
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Quando saí da carruagem, fui seguido de perto por Otto, que estava disfarçado de plebeu. Mesmo sob o capuz simples e roupas desgastadas, a nobreza de seus gestos e o brilho calculado nos olhos denunciavam sua verdadeira identidade. Ele parecia ansioso, olhando ao redor com uma expressão que misturava fascínio e alerta. A mansão imperial oferecia todo o conforto possível, mas, pelo visto, o ar vivo e movimentado da floresta tinha um apelo diferente para ele. Ou talvez, no fundo, essa fosse apenas uma desculpa para passarmos mais tempo juntos fora do ambiente rígido da corte.
Seguimos em direção à floresta, com Lila e Lopes sempre atentos, protegendo nossa retaguarda. Eles estavam em posição, como sombras vigilantes, preparados para qualquer eventualidade. Cada passo que dávamos parecia nos levar para mais fundo em um território carregado de energia. A vegetação densa e as sombras oscilantes não escondiam a tensão crescente no ar.
De repente, um calafrio desceu pela minha espinha, e senti a pele arrepiar. Havia magia, densa e maliciosa, pairando no ambiente. Um instinto afiado me fez girar os dedos no ar, e um espinho gigantesco brotou do chão à nossa frente, sua ponta afiada reluzindo sob a luz fraca. Era um aviso, ou talvez uma armadilha.
Lila e Lopes imediatamente assumiram posturas de combate, os olhos atentos e os músculos prontos para reagir. Lopes tinha a expressão fria e analítica de sempre, enquanto Lila movia-se com a graça de uma predadora, os sentidos apurados para detectar qualquer ameaça. Minha mão começou a brilhar, um brilho dourado e perigoso que pulsava em resposta à magia ao redor. Sabia que essa luz era tanto uma arma quanto um escudo, e eu estava preparado para usá-la.
Otto se manteve firme ao meu lado, mas pude ver a tensão em seus olhos. Ele confiava em mim, isso era claro, mas o ambiente carregado de perigos o deixava inquieto. O ar estava carregado de expectativa, como se o próprio tempo hesitasse antes de se revelar. Algo estava à espreita, observando cada movimento nosso, e a batalha, eu sabia, não tardaria a começar.
— Estamos sendo observados — murmurei, sem desviar o olhar do caminho à frente. Lila deu um leve aceno de cabeça, confirmando o que eu já suspeitava.
— Preparem-se para o pior — disse Lopes em tom baixo, sua voz calma, mas implacável.
A tensão era palpável, e por um breve momento, o mundo pareceu se prender em um silêncio quase absoluto. Eu sabia que o que quer que estivéssemos prestes a enfrentar, a verdadeira batalha não seria apenas com espadas e feitiços, mas com o próprio jogo de intenções e manipulações que se desenrolaria. E no fundo, por mais preparados que estivéssemos, não havia garantia de vitória.
Apenas uma certeza permanecia: aquela floresta, carregada de segredos antigos e ameaças latentes, estava prestes a revelar algo que mudaria o rumo de tudo. E, naquele momento, com Otto ao meu lado e nossos aliados prontos para qualquer embate, eu sabia que não havia mais volta.
— Gurokishinia, Dorōru, só queremos conversar — minha voz cortou o silêncio pesado da floresta enquanto olhava para a escuridão à nossa frente.
Um tremor percorreu o chão, seguido pelo som profundo de passos pesados. Das sombras, surgiram duas figuras imponentes, ambos nos observando com expressões serenas, porém cheias de dor e desconfiança.
— O que desejam? Por que nos incomodam? — Gurokishinia perguntou, sua voz ecoando como um sussurro sombrio que reverberava entre as árvores.
— Quero saber por que escolheram este lugar para se esconder. Por que não retornaram aos seus clãs? — questionei, deixando que a pergunta pairasse no ar. O silêncio que se seguiu foi quase insuportável, carregado de memórias e mágoas não ditas.
— Somos traidores — disse Dorōru com uma amargura quase palpável. — Traímos nossos clãs no momento em que nos aliamos ao reino dos demônios.
— Mas por quê? — Otto interveio, dando um passo à frente, seu tom curioso e ao mesmo tempo aflito.
— Fomos traídos pelas pessoas em quem confiávamos — respondeu Gurokishinia, cruzando as pernas e inclinando-se levemente para frente. — Permitimos que as trevas consumissem nossos corações. Quando nos demos conta, já era tarde demais, e vimos muitos dos nossos caírem mortos por nossas próprias mãos. Quem aceitaria traidores ao lado de quem causou tanta dor? Somos exilados, desprezados até mesmo pelos nossos.
— Não falem assim — Otto disse com firmeza, seu olhar cheio de compaixão. — Vocês podem encontrar redenção se realmente desejarem mudar. Todos têm uma segunda chance, mas é preciso lutar por ela.
Dorōru balançou a cabeça lentamente, a sombra do remorso estampada em seu rosto marcado. — Não temos mais nada a oferecer. Perdemos esse direito quando deixamos a escuridão nos dominar.
— Precisamos ir, Dorōru — Gurokishinia disse, sua voz baixa e resignada. — Iremos embora de suas terras, imperadores das rosas. Aqui não há mais lugar para nós.
— Esperem! — Lila exclamou, dando um passo à frente. — Precisamos da sua ajuda. Nosso império está prestes a ser atacado por inimigos que se aproximam. Vocês podem fazer a diferença.
Gurokishinia balançou a cabeça novamente, dessa vez com mais firmeza. — Não podemos mais lutar. Já não somos dignos de escolher um lado.
— Se vocês querem se esconder do mundo e dos seus clãs, essa é uma escolha que podem fazer — falei, minha voz carregada de determinação. — Mas redenção não vem de se esconder. Ela vem de enfrentar seus erros e dar o primeiro passo para mudar. Vocês precisam parar de acreditar que não têm direito a uma segunda chance. Acreditem que a redenção é possível, mas ela começa com vocês.
Os olhos de Gurokishinia se fixaram nos meus, profundos e cheios de dor. Por um momento, ele não disse nada, apenas me encarou com uma expressão que oscilava entre tristeza e resignação. Finalmente, ele desviou o olhar, deixando escapar um suspiro pesado. Ambos se viraram, caminhando lentamente para longe, como se o peso de suas escolhas fosse uma carga que nunca poderiam largar.
Otto, que havia permanecido em silêncio até então, se aproximou e colocou uma mão gentil em meu ombro.
— É melhor sairmos daqui — ele murmurou com um toque de preocupação em sua voz, antes de me puxar para um abraço suave.
Enquanto nos afastávamos daquele local sombrio, uma sensação amarga de impotência crescia dentro de mim. Eu queria salvá-los, queria acreditar que havia esperança até mesmo para aqueles que estavam tão perdidos. Mas nem todas as almas estão prontas para encontrar a luz novamente. E naquele momento, enquanto o crepúsculo se fechava ao nosso redor, restava apenas aceitar que alguns fantasmas escolhem se manter nas sombras.
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Gostaram?
Até a próxima 😘
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