MEMÓRIAS - PARTE I
O Lobisomem estava de volta. Mais uma vez estava no controle de tudo. Percebeu que não era noite. Uivou alto. Sentiu o cheiro tão recente do humano com quem dividia a vida. Olhou para suas coisas. Lembrou-se da noite anterior. Colocou-se de quatro no chão e resolveu correr. Sua vontade era de destruir tudo que era do humano e que estava ao seu redor, mas deixou isso de lado.
Correu tão rápido quanto um relâmpago. Emitindo sons altos. Uivando. Rosnando. Quebrando galhos por onde passava. Os sons diurnos eram tão bons quanto os noturnos. A vida estava fora dos buracos e da proteção da noite. Pulou para o tronco de uma árvore grossa. Escalou velozmente até a copa, lá em cima, do meio das folhas, surgiu o enorme animal negro com olhos vermelhos, que mesmo sem a escuridão da noite, brilhavam de uma forma doentia. Olhou para o vale ao seu redor. As árvores, o penhasco a quilômetros de distância dali. Lembrou-se da clareira da noite passada, e apurou seu faro para procurar o cheiro do sangue que ainda sentia fresco no seu nariz, mesmo à distância. Desceu da árvore, captou o caminho do cheiro, e correu para lá.
Chegou à clareira em poucos minutos. Lá, o enorme animal uivou baixo. Colocou-se de quatro no chão, e farejou os traços de sangue. Encontrou retalhos de roupas, e cravou as garras no braço. Quando fez isso, a dor de cabeça latejante retornou, e fez com que o enorme animal apertasse os lados do crânio com uma força gigantesca, até um dos lados emitir um som de "clique".
Uivou alto. Os enormes pelos negros começaram a cair pesadamente no chão. Tufos e mais tufos caindo e dando lugar à uma pele acinzentada, um meio termo entre a pele do animal, e a do humano. As pernas arqueadas para trás deram um giro rápido e ficaram retas e rígidas como pernas humanas, porém, longas e com resquícios de pelo de animal, até que começaram a encolher. O focinho foi se recolhendo, o mesmo com as orelhas, e finalmente, os olhos vermelhos se tornaram castanhos novamente.
Nolan caiu no chão com a espiração acelerada, sua garganta queimava, e os batimentos cardíacos estavam muito rápidos, parecia que estava morrendo. Sua camiseta favorita toda rasgada no corpo. Apenas retalhos da gola arrebentada pendiam em seu pescoço, e um pedaço da costura da cintura ainda tinha suportado o processo da metamorfose. A cueca, inexistente. O vento frio tocou seu corpo quente. Ele ergueu os olhos. A cena vista por ele despertou um choque de lembranças em sua cabeça.
Ele estava no meio de uma clareira que tinha um cheiro de sangue muito forte para ele. Mas com certeza ele sabia que só sentia isso por conta do olfato do Lobisomem... O LOBISOMEM!
Como ele ainda tinha esse poder de olfato se ele tinha passado pela metamorfose na noite anterior? E como ele chegou nessa clareira sem se lembrar. Sua memória mais recente, era de estar na clareira da transformação, não nessa que ele não conhecia. Olhou ao redor. Viu uma caminhonete parada no extremo da clareira. Duas barracas destruídas pela chuva. O sinal de uma fogueira judiada pela chuva da noite, e o mais assustador: Traços de sangue que pareciam brilhar em sua visão, e retalhos de tecido em alguns pontos da clareira, e ao redor de onde estava que chamavam a sua atenção.
Nolan se levantou devagar. Tremendo um pouco. Mas não era pelo vento frio. Era por conta da onda de pavor que consumiu seu corpo naquele momento de quase clareza.
Por que diabos ele estava ali naquela clareira? Por que aquele cheiro de sangue era tão forte? Eram muitas perguntas pra pouquíssimas respostas.
Procurou a força restante em seu corpo e controlou a tremedeira das pernas. Levantou-se. Olhou ao redor mais uma vez. Aquele cenário era extremamente familiar. Não para ele em si. Mas para alguma coisa dentro dele. Tudo aquilo lhe chamava a atenção, e tudo parecia tentar rebuscar memórias aparentemente enterradas em seu subconsciente, que lutavam para escapar da escuridão, e vir à tona.
Deu alguns passos receosos até alcançar a estrutura das barracas destruídas. Observou-as por alguns instantes. Passou os dedos no pano rasgado. Nada. Andou até perto da fogueira e sentiu o cheiro agridoce e metálico de sangue. Pareciam cheiros diferentes. Todo o cheiro ali era de sangue, mas ele conseguia distinguir cheiros diferentes dentro desse mesmo. Era sangue humano. Sangues diferentes. Sangue de mais de uma pessoa no mesmo lugar. Mas como haveria sangue humano ali?
Uma angustia nauseante começava a crescer em seu interior. Um sentimento estranho lhe dizia que tinha algo de errado ali, e ele tinha alguma ligação.
Virou o rosto e olhou um amontoado de pedras mais distante. Foi até lá, e se agachou. Revirou algumas das pedras de tamanho médio, até que viu uma enorme mancha de sangue meio diluído pela água escorrendo pela parte interna do amontoado de pedras e formando uma pequena poça no meio. Um lugar onde a chuva não tinha conseguido penetrar, mas o sangue sim. Como tanto sangue foi parar ali?
Olhou para o chão onde estava parado, e percebeu retalhos de roupas ao seu redor. Voltou-se para aquele sangue mais uma vez. Pensou um pouco, e resolveu tocar na poça com os dedos.
Sentiu o sangue gelado entrar em contato com a pele da ponta dos dedos, e um grito, seguido de um som de carne sendo mastigada explodiu em seus ouvidos. Nolan caiu para trás. O som continuava agredindo seus tímpanos cada vez mais alto e aos poucos sua visão foi ficando branca até que ele começou a vislumbrar cenas de uma memória que não pareciam ser dele.
Diante de seus olhos, ele viu o rosto de um homem bem próximo dele. Sentiu um gosto de ferro característico de sangue na boca. Aquele gosto de quando você suga a pequena quantidade de sangue de um machucado no dedo, mas muito maior e forte. A dor no ombro. Os pingos gelados da chuva. A sensação de um líquido quente e grosso na boca. Ouviu o baque de alguma coisa pesada e molhada caindo no chão. Viu uma criança correndo. Uma trilha cheia de lama, com a mesma criança fugindo. A visão de um pequeno abrigo visto de cima de alguma árvore. O pequeno menino vestindo uma camiseta do Pokémon, chorando e soluçando dentro desse abrigo, olhando para todos os lados, confuso.
A porta do abrigo aberta. Depois fechada. Depois aberta de novo. Em seguida viu muito sangue. Viu a criança deitada de novo no chão. Sentiu como se estivesse engolindo algo pesado. Viu-se arrastando o garoto pela mesma trilha. Viu o corpo dos dois homens no chão. Viu-se sobre eles, devorando-os. Acordou daquela espécie de "transe", gritando enlouquecidamente e deitado no chão. Nu, sentindo o vento mais frio chicoteando o seu corpo e uma nova chuva fria caindo.
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