HUMANOS
Após uma longa semana trabalhando em um escritório de análise de dados, Bruno resolveu aceitar o convite do irmão mais velho, Maurício, de ir para o meio do mato "caçar animais". Claro, isso na verdade era só uma fachada para disfarçar que iria sair com o irmão por pura pena, já que Maurício era um solteirão de cinquenta anos, bêbado e sem muito o que fazer da vida.
O homem vivia de bicos, sempre machucado, com uma aposentadoria por "invalidez" que fora fraudada, e com inúmeras confusões nas costas.
Com uma paixão por armas e com uma necessidade de reforçar sua masculinidade constantemente. Maurício quase sempre desprezara o irmão mais novo por ele ser focado "no cérebro" e na carreira.
Mauricio vivia uma vida vazia, como um legítimo "macho tradicional insatisfeito com a sociedade colorida e feminazi", como ele mesmo denominava a si mesmo, e seus poucos "amigos". Era amante de armas e objetificava mulheres que nunca teria, e gastava seus dias vazios, quase sempre regando-os a álcool e cigarro.
Vez ou outra, Bruno aceitava esses convites de saídas para bares (de uma decadência inimaginável), eventos de carros, motos, corridas e todos esses afins. O final sempre era o mesmo, Mauricio babando de bêbado, brigando com pessoas aleatórias por qualquer motivo: mulheres, apostas ou por sua posição machista e sem noção (e por essa, Bruno sempre adorava ver o irmão levando um sopapo).
Porém, dessa vez a ideia tinha sido um pouco "menos perigosa". O irmão somente queria ir para o mato, atirar em árvores e latas, abater algum esquilo ou ave, descarregar a provável frustração de sua vida vazia e sem sentido através da pólvora de uma arma. Então ele decidiu ir, e de bônus, podia levar seu filho para ter um contato saudável com a natureza. Ele sempre o manteria o mais longe possível das armas e das brincadeiras ridiculamente imaturas do irmão, mas levar o filho para acampar ao ar livre, soou incrivelmente bem para ele, então decidiu aceitar o convite e forma.
Estavam os três sentados ao redor de uma grande fogueira. Bruno e Mauricio bebiam uísque em copos de metal e conversavam. A noite estava extremamente agradável ao redor do fogo. Nenhum assunto polêmico tinha surgido ainda e eles estavam aproveitando. Mauricio tinha derramado uísque duas vezes no pequeno Lucas, mas no final das contas, isso não era tão ruim. Bruno já se sentia tonto e sabia que o irmão estava extremamente bêbado, mas já não ligava mais, pela primeira vez em muitos anos eles estavam conseguindo manter uma conversa agradável e se divertir, sem Maurício correr para cima de alguma mulher e arrumar uma confusão tremenda. Também não tinham brigado por política, dinheiro e nem nada. Parecia que eram crianças de novo, e que sua relação, tinha voltado ao que era naquela época durante essa noite, e isso já era ótimo, nem que no outro dia, o irmão voltasse a ser o maior pé no saco, hoje estava valendo a pena.
Mauricio sentou-se ao lado de Lucas, o abraçou e gritou bem alto falando que ia contar histórias de terror para o garoto, afinal de contas, o que era um acampamento sem contos macabros e sanguinários? Sem relatos inventados por pessoas mais velhas sobre monstros e aberrações que espreitam durante a noite nas florestas? Ainda mais com uma criança ao redor.
Por um instante, Lucas sentiu medo. Ele amava ouvir lendas, seu avô sempre contava coisas escabrosas para ele, mas dentro de casa, durante o dia. De noite e no meio de uma floresta ele nunca tinha imaginado. E agora, que estava pensando nisso, uma pressão tomou conta de sua cabeça. O ambiente já o deixava assustado, e agora isso. Mas logo o medo passou, e a vontade da criança de alimentar a imaginação com aquele ambiente era tentadora, então ele chegou mais perto do tio e pediu animadamente para que ele começasse a contar.
– Você tem certeza disso, filho?
– Claro pai. Vai ser muito legal. Começa logo, tio! – exclamou animadamente o garoto, mesmo com aquele frio na barriga.
– Então se prepara, guri, que vou contar uma bem tenebrosa que teu avô contava pra gente!
No meio da escuridão, os olhos vermelhos observavam todos os movimentos dos três humanos na clareira.
Ele está escondido a poucos metros de distância de onde estão postas as barracas do acampamento. O cheiro dos humanos banha suas narinas deliciosamente, e seu estômago começa a doer de tanta fome. Um desejo de matar, de sentir suas garras abrindo caminho através da pelo e da carne dispara como uma bala em seu interior.
Lentamente ele vai se esgueirando em silêncio, como uma sombra por entre os arbustos e árvores, cercando a presa, conhecendo o terreno ao redor do local de abate para saber exatamente todas as possibilidades de fugas e trilhas que eles poderiam ter. Ele vai se preparando e estudando sua caça: um dos homens é bem mais alto e tem um cheiro extremamente forte, já o outro, tem um cheiro menos denso e um pouco mais agradável de sentir, provavelmente um gosto melhor também. Mas o maior deleite possível era o cheiro infantil. Um cheiro tenro, adocicado. O corpo estremeceu por um segundo e os músculos quase o fazem saltar naquele mesmo instante.
Ao mesmo tempo em que uma enorme besta se preparava para pular e atacar com toda sua ferocidade, Maurício pula gritando com uma voz grossa, imitando um gemido de fantasma. Mais uma vez a bebida pula de dentro do copo e molha a criança que ouvia atentamente a história de terror que o tio contava.
No meio do mato, o lobisomem é pego de surpresa por aquilo e fica extremamente tenso. O beberrão dá uma gargalhada alta e fala sobre a "reação de fresco" da criança que gritou e quase caiu no chão com o susto. Aquela gargalhada profunda e rouca era irritante demais. Impossível ouvir ela sem babar de ódio. Aquela risada profunda e debochada trazia uma raiva diferente para o coração do lobisomem. O homem gastou longos segundos rindo da reação do garoto, a mão foi na direção da enorme barriga, rindo alto e o corpo balançando para recuperar o equilíbrio. O lobisomem se deteve a simplesmente assistir a cena. Não era mais necessário esperar. Algo "clicou" dentro dele e então veio a ação.
Um uivo começa a subir pela garganta do enorme animal e percorrer todo o seu caminho até chegar à boca e começar a escorrer melancolicamente pelo longo focinho negro. Aos poucos vai chegando ao final do seu caminho. A boca entreaberta começa a dispersar o som gorgolejante e grosso do uivo. Uma febre toma conta do seu corpo, começando pelo peito e descendo até as pernas fortes. O som bestial começa a crescer lentamente até se tornar agudo e ser carregado pelo vento frio que faz com que aquele uivo fúnebre dance por todos os lados, ecoando pela clareira.
Bruno rapidamente ficou em pé e correu na direção do filho, erguendo-o rapidamente do chão pelo braço e o arrasta para o mais perto possível da fogueira. Maurício, extremamente tenso, corre olhando para todos os lados, até a chegar à caminhonete e rapidamente tatear até encontrar as duas armas que estavam deitadas no banco do motorista (a pedido do irmão trouxa que achava que, deixa-las à vista do garoto, poderia ser perigoso), carregadas e prontas para o uso na manhã seguinte.
Os três humanos sentiram em seus ossos a vibração daquele som diabólico que despertou um lado irracional de seus pequenos cérebros. Maurício correu rapidamente para perto do irmão, entregou-lhe a arma e ficou na frente da criança, deram as costas um para o outro, com o garoto no meio dos dois. Proteger a cria é prioridade de quase qualquer espécie. O enorme lobisomem analisa de longe o comportamento inicial do humano com a criança. Um instinto compreensível e comum.
A tensão e o silêncio são totais, de ambos os lados. O lobisomem atento aos movimentos circulares dos homens, que fazem com que a pele se esfregue na roupa e libere o doce aroma do medo. Os dois homens conversam baixo entre si, enquanto o garoto treme compulsivamente no meio deles.
Somente os tons alaranjados da fogueira iluminam a clareira enquanto tons prateados iluminam as árvores e a mata fechada ao redor dos três. Apesar da lua cheia estar radiante, em alguns pontos ao redor da clareira, a luminosidade não passa pelos aglomerados de árvores, transformando a maioria da floresta - que agora parece que vai engoli-los – em uma enorme parede negra e imóvel. Suas almas totalmente apavoradas estão inquietas. Controlando o desejo de correr daquele lugar, os três humanos apavorados se mantêm juntos, armas engatilhadas, transpirando desespero e medo. Nenhum deles pensa em entrar no carro. O medo do que pode estar além da barreira escura das árvores é paralisante. Seus corpos somente tremem, passos curtos os fazem circular em torno da criança, os três tentam olhar para todos os lugares ao mesmo tempo. O caos está se instaurando.
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