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A mata ficou sombriamente silenciosa. Nenhum movimento ao redor, nenhum sinal de vida, absolutamente nada. Após alguns segundos, sensação mínima de segurança pareceu começar a tomar conta dos dois adultos. O uivo veio e logo se foi. Nenhum outro som animal chegou aos seus ouvidos. O vento tinha parado, a fogueira parecia nem estalar mais.
Mas esse sentimento foi muito breve. Um mínimo som, extremamente sutil surgiu por trás deles. Parecia com algo se movendo rapidamente naquele ponto escuro. O barulho surgiu e logo em seguida pareceu se mover para o lado oposto e desaparecer. Parecia que algo tinha circundado eles em uma velocidade inacreditável e desaparecido. Se algo estivesse tão perto, se movendo atrás deles, tinha parado naquele ponto e ficado imóvel. Então se moveu de novo. Dessa vez, um som mais pesado, como se algo gigantesco estivesse novamente correndo em círculos ao redor deles. O peso dos passos era ampliado pelo pavor que tinha voltado com tudo para eles. Alguma coisa corria ao redor da clareira.
Apreensão. Medo. Suor frio. Aquilo estava despertando novamente um medo primitivo nos dois homens mais velhos. A criança já chorava em silencio e tremia, tentando se espremer entre os dois para ficar o menos vulnerável possível. Os olhos semicerrados, somente com espaço suficiente para que as lágrimas escorressem e para que o mínimo de luminosidade entrasse, mas não o suficiente para ver qualquer coisa ao seu redor. Mas infelizmente, a audição é o sentido do medo, e isso ele não conseguiria controlar.
Um uivo era algo totalmente inesperado naquele ambiente. Lobos não existiam no país e há anos não se ouvia falar nem de matilhas de cães selvagens na região. Animais desse porte não vivem em ambientes assim, não existiam fazendas ao redor, era muito afastado da cidade, maioria já teria morrido na rodovia. E o peso daqueles passos, nem de longe seria de um canídeo. Nem uma matilha emitira sons daquela forma, que pareciam pertencer a um único animal.
Mais uma vez, um novo barulho chama a atenção dos três. De novo, algum animal muito pesado e rápido passou correndo perto das árvores e sumiu.
A sensação da espreita e de assustar as presas despertava os piores instintos na besta, que ficava imóvel por alguns segundos e logo corria para outro lugar. A cada movimento, ele sentia uma nova onda daquele cheiro inebriante de medo voando para dentro de suas narinas. O momento exato se aproximava. Instintivamente, ele sabia que o medo deixava a carne mais saborosa, e aquela dança apavorante, garantiria que isso acontecesse.
Mais alguns segundos de silencio na clareira. Os dois homens patrulhavam todos os lados da melhor maneira que podiam. Enquanto isso, o garoto tentou controlar as lágrimas e percebeu que eles estavam virando-se rápido demais, pareciam olhar para todos os lados, mas não enxergar nada. Ele então resolveu virar a cabeça para trás, na direção limpa do acampamento. Ao longe, no meio do breu criado pela parede de árvores, o garoto avistou dois pontos vermelhos brilhantes vidrados na direção da clareira. Aqueles dois faróis vermelhos estavam do lado oposto de onde tinha vindo o último barulho. O que quer que fosse, tinha chamado a atenção para um lugar, e se movimentado sorrateiramente para outro. Abrindo um ponto cego na formação defensiva da dupla desordenada.
O contato com aquele brilho, por mais longe que ele estivesse, paralisou novamente sua alma. O pequeno corpo começou a tremer mais ainda, como se tivesse sido retirado de um rio congelado. E ele rapidamente agarrou uma camiseta (não sabia se era do pai ou do tio) e ergueu o dedo, apontando para o mato. Seus olhos não conseguiam parar de encarar aquele brilho. A tremedeira do garoto foi o que acabou chamando a atenção dos dois adultos.
Ao se virarem na direção do dedo trêmulo da criança, ambos foram assaltados por um pavor maior ainda de ver aquilo. Um tiro foi disparado naquela direção. O brilho desapareceu e o som de algo correndo mais para dentro da mata foi ouvido. Bruno tremia com a arma ainda fumegante em suas mãos. Lágrimas começaram a correr de seus olhos.
Algumas aves levantaram voo. Uma brisa suave e fria passou por eles, fazendo as chamas da fogueira dançarem suavemente, e tudo voltou ao mais absoluto silêncio. Os três continuaram aglomerados, agora que tinham visto aquele brilho vermelho, estavam mais apavorados ainda. A formação de proteção começou a ser desfeita quando eles ouviram um galopar pesado vir na direção deles. O som pesado viajava como um relâmpago, quebrando galhos e destruindo tudo em seu caminho. Bruno atirou mais uma vez na mesma direção, o som pareceu saltar do chão, e de repente, uma enorme sombra pareceu se destacar do meio das árvores e saltar para o céu, cobrindo brevemente uma parte do luar que os iluminava. A enorme forma pareceu ficar parada, levitando no céu, somente uma massa escura com dois pontos vermelhos, silenciosa, grande e assustadora planando sobre suas cabeças.
Não houve tempo para nenhuma reação. Eles mal tiverem tempo de baixar os olhos para acompanhar a aterrissagem do enorme corpo que veio ao chão. Aquele vulto passou por cima deles e caiu de quatro atrás do grupo. Quando começaram a girar os corpos para ver exatamente onde aquilo tinha caído e poder pensar em como reagir, e de repente, a massa negra já tinha saltado de onde estava e, novamente passado pelo grupo. A velocidade com a qual o primeiro movimento aconteceu foi inexplicável. Os reflexos do ser humano não foram páreos para os de uma máquina de matar dotada de velocidade, fúria, força e instintos. A enorme sombra pareceu voar a distância entre a escuridão de onde se escondia até o meio da clareira iluminada pelo fogo onde eles estavam e novamente para o outro lado. No meio desse movimento rápido que o animal fez dentro da clareira, ele separou os três humanos, indo um para cada lado e a criança sendo jogada para mais longe.
O som de algo pesado e molhado caindo fez com que o pai e o garoto, que mesmo com o impacto, tinham caído próximos um ao outro, olhassem para o chão e depois para a barriga do outro homem, que agora estava alguns metros para o lado, ainda balançando para recobrar o equilíbrio. Estava ali, imóvel e branco sentindo seus órgãos escorrendo para fora e caindo pesadamente no chão. A luz dançante da fogueira iluminava um pesado intestino caindo sobre as folhas sujas do chão.
O Lobisomem estava parado a frente dos três, virado de costas, apoiando-se nas patas traseiras, uma das mãos no chão e a outra erguida na altura da barriga, com a cabeça levemente inclinada para o lado, permitindo que o brilho de um dos enormes olhos vermelhos observasse de forma curiosa o que estava acontecendo. Com mais um movimento rápido, a enorme besta girou nos calcanhares e se lançou para cima do homem ferido. Um grito de desespero muito alto saiu de sua garganta. A dor do impacto daquele animal gigante e cruel, a queda no chão duro e frio e os ferimentos mortais que lhe foram infringidos, aquela explosão de dores misturadas ao mesmo tempo naquele único segundo em que tudo se passou foi demais para o homem.
Uma mordida voraz no pescoço, logo abaixo do queixo, destroçando completamente a carne, e o som do mesmo se quebrando, foi o clique necessário para que o outro homem disparasse um tiro com sua espingarda no ombro do animal que estava de costas para ele. A dor mal foi sentida pela fera, e somente arrancou um chumaço de pelos e sangue da área que fora atingida de raspão pelo tiro mal calculado do homem. O couro grosso da fera mal foi arranhado, causando somente uma queimação incômoda. Mas isso alertou a atenção da besta. Ele tinha se esquecido por um segundo de que tinha mais presas, mais dois cordeiros a serem assassinados friamente. Ele foi repentinamente arrancado do momento de seu primeiro assassinato, mal pode aproveitar a sensação de sentir a vida de um humano se esvair por entre suas presas e o sabor daquele liquido grosso e quente que agora escorria de sua boca para seu peito.
O animal levantou-se vagarosamente, como se tivesse sido importunado por uma mosca e girou a cabeça na direção dos dois. O sentimento de ser fuzilado por aquele par de olhos vermelhos e frios foi indescritível. O homem titubeou e se arrastou para trás, empurrando o garoto que tentava se a ele.
Mais um tiro foi dado na direção do animal, que dessa vez somente moveu o corpo para o lado e com três passos largos, prontamente caiu de quatro na frente do homem, o segurou pelo pescoço com uma mão peluda, grande e com palmas ásperas. Ergueu-o do chão, apertando com força o frágil pescoço que pulsava em suas mãos, e com a mão livre, deu uma patada no membro humano que segurava aquela arma que tentou lhe ferir duas vezes e a atirou longe no chão, juntamente com dois dedos que foram decepados pelas enormes garras.
A criança sentiu o cheiro do pelo do animal e tentou se arrastar para longe do pai no momento em que a fera caiu tão perto deles. Depois de se mover rapidamente pelo chão, ele parou e começou a observar aquela cena grotesca com um pavor latente. Sua cabeça parecia estar a ponto de explodir, seu corpo doía, urina quente e suor frio se misturavam em suas pequenas coxas trêmulas. Só foi despertado desse momento de terror pela a voz sufocada de seu pai balbuciando um "CORRA!" enquanto tentava virar-se para ver uma última vez, a sua cria.
Prontamente foi o que ele fez, levantou-se aos tropeços, chorando e tremendo, olhou rapidamente ao seu redor, escolheu um caminho na mata fechada, tentou controlar o tremor das pernas e correu desesperadamente com o peso de saber que nunca mais veria o seu pai e com uma mistura de sensações negativas que o faziam querer deitar no chão e chorar. Mas não era hora para isso. Aquele demônio estava lá atrás segurando a vida daquele que tanto o amou e protegeu até agora, e esta vida, estava prestes a ser ceifada.
O instinto de autopreservação tomou conta do garoto que correu o mais rápido que suas pequenas pernas podiam na direção da mata fechada e escura, sem medo do que poderia encontrar em seu caminho, afinal de contas, a única coisa que deveria temer, era o monstro que estava em suas costas.
O homem já estava roxo e com várias veias saltando pela pele devido à pressão que a enorme pata pesada que estava fechada ao redor do seu pescoço fazia. A tontura do sufocamento fazia com que a dor dos dedos decepados fosse inexistente. Aquilo já não importava mais. Os pés balançando e chutando as coxas do enorme animal que estava ali, drenando sua vida com as mãos. Aqueles enormes olhos vermelhos penetrando sua alma, um olhar tão frio, profundo e fixo com um fundo quase humano, um tom sarcástico que não existira em nenhum animal com o qual ele já tivesse se deparado. O animal emitia um som baixo, como a mistura de um rosnado com um motor de carro. As palmas quentes e ásperas mantinham a pressão constante e quente em seu pescoço. O pior momento de sua vida era aquele, e ver seu filho correndo para a mata enquanto ele estava ali, impotente perante aquela situação, eram demais para ele, só conseguia implorar mentalmente pela morte.
O enorme Lobisomem estava aproveitando cada bafejada de medo que entrava em suas narinas. Os pensamentos estavam quase completamente borrados pelo cheiro de sangue que ainda vinha do corpo jazendo ali próximo. Aquele sangue quente que ele tanto desejou enquanto estava preso naquela casca humana frágil. Aquele saco de carne e ossos que se arrastava impedindo que sua plenitude de predador fosse libertada. Agora era sua vez. Ninguém iria tirar isso dele.
O Lobisomem aproximou o focinho - entreaberto, com presas pingando sangue e saliva - da cabeça do homem, uma respirada forte fez com que os cabelos saíssem da frente do rosto. Uma mão ensanguentada e tremula tocou o lado de seu focinho, enquanto a outra tentava alcançar a orelha peluda e pontuda do animal. Quem sabe fosse uma tentativa da presa de se defender, ou quem sabe, um último pedido para que seu algoz o destruísse de vez.
Uma língua enorme e quente saiu da boca do Lobisomem e passeou pelo rosto do homem, foi de seu queixo até o começo do cabelo. O sabor salgado do suor o fez entrar em êxtase. A última coisa que os olhos apavorados do homem viram, foi uma enorme boca se abrindo e indo na direção de seu rosto. A fera cobriu quase todo a extensão da face do homem com a boca aberta. Cravou as suas longas presas abaixo do queixo e acima da sobrancelha. Os gritos foram abafados pela enorme bocarra que agora tentava engolir aquela parte do corpo. O som parecia ecoar para dentro da garganta do animal, o que soou divertido e ainda mais prazeroso para ele. A pata que segurava a garganta foi afrouxamento, dando espaço para que as garras penetrassem na fina pele humana. A dor dessa violação desesperou mais ainda a presa, fazendo todo o corpo vibrar, chutar e golpear para todos os lados. O Lobisomem precisou apertar mais ainda a mordida, A pressão foi tão grande, que as presas de baixo atravessaram o maxilar do homem, enquanto as presas superiores, perfuram o crânioma delas até cravou na parte de trás do olho, ele sentiu aquela massa arredondada deslizar e cair em cima de sua língua enquanto as garras penetravam profundamente no pescoço e faziam o sangue jorrar para todos os lados.
O sangue quente escorrendo pelas garras e presas, molhando o focinho e os pelos. A excitação da matança trouxe um frenesi de emoções perturbadoras para os sentidos apurados do Lobisomem. Tudo acabou. O corpo do homem se afrouxou. Toda a vida que ainda se agarrava naquele ser se foi com o sangue que escorria.
O gosto do sangue era inebriante. O Lobisomem largou o cadáver, arrastou o outro para perto e observou suas duas primeiras vítimas. Aquele momento único era totalmente seu. Um uivo de comemoração saiu de sua garganta. Parecia que até o chão tinha tremido sob aquele som de festividade fúnebre.
Ele montou em cima do primeiro homem, mordeu um pedaço do seu ombro e arrancou nacos de carne que fizeram jorrar mais sangue pelo chão. O sabor da carne crua e ainda quente com aquele líquido grosso fez com que sua fome, que tinha dado lugar ao desejo de matar, viesse com tudo e ele devorou metade do corpo em pouco tempo. Ossos, tendões, carne, nada era páreo para os dentes do Lobisomem, que agora cumpria um ritual macabro para apaziguar seus desejos obscuros. Seria uma noite de muita festa para os instintos bestiais dele.
Mas rapidamente uma nova onda daquele odor de medo tomou conta de suas narinas, quando uma rajada de vento veio em sua direção. O cheiro vinha do terceiro humano que estava ali quando ele chegou. Aquele mais tenro e que sentia mais medo que os outros. A criança!
Uma alegria infernal tomou conta do seu coração, uma nova caça, a consagração da sua forma animal mais grotesca.
Uma trilha quase visível aos olhos dele se formou indo na direção da floresta. Uma presa fugitiva. Provavelmente a presa com a qual ele iria se divertir nessa primeira caçada. A presa com a capacidade de desafiar o predador mesmo sendo um filhote.
O enorme animal noturno levantou-se, uivou o mais alto possível enquanto relâmpagos começavam a tomar conta do céu que agora estava ficando mais escuro, com pesadas nuvens tomando o lugar da lua cheia que ele tanto apreciava e o fazia bem na forma lupina, mas isso não faria diferença. Uma fera com todos seus hormônios e instintos assassinos elevados ao máximo por matar, com seu poder e confiança voltando com toda a força. A caçada real iria começar e nada poderia pará-lo.
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