VIII
Depois de uma noite lendo sobre a guerra em velhos jornais, Angeline lia as notícias da manhã.
A Alemanha continuava o avanço para o leste. Matava os judeus que cruzavam sua frente. E era reconhecida como libertadora do regime da fome de Stalin.
Começava ignorar as letras do jornal, e aguardava os gêmeos acordarem. O silêncio no qual eles pareciam estar trancados abria portas para um sinal gritante. Ela percebeu isso. Do berro de clemência ao de um suspeito agradecimento.
Os dois desceram. Ela lhes preparou torradas e suco. Era o que a geladeira quase vazia rendia.
Sentou-se na frente deles.
Giovanni preocupava-se pouco com a fome. Comia lentamente. Tomé apressava-se. Mal mastigava. Só o fazia quando era cutucado pelo irmão. Este era minutos mais novo, mas parecia que era uma década mais velho.
Giovanni encarou-a. E perguntou, balbuciante: "A senhora não... não vai comer?"
E ela entendeu o pedido subliminar: "Peguem o quanto quiserem."
*
O filho chegou após o café. A mãe questionava-se sobre sua ansiedade. Se esta existia. Se não por ela ter sido uma pianista, mas pelo menos por ela ter forçado a memória.
Ele dirigia até o local onde o piano mostraria sua alma. Onde seu som culminava emoção.
Era sua primeira saída dali após o coma. Ela notava a distância que a pequena casa tinha das demais. Colado na areia, o casebre era quase todo envolto por árvores. A sensação de solidão era grande também por fora.
No caminho, percebia nos soldados em guarda uma aparência jovial. Uns sérios, centrados. Outros felizes, orgulhosos do posto. Não via cabelos brancos ou frieza. Não via seu filho ali, na guerra, mas com sua mãe e crianças.
Estas acompanhavam-nos. Ettore sorria, enquanto olhava-os pelo espelho retrovisor. E tentava puxar assunto: "Vocês estão se dando bem?"
Angeline balançou a cabeça. E respondeu: "Sim. Se bem é inércia, sim."
Giovanni estava ereto e prestava atenção na conversa. Tomé olhava para baixo e brincava com os pés.
Ainda sorridente o filho consentiu. E continuou: "Eles ajudaram-na, mãe?"
Ela sorriu de leve encarando o mais velho. E respondeu: "Sim. De certa forma."
O filho amargou o sorriso. Ela desviou seus olhos dos do menino.
Ettore entendia a frieza da mãe. Sua investigação ainda era privada.
*
Chegavam ao teatro.
Com o carro estacionado, saíram. Foram encarados friamente por um guarda. Ettore imediatamente lhe entregou uma carta. Após lê-la, ele chamou um superior. Mostrou-a. E o último autorizou a entrada: "Fiquem à vontade. E dê meus cumprimentos ao Duce, senhor."
Ela olhou com atenção os soldados que agora sorriam e balançavam a cabeça para eles.
Passavam a mão nos cabelos dos gêmeos. Tomé sorria ao agrado. Giovanni estranhava.
Ela parou de reparar na cena humana e olhou pra a fachada do teatro. A cor parda e as colunas. O amarelado da luz que batia nas curvas neoclássicas da entrada.
Os três iam de mãos dadas na frente. Ela andava lentamente. Percebia o que podia.
Dentro, o vermelho aparecia. Misturava-se ao dourado. Nas paredes. No chão. No auditório principal. E nos camarotes, onde eles ficaram.
As imagens no teto. O aspecto arredondado da frente do palco. Tudo era tão belo para os olhos simples de Angeline! Da nova mulher que vira as obras humanas boas representadas somente em um quarto de hospital e em um casebre. E que vira somente na guerra a sensibilidade do homem. Ou a falta dela.
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